Reportagem

O caminho que leva à regência

Área prestigiosa da atividade musical, a formação de maestros é recente e surgiu da especialização desse campo e do desmembramento das funções de compositores, instrumentistas e regentes

TEXTO Camila Fresca

01 de Julho de 2020

A jovem regente Maíra Ferreira (à dir.) em atuação

A jovem regente Maíra Ferreira (à dir.) em atuação

Imagem Divulgação

[conteúdo na íntegra | ed. 235 | julho de 2020]

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No final do século XIX, eram frequentes as turnês de companhias de ópera europeias pela América do Sul. Em 1886, uma delas ensaiava no Rio de Janeiro para apresentações de Aida, de Giuseppe Verdi. O compositor brasileiro Leopoldo Miguez, maestro contratado para as récitas, entrou em conflito com os músicos, que exigiam sua saída. Sem acordo e sem encontrar um bom substituto às vésperas da estreia, a orquestra sugeriu que um de seus membros assumisse a batuta.

O violoncelista Arturo Toscanini (1867-1957), então com 19 anos, subiu ao pódio de improviso e comandou de cor a obra, recebendo aclamação do público. O músico regeu outros 18 títulos até o final da turnê, e o incidente no Rio garantiu ao mundo musical o surgimento daquele que é considerado por alguns o maior maestro do século XX.

Toscanini regeu até os 87 anos e era conhecido por seu perfeccionismo e domínio das obras que dirigia, e por ser extremamente exigente com os músicos. Em mais de seis décadas de atuação, foi diretor do Teatro alla Scala de Milão, do Metropolitan Opera de Nova York, do Festival de Salzburg e da Filarmônica de Nova York.

A escola de regência de Arturo Toscanini foi a cadeira de instrumentista da orquestra, onde pôde conhecer o repertório e trabalhar diretamente com compositores como Verdi, Puccini e Leoncavallo. Era um maestro temido e centralizador, um perfil que está francamente em desuso no século XXI, embora seja um típico representante da regência no século XX. Toscanini, aliás, ajudou a forjar o perfil autocrático e heroico que o crítico britânico Norman Lebrecht explorou em seu livro O mito do maestro.


O violoncelista Arturo Toscanini (1867-1957)
forjou-se maestro no palco. Imagem: Reprodução

Atualmente, a regência é uma das áreas mais prestigiosas da atividade musical. A formação musical voltada especificamente para a atuação como maestro, no entanto, é bastante recente e reflete a progressiva especialização pela qual toda atividade musical passou, processo em que foram se desmembrando as funções de compositor, instrumentista e regente. Para entendermos como se chegou a essa configuração, é necessário recuar no tempo até o estabelecimento da função do maestro.

Se a história da música de concerto pode ser contada ao longo de, ao menos, cinco séculos, a efetiva existência de maestros, da forma como os conhecemos hoje, é bem mais recente. Ela data de meados do século XIX – ou seja, apenas algumas décadas antes da improvisada estreia de Toscanini.

No início do século XV, as performances do coro da Capela Sistina, no Vaticano, eram sincronizadas batendo-se um rolo de papel para manter uma pulsação fixa que fosse audível a todos os cantores. Mestre do barroco francês, Jean-Baptiste Lully trabalhou a maior parte da vida na corte de Luís XIV. Em janeiro de 1687, conduzia um Te Deum marcando o tempo com um grande bastão que batia no chão. Num descuido, uma das batidas atingiu seu próprio pé, causando uma ferida que gangrenou e o levou à morte.

Além do rolo de papel e do bastão – utilizados estritamente para marcar o tempo – na época de Bach e Haendel (do final do século XVII a meados do XVIII), existia a figura do mestre de capela, a quem cabia escrever música para ocasiões determinadas – casamentos, funerais, festas religiosas – bem como organizar a apresentação e participar dela como intérprete, ao mesmo tempo em que liderava o grupo a partir de seu instrumento – o órgão ou o cravo. Era, portanto, a figura do compositor-intérprete.

Concomitantemente, na Ópera de Paris, a posição do maestro recaiu sobre o spalla (o violino principal de uma orquestra), que combinava sua função de primeiro violino com a de manter o conjunto tocando unido. Durante todo esse tempo, contudo, o regente era entendido como um dos integrantes do conjunto, que desempenhava um papel-chave – o de garantir que todos tocassem juntos. A ideia de liderar era secundária e a de impor sua concepção artística praticamente inexistia.

