Impossível ver Carro Rei e não remetê-lo a Titane (França, 2021), o filme que deu a Julia Ducournau a Palma de Ouro em Cannes em maio do ano passado. Deve ser o tal zeitgeist, o espírito do tempo que a arte segue capaz de evocar, o catalisador para que as duas obras tenham sido exibidas com apenas quatro meses de diferença. Em alguns aspectos, são quase siamesas. A personagem principal engendrada por Ducournau, Alexa (Agathe Rousselle), é uma mulher que se apresenta dançando em cima de automóveis tunados, diante de plateias em êxtase pelo fervor sexual que ela estabelece com o carro. Há uma ligação cármica e corpórea entre ela e os automóveis, algo que vem desde a infância e também tem a ver com um acidente que envolve um integrante da família nuclear, da mesma forma com Uno.
Em Carro Rei, entretanto, não é o jovem quem vai dançar pole dance com o carro, e sim Mercedes, numa composição vigorosa do ator trans e não binário Jules Elting. É Mercedes quem engendra um pas des deux de tesão e vazão com a máquina, cuja voz é fornecida pelo ator Tavinho Teixeira (o mesmo ator que interpreta o Caranguejo rei do curta-metragem de Enock Carvalho e Matheus Farias). E Renata filma tudo isso com liberdade, destemor e assertividade, rompendo, inclusive, com o imaginário machista e misógino que ainda assombra não apenas a atividade e o setor audiovisual, mas de resto toda a estrutura do nosso país.
Na entrevista concedida ao jornalista João Rêgo, e publicada na Continente de abril, ela assim discorreu sobre esse aspecto: “Por eu ser diretora de arte, artista plástica e minha base ter sido nas artes visuais; em tudo que eu escrevi ali, tinha certeza plena de que conseguiria filmar para contar a história. Falo isso porque Serginho acompanhou um lab, de que ele participou em Curitiba, e foi questionado ‘será que ela consegue filmar isso?’. Eu não estava presente porque estava na Argentina fazendo direção de arte para a Lucrecia Martel. Ele respondeu que eu tinha todas as condições, mas eu não estava lá para me defender. Por isso que eu digo que o Carro Rei é tão importante para mim. Porque ele me dá credibilidade. ‘Deixa eu construir minhas ideias, eu tenho condição de escrever da melhor forma possível o que estou apresentando’”.
E como tem. Em 2021, seis meses depois de Rotterdam, onde as imagens de Mercedes em sua cópula selvagem com a majestade de câmbio, freio e suspensão ocuparam a maior parte das resenhas (sem esquecer que estávamos quatro meses antes do furacão Titane varrer Cannes!), o terceiro longa de ficção de Renata Pinheiro (Amor, plástico e barulho é de 2013 e Açúcar, de 2017) se consagrou no 49º Festival de Gramado, ganhando os troféus de melhor filme, trilha sonora, direção de arte (Karen Araújo), desenho de som (Guile Martins) e ator para Matheus Nachtergaele.
Um dos textos escritos sobre Carro Rei no pós-Gramado, destacado no material de divulgação preparado pela distribuidora Boulevard Filmes, descrevia-o com um “objeto não-identificado”. A frase “eco-utopia igualitária” aparece também no texto enviado para a imprensa. São tentativas de enquadrar algo que foge às convenções banais nas quais o cinema comercial parece chafurdar – tentativas essas que ecoam, afinal, uma das essências do fazer jornalístico e da crítica cinematográfica: a apreensão, em palavras, das sensações advindas das imagens e o esforço em traduzir parte disso em um pensamento que faça jus ao que se viu.
Ter Carro Rei em cartaz na mesma semana em que é possível ver uma outra ficção pernambucana, Seguindo todos os protocolos, de Fábio Leal, e o documentário Gyuri, dirigido pela também pernambucana Mariana Lacerda, é prova de que todos os esforços valeram a pena, para parafrasear Mariane Morisawa: realizar filmes que diluem fronteiras e rompem rótulos, e lançá-los em meio à hecatombe que é ser e estar no Brasil de 2022, é ato de coragem, força e esperança.
LUCIANA VERAS, repórter especial da Continente e crítica de cinema.