Crítica

‘Tár’, uma reflexão sobre poder

Com seis indicações ao Oscar, filme de ficção em torno de uma grande regente traz o protagonismo de Cate Blanchett num papel cheio de complexidades e contradições, e que tem gerado debates

TEXTO Camila Fresca

10 de Fevereiro de 2023

A atriz vive a maestra Lydia Tár

A atriz vive a maestra Lydia Tár

Foto Focus Features/Divulgação

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contém spoilers


A Sinfonia n.5 de Mahler é uma das obras marcantes do compositor. A energia e o lirismo da peça, finalizada em 1902, costuma ser associada à felicidade do artista pelo casamento com a compositora Alma Schindler, no mesmo ano. Com cinco movimentos e mais de uma hora de duração, a sinfonia traz a música mais conhecida de Mahler: o Adagietto (quarto movimento), que ganhou vida própria e foi usada diversas vezes como trilha sonora de filmes e programas de TV (o exemplo mais famoso está na trilha sonora de Morte em Veneza, de Luchino Visconti, de 1971). Também marcante é a fanfarra de início, liderada pelo trompete e que traz um motivo rítmico semelhante ao da abertura da quinta sinfonia de Beethoven. 

Pode-se dizer que são os ensaios e preparativos para uma gravação ao vivo da quinta de Mahler que configuram o arco dramático do filme Tár. Com direção, produção e roteiro de Todd Field, o longa lançado no final de 2022 e atualmente em cartaz nos cinemas brasileiros vem acendendo algumas discussões e concorre ao Oscar em seis categorias, incluindo as de Melhor filme, Atriz e Direção.

O foco, no entanto, não está exatamente na música, mas em quem comanda a orquestra: a maestra Lydia Tár, mais importante nome feminino da regência e atual titular da Filarmônica de Berlim, que com essa gravação completa seu registro das sinfonias de Mahler. A personagem e o enredo são fictícios, embora as muitas referências a fatos, pessoas e instituições motivem especulações de alguns e façam outros acreditar que se trata de uma personagem real. 

Em grande parte, também, o fato de acreditarmos naquilo que nos é mostrado e até procurarmos referências na vida real deve-se à magnífica atuação de Cate Blanchett como a protagonista. Sua Lydia Tár é uma mulher de contradições e complexidades, além de ser totalmente convincente do ponto de vista musical: fala sobre o assunto com desenvoltura, toca piano (não houve dublês no filme), ensaia a orquestra alternando inglês e alemão e empunha a batuta com convicção. 

Quando o filme começa, Tár está em Nova York, prestes a dar entrevista num auditório lotado. Quem a conduz é o jornalista Adam Gopnik, da The New Yorker, no papel dele mesmo. É uma cena longa, na qual nos é apresentada a impressionante trajetória profissional de Lydia Tár que, tendo por volta de 50 anos, se encontra no auge da carreira: é a primeira mulher a ser regente titular de uma das mais importantes orquestras do mundo e está lançando sua autobiografia. 

Na entrevista, Tár discorre sobre suas convicções musicais, o trabalho do regente e a questão de gênero. Reconhece que pôde chegar onde está graças ao trabalho de outras que a precederam. Nesse momento, enumera várias maestras (reais) e faz observações corretas sobre elas: o pioneirismo da francesa Nadia Boulanger; a injustiça com Antonia Brico, que, apesar do talento, nunca conseguiu cargos efetivos em orquestras de peso; ou a importância da geração imediatamente precedente e ainda na ativa, de regentes como JoAnn Falleta e Marin Alsop.  

A entrevista é longa e as respostas são ricas em detalhes, o que pode ser um tanto cansativo para quem não tem intimidade com a área. Ao mesmo tempo, deve agradar àqueles que conhecem o universo clássico, que podem até lamentar porque o filme, ao retratar uma mulher num cargo no qual elas ainda são tão pouco representadas, não abre espaço para discutir a questão de gênero na música clássica. 

De qualquer forma, uma eventual dificuldade em adentrar o universo musical deve se desfazer quando Lydia Tár volta para a Alemanha e passamos a explorar não só sua vida pública, mas principalmente seu ambiente doméstico e o cotidiano de trabalho para além dos concertos. É nesse momento que fica claro que, mais do que um filme sobre música ou sobre uma carreira musical, trata-se de uma reflexão sobre poder. 

Tár desfruta de um momento máximo de poder. É bajulada pelo público, acatada pelos colegas. É uma mulher elegante, fria e arrogante, que muitas vezes se utiliza das pessoas ao redor, aproveitando de sua posição. Mas é também talentosa, disciplinada e sinceramente apaixonada por seu ofício. Tár é lésbica, casada com a spalla (primeiro violino) da Filarmônica de Berlim (em ótima atuação de Nina Hoss). Juntas, elas têm uma filha adotiva em idade escolar.


Focus Features/Divulgação

Como muitos músicos, a maestra tem uma sensibilidade sonora aguçada: acorda ao ouvir barulhos na madrugada, incomoda-se com uma pequena vibração no painel do carro, precisa descobrir de onde vêm os sons aleatórios que escuta. Está sempre escoltada por sua fiel secretária, a jovem regente Francesca (vivida por Noémie Merlant). A dinâmica entre elas deixa entrever que houve (ou há) algo mais do que apenas uma relação profissional. 