Há controvérsias sobre quem teria sido o primeiro músico a utilizar uma batuta: talvez Louis Spohr (1784-1859), em 10 de abril de 1820, quando conduzia sua segunda sinfonia com a Sociedade Filarmônica de Londres; ou ainda Carl Maria von Weber (1786-1826), na estreia de sua ópera Euryanthe, em Viena, em 1823.

A batuta oferecia uma vantagem dupla sobre os métodos precedentes: eliminava o barulho causado pelo rolo de papel ou o bastão (com o passar do tempo, esse barulho foi considerado uma intrusão inadmissível durante a performance) e, além disso, ao ser manuseada de pé à frente do conjunto, era visível mesmo aos músicos que não se sentavam nas primeiras fileiras.

Porém, mais do que resolver aspectos práticos, a batuta simbolizou a progressiva introdução de questões que se tornariam centrais na forma de se fazer música no século XIX. Weber, por exemplo, defendia a ideia de que o regente tinha um papel mais importante a desempenhar do que manter todos tocando juntos: cabia a ele fazer a música expressar emoção, manipulando suavemente o andamento. O compositor, no entanto, estava à frente de seu tempo, pois falava num momento em que as orquestras mal prestavam atenção aos maestros.

O século XIX criou um novo tipo de músico: o compositor-regente, como o próprio Carl Maria von Weber e, posteriormente, Hector Berlioz, Felix Mendelssohn e Richard Wagner. Os sucessores de Weber, pouco a pouco, assumiram o controle total da performance e trouxeram para o trabalho do regente um ponto de vista criativo individual.


Hector Berlioz foi pioneiro em utilizar a grade 
completa de uma partitura. Imagem: Reprodução


Mais do que isso: quando os regentes conseguiram se estabelecer como líderes de uma performance, eles foram responsáveis por moldar a forma como concebemos os concertos ao vivo até hoje. Mendelssohn, por exemplo, conseguiu reabilitar a música de Bach, então considerada antiquada e acadêmica – o que por extensão levaria progressivamente as salas de concerto a apresentarem cada vez menos música contemporânea. Já o francês Hector Berlioz foi um dos primeiros a utilizar a grade completa de uma partitura (contendo todos os instrumentos); também introduziu os ensaios de naipes (ou seja, ensaios separados para percussão, cordas, sopros e metais) e era bastante severo com as mínimas flutuações de afinação. Richard Wagner, por sua vez, conseguiu impor o que Weber tentara – as sutis oscilações de tempo que davam à interpretação de uma obra um caráter bastante pessoal. Wagner foi o grande responsável por moldar o papel do maestro como aquele que impõe sua própria visão de uma peça a sua execução. Berlioz e Wagner, aliás, escreveram os dois primeiros ensaios dedicados à arte da regência.

Outro compositor que marcou o nascimento dos grandes regentes e ajudou a moldar a forma atual dos concertos foi Gustav Mahler. Ao assumir a Ópera de Viena, em 1897, Mahler passou a proibir a entrada após o início do espetáculo, bem como o aplauso nas pausas entre os movimentos de uma obra. Foi ainda fundamental para fixar a disposição dos músicos da orquestra como a conhecemos, e também foi dele a ideia de diminuir a luz da plateia durante uma apresentação.

Foi assim, rearranjando as performances orquestrais e tornando-se um elo fundamental entre compositor, intérprete e público, que os maestros adquiriram estatura e prestígio inigualáveis ​​entre os músicos.

FORMAÇÃO EM REGÊNCIA
Junto à crescente importância desses profissionais, surgiram, no início do século XX, os primeiros cursos destinados a formar regentes. O Conservatório de Paris instituiu suas classes de direção orquestral em 1914. No Brasil, o mais antigo curso de regência está na Escola de Música da UFRJ e existe desde 1931, tendo como primeiro professor o maestro Walter Burle-Marx.

A formação profissional de um regente é um processo complexo, que demanda tempo e investimento: além de excelente educação musical (incluindo domínio sólido de algum instrumento e noções gerais de todos os instrumentos de uma orquestra), conhecimento amplo do repertório e das diferentes estéticas de cada período, um regente em formação precisa de um elemento primordial: uma orquestra que sirva de laboratório, de espaço para seu treinamento.

