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Práticas culturais do brasileiro em transformação?

TEXTO Maria Carolina Vasconcelos Oliveira

01 de Janeiro de 2015

O aumento de renda provavelmente impacta na ampliação do lazer e do consumo de cultura dos cidadãos

O aumento de renda provavelmente impacta na ampliação do lazer e do consumo de cultura dos cidadãos

Foto Reprodução

[conteúdo vinculado à reportagem de "Comportamento" | ed. 169 | jan 2015]

As transformações na estrutura das classes sociais
do país, que começaram a ocorrer na década passada, principalmente o aumento da renda das classes mais pobres, abrem-nos a oportunidade para refletir sobre outras eventuais mudanças que possam estar em curso. A reflexão que apresento aqui é fruto de um convite para pensar sobre os possíveis impactos que essas transformações maiores podem ter no consumo cultural dos brasileiros. Poderíamos dizer que o “acesso à cultura” está maior?

Começo colocando que é tarefa bastante difícil analisar as mudanças de longo prazo no padrão de práticas culturais da população brasileira, já que não temos dados sistemáticos e regulares sobre esse tema. Apesar de existirem estudos específicos que são muito bem-sucedidos, como O uso do tempo livre e as práticas culturais na Região Metropolitana de São Paulo (organizado por Isaura Botelho, no Centro de Estudos da Metrópole, em 2005) e a recente pesquisa Públicos de cultura, conduzida no ano passado pelo Sesc São Paulo, em parceria com a Fundação Perseu Abramo, ainda nos faltam levantamentos padronizados e regulares (no sentido de serem repetidos no tempo).

Na França, por exemplo, onde o Estado conduz a pesquisa Pratiques culturelles des français desde o início dos anos 1970, com poucos momentos de interrupção, temos uma série histórica de informações que permite identificar mudanças e acompanhar a evolução das práticas culturais da população. A existência dessas informações nos possibilita também, por exemplo, tentar explicar as eventuais mudanças no comportamento cultural dos indivíduos, a partir da evolução de dados socioeconômicos mais gerais, e mesmo de transformações ocorridas em outras pastas políticas (por exemplo, pode-se tentar entender os impactos de uma política de educação nas práticas culturais dos cidadãos). Não por coincidência, é na França que se desenvolve uma das mais sólidas correntes de estudos de práticas e públicos culturais no mundo, que tem como marco os trabalhos de Pierre Bourdieu e sua equipe, ainda nos anos 1960, e vem se diversificando até os dias atuais.

No Brasil, felizmente, os temas dos públicos e das práticas culturais parecem estar na moda: há uma série de estudos e iniciativas voltados a entender essas questões. De qualquer maneira, a necessidade de produzir dados regulares e relativamente padronizados (de modo que possam ser comparados) sobre o assunto ainda é marcante. Hoje, infelizmente, ainda se pode dizer que a maioria das instituições culturais (inclusive as públicas) faz políticas para interlocutores imaginados, dos quais não conhecem as características reais. Desnecessário dizer que é muito mais difícil estabelecer comunicação e, mais ainda, gerar impacto sobre um interlocutor que não se conhece.

Feita essa ponderação essencial, creio que alguns comentários podem ser tecidos em relação à pergunta inicial: o que pode ter mudado nos últimos 15 anos? Como a sociologia, a antropologia e outras áreas relacionadas a estudos culturais vêm mostrando, pelo menos desde a década de 1960: o consumo de cultura tem algumas especificidades. Os bens e serviços culturais enquadram-se na categoria de bens simbólicos, cujo consumo não é somente moldado por questões econômicas – e cujo valor também não se reduz ao de mercado. O perfil de consumo cultural de um indivíduo ou de um grupo de indivíduos não é só moldado pelo seu nível de capital econômico (sua renda ou patrimônio financeiro), mas inclui uma série de outros capitais. Gostar ou não gostar de certas manifestações; aderir ou não aderir a certas práticas envolve preferências pessoais, mas também uma certa “bagagem” (de disposições, para usar um termo bourdieusiano), que é transmitida nos processos de formação pelos quais o indivíduo passa. Pesquisas, desde os anos 1960, vêm mostrando, por exemplo, que atributos tão estruturais como o próprio nível de escolaridade dos pais interferem no perfil de práticas culturais de um indivíduo, já que o fato de ele ter frequentado ou consumido algumas manifestações ainda na infância colabora para que se torne um praticante das mesmas na vida adulta.

