Crítica

'Carro Rei' é uma fábula desconcertante

Filme de Renata Pinheiro, em cartaz nos cinemas do Brasil, dilui fronteiras e desafia rótulos

TEXTO Luciana Veras

13 de Julho de 2022

Matheus Nachtergaele, ator que nutre uma forte relação com o cinema pernambucano, protagoniza o longa

Matheus Nachtergaele, ator que nutre uma forte relação com o cinema pernambucano, protagoniza o longa

Foto Amora Filmes/Divulgação

[conteúdo exclusivo Continente Online]

A primeira vez em que Carro Rei (Brasil, 2021) apareceu nesta Continente Online foi em fevereiro de 2021, poucos dias após a exibição deste longa-metragem da realizadora pernambucana Renata Pinheiro no Festival de Rotterdam. “A escolha de seu filme para a seção paralela Big Screen Competition, que dá ao vencedor a chance de ser exibido em cinemas de arte e na televisão da Holanda, além de um prêmio em dinheiro, é prova de que o esforço valeu a pena”, anotava a jornalista e crítica Mariane Morisawa em texto para nosso site. Depois de um hiato de dezessete meses, e a se constatar a repercussão do lançamento comercial desta ficção que permanece em cartaz no Recife e em várias capitais brasileiras, é correto afirmar que o esforço – de Renata de concretizar sua fábula desconcertante e transumanista do jeito ousado que a visualizou e do público em ir às salas de exibição para apreciá-la –  ainda vale a pena.

Quando a narrativa de Carro Rei se inicia, acompanhamos o nascimento de Uno (Luciano Pedro Jr.), assim batizado porque nasceu no carro dos pais a caminho da maternidade. A partilha daquele instante mágico com o amontoado de ferro, motor e aço rendeu a Uno o dom de se comunicar com os automóveis. Em especial, com aquele veículo com o qual parece se comunicar por telepatia. Contudo, após um acidente vitimar sua mãe, Uno é forçado a se despedir do melhor amigo e o carro é abandonado no descarte, fadado ao ostracismo de um ferro-velho.

Mas, como em toda obra de Renata, o imponderável se impõe, rasgando a linearidade da vida com seu convite à assimetria. Uma década depois do luto, Uno cursa a faculdade de Agroecologia e prefere percorrer as ruas de Caruaru de bicicleta a trabalhar com a frota de táxis do pai (Adélio Lima). Uma legislação voltada a excluir da circulação das ruas os carros mais antigos, porém, atinge a empresa familiar e Uno revisita o ferro-velho onde mora seu tio Zé Macaco (Matheus Nachtergaele e sua habitual capacidade de nos impressionar). Lá, juntos, eles empreendem uma cirurgia cosmética-futurista no veículo da infância para metamorfoseá-lo em um ciborgue de quatro rodas, um transformer, uma máquina de inteligência artificial – o Carro Rei do título.

É curioso perceber recorrências neste filme – Renata trabalha com parceiros de longa data, como seu marido e companheiro criativo Sergio Oliveira, com quem divide o roteiro ao lado de Leo Pyrata, e o diretor de fotografia Fernando Lockett – ao mesmo tempo em que se observam surpresas, ou melhor, aprofundamentos nas pesquisas estéticas desta cineasta que vem das artes visuais e é uma das mais respeitadas cenógrafas e diretoras de arte da sua geração. Porque Carro Rei traz tanto um debate contemporâneo sobre gentrificação, precarização trabalhista e a urbanização predatória e excludente dos centros urbanos como uma interessante investigação sobre as possibilidades de explorar os limites borrados da relação corpo/máquina. 