O curso de regência nasceu ligado ao de composição. O bacharelado em Composição e Regência, usualmente com seis anos de duração, é algo que está sendo revisto apenas em tempos recentes. Para o maestro Lutero Rodrigues, professor do curso de Regência Orquestral da Unesp, essa estrutura tem suas raízes na própria organização da música de concerto até o século XIX e parte da crença de que, para ser maestro, “era preciso ser músico primeiro”. Nesse sentido, a composição seria a melhor maneira de se aprofundar na matéria musical. “A composição seria um estudo aprofundado da música, enquanto a regência seria uma forma prática, uma aplicação desse estudo”, explica. “Bruno Walter (famoso maestro alemão) estudou composição e se tornou regente, da mesma forma que Alberto Nepomuceno regeu a Filarmônica de Berlim na conclusão do curso de Composição. Associar a regência à composição é uma tradição antiga que foi mantida em muitos países. Só pouco a pouco é que o estudo da regência foi ganhando vida própria.”

No caso específico da Unesp, o desmembramento entre as áreas aconteceu com uma reforma curricular finalizada em 2008 e que não apenas dotou a regência de um curso próprio, com cinco anos de duração, como ainda a subdividiu em duas áreas: orquestral e coral. É durante o curso que os alunos têm a oportunidade de escolher a área.

Vindos dos estados de São Paulo e do Amazonas, Maíra Ferreira e Hilo Carriel são dois jovens regentes que ilustram a formação e os desafios da área no Brasil.


Lutero Rodrigues, professor do curso de Regência Orquestral
da Unesp. Imagem: Divulgação


Natural de Itacoatiara, Hilo iniciou os estudos musicais numa igreja pentecostal em Manaus, aos seis anos de idade. Aos 12 começou a estudar piano e seguiu tocando teclado nos cultos da igreja. “A escolha do curso superior foi incentivada pela minha professora. Ela sugeriu que eu estudasse regência, pois eu poderia continuar tocando piano e teria uma visão mais ampla da música.” Ele seguiu o conselho e cursou bacharelado na Universidade do Estado do Amazonas. Concluído o curso em 2011 e “já fascinado pelo mundo da regência”, Hilo sabia que precisava continuar se aperfeiçoando.

“Em 2012, fiz um módulo de pós-graduação em regência de grupos vocais e instrumentais com ênfase na música do século XX com o maestro Eduardo Lopes, no Conservatório Brasileiro de Música, no Rio de Janeiro. Foi a primeira vez que saí de Manaus para estudar regência”, conta.

O passo seguinte foi se preparar para o processo seletivo do Festival de Campos do Jordão, em 2014. Hilo foi selecionado como bolsista, e sua participação gerou o convite para reger a estreia da Suíte Caymmi, homenagem ao centenário de Dorival Caymmi escrita por Dori Caymmi para a Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo (Osesp). Nos anos seguintes, aproveitou todas as iniciativas existentes para o aperfeiçoamento de um maestro no Brasil, como o workshop de regência da Filarmônica de Goiás; o seminário de regência da Orquestra Experimental de Repertório; e o Laboratório de Regência da Filarmônica de Minas Gerais. Finalmente, entre 2017 e 2019, cursou mestrado em Regência, no Peabody Conservatory da Universidade Johns Hopkins, na classe de Marin Alsop.

Nascida em Botucatu, no interior de São Paulo, Maíra Ferreira sempre teve no pai, músico de bandas populares, seu maior incentivador. Aos cinco anos, começou a estudar piano e, aos nove, ingressou no Conservatório de Tatuí, importante polo de formação musical no interior do estado mantido pelo governo. “Meu pai quis dar aos filhos a oportunidade que ele não teve de estudar música seriamente”, explica ela.

Ao terminar o conservatório, Maíra iniciou o curso de Piano da Unicamp, ao mesmo tempo em que passou a dar aulas como voluntária num projeto social de sua cidade. “Um dia, estava passando e vi professoras ensaiando um coro de crianças bem-desafinado. Me ofereci para ajudar no piano, deu certo e me perguntaram se eu não queria montar um coral. Foi assim que descobri a profissão”, revela. Maíra estava no segundo ano da graduação e, aos poucos, passou a fazer as matérias eletivas do curso de regência junto com o de piano. “Acabei cursando uma modalidade combinada e me formei em Piano e Regência.”