É muito importante ponderar, no entanto, que tudo isso não significa que mudanças de curto prazo no acesso a certas manifestações culturais não sejam possíveis. Há uma pluralidade de abordagens que possibilita processos de formação na vida adulta e em contextos mais “leves” que o da família e o da escola formal. Uma série de iniciativas no âmbito da educação informal, ou conduzidas pelos próprios centros culturais, mostram que é possível ampliar e diversificar o repertório cultural dos indivíduos em diversos momentos de sua vida. É importante ponderar também que admitir a existência de uma correlação, no nível macro, entre o capital social da família e o nível de escolaridade do indivíduo e a adesão a práticas culturais, cujos códigos e linguagens não são tão amplamente disseminados (por exemplo, algumas formas mais contemporâneas de arte), não significa, de modo algum, assumir que todo e qualquer indivíduo mais escolarizado e oriundo de família mais escolarizada será grande consumidor de arte contemporânea, por exemplo. E, muito menos, significa assumir que é impossível encontrar um indivíduo com baixa escolaridade (ou de baixa qualidade de formação) e oriundo de uma família pouco escolarizada que goste de formas artísticas cujos códigos são menos disseminados. Trata-se simplesmente de uma indicação mais geral de que os processos de formação (e não só os vividos na escola formal) têm relação com as práticas culturais.

De qualquer maneira, é por conta dessa peculiaridade do consumo cultural – o fato de ele não depender só de capital econômico – que medidas como a gratuidade de ingressos, visando aumentar o acesso a determinadas manifestações artísticas, nem sempre se mostram eficazes: a gratuidade, por si só, não garante que o indivíduo tenha acesso aos códigos e linguagens envolvidos na fruição de algumas manifestações. No mesmo sentido, a meu ver, o simples aumento na renda dos cidadãos provavelmente impacta, no curto prazo, numa ampliação de suas práticas de cultura e lazer, mas não necessariamente implica numa diversificação dessas práticas – já que a possibilidade de fruição, por exemplo, de certas linguagens artísticas, não depende só do preço, mas da compreensão dos códigos envolvidos nessas manifestações.

DEMOCRATIZAÇÃO”
De outro lado, acredito, sim, que as mudanças ocorridas no contexto educacional do país nos últimos 15 anos, provavelmente, reverberaram no perfil de práticas culturais da população. Difícil comprovar essas eventuais mudanças, quando não se tem muitos dados que permitam comparações no tempo. Mas é sabido que o aumento da escolaridade e, especialmente, do acesso ao ensino superior, geralmente impacta nas práticas culturais da geração que estuda e também da geração seguinte. Se observarmos os dados dos censos, veremos que o acesso à educação superior para jovens mais do que dobra no decorrer da primeira década dos anos 2000.

Destacam-se, ainda, programas como o ProUni, que concede bolsas para estudantes de baixa renda e proporcionam que esses jovens sejam a primeira geração da família a cursar o ensino superior. As pesquisas realizadas no mundo todo vêm constatando, há décadas, que o consumo de determinadas manifestações culturais (especialmente as artes mais legitimadas) é altamente relacionado ao nível de escolaridade; então, é bastante provável que essas transformações tenham algum tipo de impacto no universo das práticas culturais.

Outro ponto que é importante ser destacado neste debate é o seguinte: identificar uma desigualdade de acesso a determinadas produções (por exemplo, a algumas formas artísticas) não necessariamente significa assumir um posicionamento político que defende que todos os cidadãos devem consumir essas formas artísticas porque elas são “superiores” a outras manifestações. Para entender essa questão, é necessário observar algumas mudanças nos paradigmas políticos relacionados ao acesso à cultura, ocorridas nas últimas décadas.

Muitos formuladores de políticas e pesquisadores da área, dentre os quais me incluo, têm rejeitado o uso do termo democratização, que ficou bastante associado a um modelo de política cultural dirigista e ilustrada, mais típico dos anos 1960. A ideia de democratização está relacionada a um paradigma de política cultural em que se elegem algumas manifestações culturais consideradas “superiores” (basicamente as formas artísticas mais legitimadas) e se parte do princípio de que os cidadãos “precisam” consumi-las (o acesso aqui é pensado quase na lógica da obrigação). Não se reflete, por exemplo, sobre as razões pelas quais essa cultura – que precisa ser universalizada – é a chamada “alta cultura” (e, nesse sentido, naturaliza-se a própria hierarquia estabelecida entre as diversas formas culturais). No discurso da democratização, normalmente está presente a ideia de “levar cultura” àqueles que “não têm” – uma visão bastante problemática.