Uno (Luciano Pedro Jr.) em cena. Amora Filmes/Divulgação

Impossível ver Carro Rei e não remetê-lo a Titane (França, 2021), o filme que deu a Julia Ducournau a Palma de Ouro em Cannes em maio do ano passado. Deve ser o tal zeitgeist, o espírito do tempo que a arte segue capaz de evocar, o catalisador para que as duas obras tenham sido exibidas com apenas quatro meses de diferença. Em alguns aspectos, são quase siamesas. A personagem principal engendrada por Ducournau, Alexa (Agathe Rousselle), é uma mulher que se apresenta dançando em cima de automóveis tunados, diante de plateias em êxtase pelo fervor sexual que ela estabelece com o carro. Há uma ligação cármica e corpórea entre ela e os automóveis, algo que vem desde a infância e também tem a ver com um acidente que envolve um integrante da família nuclear, da mesma forma com Uno.

Em Carro Rei, entretanto, não é o jovem quem vai dançar pole dance com o carro, e sim Mercedes, numa composição vigorosa do ator trans e não binário Jules Elting. É Mercedes quem engendra um pas des deux de tesão e vazão com a máquina, cuja voz é fornecida pelo ator Tavinho Teixeira (o mesmo ator que interpreta o Caranguejo rei do curta-metragem de Enock Carvalho e Matheus Farias). E Renata filma tudo isso com liberdade, destemor e assertividade, rompendo, inclusive, com o imaginário machista e misógino que ainda assombra não apenas a atividade e o setor audiovisual, mas de resto toda a estrutura do nosso país.

Na entrevista concedida ao jornalista João Rêgo, e publicada na Continente de abril, ela assim discorreu sobre esse aspecto: “Por eu ser diretora de arte, artista plástica e minha base ter sido nas artes visuais; em tudo que eu escrevi ali, tinha certeza plena de que conseguiria filmar para contar a história. Falo isso porque Serginho acompanhou um lab, de que ele participou em Curitiba, e foi questionado ‘será que ela consegue filmar isso?’. Eu não estava presente porque estava na Argentina fazendo direção de arte para a Lucrecia Martel. Ele respondeu que eu tinha todas as condições, mas eu não estava lá para me defender. Por isso que eu digo que o Carro Rei é tão importante para mim. Porque ele me dá credibilidade. ‘Deixa eu construir minhas ideias, eu tenho condição de escrever da melhor forma possível o que estou apresentando’”.

E como tem. Em 2021, seis meses depois de Rotterdam, onde as imagens de Mercedes em sua cópula selvagem com a majestade de câmbio, freio e suspensão ocuparam a maior parte das resenhas (sem esquecer que estávamos quatro meses antes do furacão Titane varrer Cannes!), o terceiro longa de ficção de Renata Pinheiro (Amor, plástico e barulho é de 2013 e Açúcar, de 2017) se consagrou no 49º Festival de Gramado, ganhando os troféus de melhor filme, trilha sonora, direção de arte (Karen Araújo), desenho de som (Guile Martins) e ator para Matheus Nachtergaele.

Um dos textos escritos sobre Carro Rei no pós-Gramado, destacado no material de divulgação preparado pela distribuidora Boulevard Filmes, descrevia-o com um “objeto não-identificado”. A frase “eco-utopia igualitária” aparece também no texto enviado para a imprensa. São tentativas de enquadrar algo que foge às convenções banais nas quais o cinema comercial parece chafurdar – tentativas essas que ecoam, afinal, uma das essências do fazer jornalístico e da crítica cinematográfica: a apreensão, em palavras, das sensações advindas das imagens e o esforço em traduzir parte disso em um pensamento que faça jus ao que se viu.

Ter Carro Rei em cartaz na mesma semana em que é possível ver uma outra ficção pernambucana, Seguindo todos os protocolos, de Fábio Leal, e o documentário Gyuri, dirigido pela também pernambucana Mariana Lacerda, é prova de que todos os esforços valeram a pena, para parafrasear Mariane Morisawa: realizar filmes que diluem fronteiras e rompem rótulos, e lançá-los em meio à hecatombe que é ser e estar no Brasil de 2022, é ato de coragem, força e esperança.

LUCIANA VERAS, repórter especial da Continente e crítica de cinema.

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