Guilherme Mannis, regente titular da Orquestra Sinfônica de Sergipe.
Imagem: Kristina Gonçalves/Divulgação

Seu primeiro emprego profissional foi com os coros infantil e juvenil do Instituto Baccarelli, um dos mais importantes projetos de inclusão social por meio da música do Brasil, sediado na favela de Heliópolis, em São Paulo. Com os grupos, participou de um encontro de corais em Indianápolis, nos Estados Unidos, onde conheceu Henry Leck, reputado professor e maestro da área coral. Voltou para fazer um curso de verão e decidiu que queria cursar mestrado em Regência Coral sob sua orientação, o que ocorreu entre 2013 e 2016, na Butler University. “Consegui uma bolsa de estudos por ser pianista, já que havia muita necessidade de pianistas correpetidores (os que acompanham ensaios de corais e cantores). O que também foi ótimo para meu aprendizado, pois atuava com os grupos corais, em ensaios de ópera, orquestra e aulas de canto. Tudo isso enquanto observava diferentes regentes trabalhando. Foi uma experiência muito rica.”

Maíra e Hilo têm idades próximas (33 e 29 anos, respectivamente), além de experiência de estudos parecida. Também compartilham opiniões similares sobre aspectos de sua formação e atuação profissional. Para ambos, a maior dificuldade de um estudante de regência está na falta da prática em frente a uma orquestra – são poucos os cursos que dispõem de uma orquestra laboratório na qual os alunos possam treinar.

Esse aspecto é, de longe, o mais mencionado por toda a categoria. Guilherme Mannis, regente titular da Orquestra Sinfônica de Sergipe há 14 anos, assumiu o posto com 26 anos de idade, depois de formar-se em Regência pela Unesp e, segundo ele, participar de “todos os festivais e cursos possíveis”, no Brasil e no exterior. Aperfeiçoou-se ainda com os maestros John Neschling e Isaac Karabtchevsky. “Os cursos de regência, em sua maioria, são desestruturados e não consideram a prática de regência como veículo fundamental para a formação”, afirma. “Posso assegurar que muitos cursos universitários brasileiros e estrangeiros, de graduação e pós-graduação, inclusive, oferecem possibilidades mínimas de prática aos maestros aprendizes.”

De fato, essa falta de prática da qual se ressentem os brasileiros também foi um problema na formação da italiana Valentina Peleggi – jovem regente que participou como estudante do Festival de Campos do Jordão, em 2014, chegou a titular do Coro da Osesp e regente em residência da orquestra – tanto na Itália, onde iniciou os estudos, quanto na Inglaterra, onde cursou mestrado na Royal Academy of Music. “Eu compensava assistindo a todos os ensaios que podia. Aprendi como um regente pode modificar a sonoridade de uma orquestra, observava o que ele pedia, como pedia. No intervalo, muitas vezes ia tirar dúvidas com os maestros. Ao mesmo tempo, montei uma orquestra com os colegas estudantes para praticar. Foi importante para mim, porque naqueles momentos eu podia experimentar com eles o que assistia nos ensaios.”

VIDA PROFISSIONAL
Se a formação estudantil é concluída com uma lacuna na prática orquestral, o início da vida profissional não facilita a situação. Desde o início, um jovem regente precisa passar por uma espécie de funil, já que há muito mais profissionais do que postos disponíveis. Para Lutero Rodrigues, o estabelecimento profissional de um regente passa por, no mínimo, dois estágios. “Recém-saído da universidade, o jovem vai trabalhar em instituições ligadas ao ensino, como projetos sociais, orquestras semiprofissionais etc. É uma prática que possibilita um contato intensivo com uma orquestra ou coral, algo que ele não teve na universidade e que, por isso, é fundamental”, acredita. “Mais tarde, chega-se ao segundo estágio, o daqueles que conseguem ser regentes dos grupos profissionais. Apenas alguns é que chegarão lá”, completa.

Hilo Carriel acredita que a maior dificuldade para um profissional recém-formado no Brasil é a falta de concursos para jovens regentes e a ausência da posição de maestro assistente. “Os cargos de assistentes, quando existem, são, na verdade, de regentes associados”.