A partir dos anos 1970, e principalmente nos 1980, as próprias concepções de “cultura”, mobilizadas no debate sobre política cultural, se atualizam. A cultura que é objeto da política passa a ser vista como um conjunto diverso e não hierárquico de manifestações, não restrito às artes mais legitimadas. E se começa a partilhar o entendimento de que uma forma cultural não é hierarquicamente superior à outra (percepção que já estava presente nos debates da antropologia, por exemplo).

Quando se entende a “cultura” como o conjunto de diversas práticas, processos, produções e modos de vida que um certo grupo cria e partilha na interação social, compreende-se que não faz sentido (além de expressar um posicionamento discriminatório) dizer que alguém “não tem cultura” ou “não realiza práticas culturais”. Não se pode reduzir todo o universo da cultura às práticas ditas “superiores”, muito menos sem entender o processo de legitimação que faz com que essas práticas sejam nomeadas como tais. Na esfera da política cultural, começa-se então a nomear outro paradigma, que seria o da democracia cultural (em substituição ao da democratização). Nesse paradigma, como bem define a pesquisadora brasileira Isaura Botelho, espera-se que o cidadão tenha acesso ao maior número de formas culturais possível e possa escolher quais vai consumir. O acesso, então, passa a ser entendido como possibilidade, e não como obrigação.

Uma ponderação muito importante, feita pelo sociólogo francês Olivier Donnat, é que a simples mudança do paradigma da democratização para o da democracia não resolve a questão da desigualdade de acesso que os diferentes grupos sociais têm em relação a algumas formas culturais, especialmente a algumas formas mais institucionalizadas de arte. Quando se tem como objetivo reduzir essas desigualdades, não pela “obrigação”, mas para possibilitar que os indivíduos conheçam um conjunto maior e mais diverso de manifestações culturais, os processos de formação e educação continuam sendo centrais.

CIDADANIA CULTURAL
Os formatos que essas ações de formação podem assumir são os mais diversos. As observações e experiências que tenho realizado mostram que estratégias que possibilitam aos indivíduos experimentar os códigos e linguagens na prática, a partir de suas próprias questões, são mais efetivas em formar públicos específicos para certas manifestações artísticas. Mas, mais do que isso, são mais efetivas no sentido de garantir a democracia cultural: a meu ver, é preciso parar de pensar no cidadão que não faz parte das classes artísticas institucionalizadas simplesmente como “público”, e garantir a ele o direito de participar, efetivamente, da vida cultural e artística.

Afinal, ser “público” é apenas uma parte do que seria o pleno exercício da cidadania cultural. Penso, nesse sentido, que é preciso mudar o foco do “consumo” cultural para o da participação cultural. As próprias ações de “formação de público” podem ter objetivos mais ambiciosos: por que não pensar em garantir o exercício da cidadania cultural, em vez de somente em formar públicos? Penso que as possibilidades de associação entre cultura e processos de formação podem ser potencializadas nesse sentido.

Para finalizar, é preciso dizer que as políticas públicas de cultura conduzidas no nível federal evoluíram muito no decorrer do início dos anos 2000. Presenciamos a construção de programas paradigmáticos, como o Cultura viva, que ilustra bem a ideia de uma política cultural comprometida não só com as classes artísticas mais institucionalizadas, mas com diversos grupos da população, e que se alinha plenamente às ideias de participação e cidadania cultural mencionadas acima. Presenciamos a implantação do Sistema Nacional de Cultura, que também prevê diversos mecanismos para ampliar a participação dos diferentes grupos sociais na formulação das políticas culturais. De fato, no quesito produção de informações sobre a cultura, ainda se pode evoluir muito, especialmente no que diz respeito a informações sobre práticas culturais da população. E, de fato, também poderia haver mais esforços relacionados especificamente ao tema da formação de públicos, principalmente para as artes – as políticas para as artes, no geral, são focadas exclusivamente no fomento à produção e ignoram essa questão. Além do esforço público, penso que as próprias instituições e centros culturais poderiam se dedicar mais a conhecer e a pensar ações destinadas a seus públicos e potenciais públicos – esse tipo de empenho, muito presente em instituições de outros países, ainda é pouco visto aqui. 

MARIA CAROLINA VASCONCELOS OLIVEIRA, mestre e doutora em Sociologia, pesquisa políticas culturais.

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