Logo que retorna a Berlim, Tár participa da audição para um novo instrumentista da orquestra, e uma jovem violoncelista (Sophie Kauer, de fato uma violoncelista que estreia como atriz nesse filme) é escolhida, recebendo imediatamente uma atenção especial por parte da regente. As quatro mulheres (esposa, filha, secretária e instrumentista) têm um papel central na trajetória de Tár que acompanhamos.

Além de desenhar uma personagem complexa e verossímil, o roteiro de Todd Field mergulha não apenas em temas do universo musical, mas igualmente em questões prementes da sociedade contemporânea, como a tolerância ao abuso de poder, movimentos como o “me too” e a cultura do cancelamento. Uma das melhores cenas do filme, aliás, explora tudo isso ao mesmo tempo: antes de retornar a Berlim, Tár dá uma masterclass na Juilliard School, uma das mais prestigiadas escolas de música do mundo. Na sala, poucos alunos. Um jovem rege uma obra contemporânea quando é interrompido por Tár, que começa questionando o porquê da escolha daquela peça. 

Uma profusão de assuntos é entrelaçada com competência. Já do ponto de vista musical, a discussão aborda o papel do intérprete frente à música, a construção do repertório canônico, o gosto pessoal versus a atuação profissional e as demandas do mercado, a complexidade da música contemporânea. (Aliás, num filme no qual a música tem um papel tão importante, a trilha sonora original é da compositora islandesa Hildur Guðnadóttir, primeira mulher a conquistar os maiores prêmios internacionais por suas trilhas para o cinema e a televisão).

Os ensaios para a gravação avançam, e chegamos ao clímax: uma séria acusação de assédio recai sobre Lydia Tár. Seu mundo desaba e ela desce aos infernos. É de fato um filme sobre poder, e sobre o mundo contemporâneo, no qual certas figuras não mais podem tudo – e isso significa grandes mudanças para o universo autocrático dos maestros.

***

Tár tem sido aclamado por críticos e é provável que conquiste algumas estatuetas na premiação do Oscar no mês que vem. Mas nem todos estão satisfeitos. Marin Alsop, que por quase dez anos foi regente titular da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo (Osesp), deu uma entrevista ao jornal britânico The Sunday Times que repercutiu. Ela disse que, ao ver o filme, se sentiu ofendida como mulher, lésbica e regente. 

Há muitos dados da vida da fictícia Lydia Tár que coincidem com a biografia de Marin Alsop: ambas foram alunas de Leonard Bernstein; ambas são lésbicas, casadas com instrumentistas de orquestra, com quem têm um filho; ambas mantêm um programa que auxilia jovens maestras a se estabelecer na carreira. E Alsop, ainda que não tenha atingido píncaros como a Filarmônica de Berlim, é sem dúvida a maestra que chegou aos mais altos patamares até o momento, sendo a primeira mulher a ocupar o posto de titular de uma grande orquestra norte-americana. 

Para Marin Alsop, mulheres em posição de comando são pouquíssimo retratadas no cinema. Escolher fazer do personagem uma mulher e dar a ela características comumente encontradas em homens líderes seriam escolhas para advogar contra a causa feminina. Sua insatisfação é compreensível: o mundo da música clássica é pouco retratado nas telas com esse nível de detalhamento. E talvez seja a primeira vez que um filme de ficção voltado ao grande público se detenha sobre a carreira de uma mulher regente. E então faz dela uma mulher de comportamento abusivo, quando, na vida real, não existe nenhuma denúncia nesses termos sobre mulheres regentes, ao contrário das que existem sobre vários homens, incluindo um que é mencionado cifradamente no filme: James Levine, falecido em 2021, e que em 2017 foi acusado, em matéria do jornal The New York Times, por abuso sexual. 

Tanto Todd Field quanto Cate Blanchett têm insistido em entrevistas que se trata de um filme sobre como o poder corrompe um indivíduo, e que a opção por colocar uma mulher como protagonista ajudaria a discutir as estruturas de poder e a enxergar as sutilezas envolvidas. Ao se colocar um homem, ao contrário, questões como machismo e patriarcado saltariam ao primeiro plano, ou então haveria uma tendência de se ver no personagem o retrato individualizado de alguma figura da vida real. 

Embora o filme talvez queira mostrar que certas atitudes não são (ou não deveriam ser) toleradas nos dias atuais, há uma abertura para uma outra interpretação: a de que o erro é mais permitido aos homens do que às mulheres. Voltando ao caso de James Levine, é verdade que sua carreira acabou após as denúncias. Antes disso, no entanto, o maestro, com mais de 70 anos, vinha diminuindo seu ritmo de trabalho por problemas de saúde. O desfecho teria sido o mesmo quando ele, mais jovem, estava no auge da carreira e era um dos maestros mais requisitados do mundo? Há outros exemplos de figuras masculinas estelares da música clássica que tiveram suas carreiras abaladas (mas não extintas) após denúncias de assédio sexual. 

Não se trata de relevar um assédio, mas de examinar as reações a ele a depender de quem o comete. Isto me lembra algo que Marin Alsop costuma dizer: que as mulheres em posição de liderança, quando erram, não têm uma segunda chance. E que, além disso, seus erros não são individualizados, mas estendidos a todo o gênero – uma “prova” de que elas não devem ocupar determinados lugares. 

CAMILA FRESCA, jornalista e pesquisadora. Doutora em Musicologia pela ECA–USP, colabora com veículos como Revista Concerto e Folha de S.Paulo.

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