Hilo Carriel começou seus estudos musicais aos seis anos, no Amazonas.
Imagem: G B Robertson/Divulgação


O pequeno número de conjuntos orquestrais e corais, e sua concentração nos grandes centros, são outro desafio. “O Brasil segue com um infeliz panorama: dentre as 27 unidades federativas, 12 simplesmente não possuem orquestra estadual”, afirma Mannis. “Pouquíssimas universidades têm orquestra, diferentemente de países semelhantes a nós, como o México e a Argentina. Jovens seguem buscando grandes oportunidades nos saturados centros artísticos, enquanto outras localidades seguem absolutamente à mercê de ações culturais fundamentais”, completa.

“Acho que, no Brasil, a situação é cruel”, afirma Maíra Ferreira, ao comparar o campo de trabalho de um jovem regente no país com o dos colegas com os quais cursou o mestrado. “Uma amiga virou ministra de música numa igreja. Tem estrutura para trabalhar, rege coros infantis, adultos, música de casamento etc. Outro colega trabalha numa escola regendo grupos – orquestra, banda e coral –, tem um bom salário e está super satisfeito.” Ainda segundo ela, “todos os meus colegas dos EUA passaram por uma seleção. Já aqui é preciso ter a sorte de alguém ter visto e gostado do seu trabalho, pois tudo acontece por indicação”.

ALTERNATIVAS DE FORMAÇÃO
Algumas iniciativas de nosso meio musical foram pensadas para aprimorar a formação de jovens regentes, bem como suprir a tão mencionada falta de experiência prática com uma orquestra. Uma delas é o Laboratório de Regência da Filarmônica de Minas Gerais, criado pelo maestro Fabio Mechetti e que realiza, neste 2020, sua 12ª edição. Ele explica que a ideia nunca foi a de oferecer embasamento técnico para reforçar ou suprir aquilo que já deveria ter sido aprendido num curso superior. A proposta é dar aos jovens regentes a oportunidade de trabalhar com uma orquestra profissional de alto nível na preparação e realização de um concerto.

“O que se observa em boa parte dos jovens regentes brasileiros é a dificuldade, primeiramente, de comunicar gestualmente as suas intenções, ‘escutar’ o que está acontecendo e saber direcionar seus comentários ou seus próprios gestos a fim de alcançar o objetivo final”, esclarece Mechetti. Além disso, “a própria convivência entre jovens mais ou menos da mesma idade, dividindo experiências semelhantes, num espírito de diálogo com músicos da orquestra e, logicamente, comigo, mostra-se um instrumento valioso que esses regentes têm em suas vidas”.

Outra ação nesse sentido é a classe de Regência da Academia da Osesp, criada por iniciativa da maestrina Marin Alsop em 2016. Também aqui, o foco são alunos já formados. Durante um ano de curso, eles têm três tipos de atividades: aulas de técnica de regência (com Wagner Polistchuk, trombonista e maestro) e disciplinas teórico-musicais; masterclasses com maestros convidados; e prática de regência com a Osesp, grupos de câmara da Academia e orquestras convidadas.


O maestro Fabio Mechetti (centro) coordena o Laboratório de Regência da
Filarmônica de Minas Gerais. Imagem: Bruno Brandão/Divulgação


“Comparado aos cursos tradicionais universitários, podemos dizer que a imersão no ambiente de excelência técnica e musical da Osesp é transformadora”, afirma Rogério Zaghi, coordenador dos programas educacionais da Fundação Osesp. Regularmente, os alunos preparam uma ou mais peças para apresentar em masterclasses de maestros convidados da temporada da Osesp (ao longo do ano, eles se apresentarão a ao menos oito maestros diferentes).

Já na conclusão do curso, todos têm a oportunidade de reger um concerto na Sala São Paulo com um grupo convidado, geralmente a Orquestra Jovem do Estado de São Paulo, parceira do projeto. Segundo Zaghi, “além de todas as atividades, os alunos também acompanham toda a temporada da Osesp (cerca de 32 semanas), assistindo a ensaios e concertos. Trata-se de uma oportunidade única na América Latina, e talvez haja poucas similares no mundo”.

MULHERES NA REGÊNCIA
Ligia Amadio é um dos mais importantes nomes da regência brasileira. Com carreira internacional, esteve à frente de grandes conjuntos e, atualmente, é titular da Orquestra Filarmônica de Montevidéu. Além disso, é das pouquíssimas regentes brasileiras do sexo feminino a ter conseguido desenvolver uma carreira de destaque num campo em que o predomínio masculino é avassalador.

Ela conta que deu aulas de regência no Festival de Música de Brasília e, em 2016, ministrou um curso particular em sua casa para um grupo de regentes. “Nesse curso pude realizar aquilo que eu idealizo para um curso de regência, ao menos no que diz respeito à especificidade de nossa atuação profissional, justamente dando atenção a alguns temas que não são observados nas universidades e nos diversos cursos”, afirma. Entre esses temas, estariam a “problemática enfrentada pelo regente na prática da profissão, incluindo a liderança e psicologia; como abordar e estudar uma partitura; análise das partituras tendo em vista a interpretação, história da música e da cultura; estudo da biografia e das interpretações dos grandes regentes da história”.

Para ela, a falta de prática orquestral é apenas uma entre as lacunas da formação tradicional. “Claro que os estudantes de regência também se ressentem da falta de prática e oportunidade de trabalhar com grupos musicais, como coros e orquestras. Mas, acredito que uma parte importante da responsabilidade de sua formação só pode ser realizada pelo próprio estudante interessado: estudar profundamente os textos musicais, seus autores e a cultura de sua época e assistir a ensaios de regentes experimentados.”


Ligia Amadio, titular da Orquestra Filarmônica de Montevidéu.
Imagem: Lucía Martinez/Divulgação

A brasileira Chiquinha Gonzaga (1847-1935) foi uma das primeiras mulheres, mesmo em termos internacionais, a subir ao pódio de uma orquestra, ainda na segunda metade do século XIX, no Rio de Janeiro. O fato de existir uma mulher regente quase ao mesmo tempo em que a atividade se profissionalizava, no entanto, não significou uma equidade de oportunidades. Uma pesquisa de 2016 da League of American Orchestras apontou que, nas orquestras norte-americanas, a proporção de mulheres no pódio é de uma para cada quatro homens (ou seja, apenas 20% do total dos concertos são comandados por mulheres). Já a proporção de mulheres regentes que também atuam como diretoras musicais de conjuntos é de apenas uma para cada 10 homens (menos de 10% do total).

As razões para esse desequilíbrio são históricas: sempre houve grande resistência à entrada de mulheres nas orquestras, mesmo como instrumentistas (há menos de 40 anos, as filarmônicas de Berlim e Viena não aceitavam mulheres em suas fileiras). O fato de a regência ser uma área mais concorrida, prestigiada e uma posição de comando só agrava a situação.

Lutero Rodrigues informa que, na Unesp, há praticamente um equilíbrio no número de homens e mulheres que entram na universidade para cursar Regência. No entanto, no momento da formatura, os homens sempre são maioria. Rogério Zaghi, por sua vez, afirma que, desde que a classe de regência da Academia da Osesp foi instituída, pouco menos de 25% de mulheres passaram pelo curso. Fatores diversos desestimulam as jovens a escolher a carreira de regente, e todo tipo de dificuldade faz com que elas desistam mais do que eles, ao longo do caminho.

Ainda assim, conforme nota Ligia Amadio, “o meio da regência para as jovens maestrinas de hoje é infinitamente mais aberto e receptivo do que aquele que as regentes de minha geração tiveram que enfrentar; e nem falar sobre as épocas anteriores”. E completa: “Creio que minha geração conseguiu abrir as portas e consolidar o respeito e a receptividade para as futuras regentes. Sinto-me realizada por fazer parte desse momento e ver as enormes transformações que estão sendo possíveis. A partir de agora, a mulher que tenha vocação para a regência poderá exercê-la com naturalidade, sem ser vista como uma exceção ou uma anomalia”.

DESAFIOS E SONHOS
Conseguir uma formação em regência com a devida experiência prática é, portanto, um desafio para os jovens músicos. Estabelecer-se profissionalmente é igualmente desafiador. Valentina Peleggi acredita que os jovens regentes devem ir atrás de novas oportunidades. “Temos que ser propositivos. Descobri que é muito difícil alguém chegar lhe oferecendo um trabalho ou um posto. Você precisa criar relações profissionais e projetos, além de estar sempre estudando.” Valentina foi recém-nomeada diretora musical da Orquestra Sinfônica de Richmond (EUA), além de ter sido escolhida como jovem regente visitante da English National Opera de Londres, por meio do programa Mackerras Fellowship.


Valentina Peleggi foi recém-nomeada diretora musical da Orquestra Sinfônica
de Richmond (EUA). Imagem: Divulgação

Já durante o mestrado nos Estados Unidos, Hilo Carriel pôde trabalhar intensamente como regente, com grupos de música contemporânea, dirigindo pequenas óperas, regendo a Peabody Symphony Orchestra e o Peabody Singers, além da Sinfônica de Baltimore. Mais recentemente, ele foi selecionado para integrar o grupo de regentes assistentes do maestro venezuelano Gustavo Dudamel, na Orquestra Filarmônica de Los Angeles, dentro do Dudamel Fellows Program, que tem como objetivo dar oportunidade a jovens e promissores regentes de todo o mundo. Hilo regeu as quatro últimas apresentações da Filarmônica de Los Angeles antes da paralisação das atividades decorrente da pandemia da Covid-19.

“Posso dizer que estou onde nunca imaginaria estar. Trabalhar nessa temporada com a Filarmônica de Los Angeles é definitivamente um marco em minha ainda bastante curta carreira”, afirma ele. Sobre o futuro, Hilo afirma que seu sonho “é chegar em um ponto da minha carreira em que eu tenha recursos suficientes para estabelecer polos de cultura e serviços humanitários no Amazonas. É uma terra de talentos inacreditáveis, que definitivamente merecem mais investimento. Individualmente, gostaria de conhecer o mundo como regente convidado de orquestras e corais”.

Hilo considera que um momento-chave em sua carreira foi ter participado do Festival de Campos do Jordão e conhecido Marin Alsop, “que foi a pessoa que mais acreditou no meu potencial e não mediu esforços para me ajudar em minha trajetória”. Da mesma forma, Maíra Ferreira também considera que um momento crucial em sua carreira foi quando conheceu a maestrina Naomi Munakata (uma das regentes corais mais importantes do Brasil, que faleceu recentemente em decorrência da Covid-19).

“Quando a vi pela primeira vez, quase morri, era um ídolo para mim”, relembra Maíra. O ano era 2016, Naomi estava assumindo o Coral Paulistano, do Theatro Municipal de São Paulo, e decidira dar oportunidades a jovens regentes. Maíra foi a primeira, mas o estágio inicial de três meses como assistente do coro foi se estendendo, até que ela acabou efetivada no posto. “Apesar da minha experiência anterior, eu não sabia o que era trabalhar num coro profissional, que ensaia todos os dias.

Meu maior medo era não saber o que corrigir num grupo desse nível. Naomi, percebendo minha insegurança no início, foi me orientando, dizendo o que esperava que eu fizesse. Aos poucos, fui ficando mais à vontade e ganhando sua confiança.”

Maíra, que segue como assistente do Coral Paulistano, é ainda regente do Coro Adulto da Escola Municipal de Música de São Paulo e do Coral Avançado do Instituto Baccarelli. Ela diz ter muito claro que quer seguir trabalhando com grupos corais. “Tenho um lado de professora, e um regente coral tem algo de professor, mesmo num grupo de profissional. Além disso, num coro, a construção do som está muito mais na mão do regente do que numa orquestra.”

Aos 37 anos e assumindo seu primeiro posto como titular de orquestra, Valentina Peleggi diz que nunca pensou em planos para a carreira e que gosta de olhar para o percurso. “Gosto de pensar que a trajetória é uma construção. Então, esse novo cargo é mais um passo. Penso em objetivos a longo prazo, mas nunca em torno de lugares, de chegar em tal orquestra, ou mesmo executar determinado repertório. Meu objetivo é buscar a qualidade, como artista e como pessoa. Fora isso, espero estar aberta a todo tipo de oportunidade, e poder escolher o que quero abraçar.”

CAMILA FRESCA, jornalista e pesquisadora. Doutora em Musicologia pela ECA-USP, colabora com veículos como Revista Concerto e Folha de S.Paulo.

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