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Os ciganos e o "Darwinismo social"

TEXTO Renato Athias

01 de Março de 2013

Foto Roberta Guimarães

[conteúdo vinculado à reportagem de capa | ed. 147 | março 2013]

Meu primeiro contato com os ciganos
foi na infância, com as estórias da babá. Ela sempre falava de uma cigana que lia as mãos. Depois, na adolescência, lendo Memórias de um sargento de milícias. Acho que minha geração, no norte do país, conhecia os ciganos através das estórias e contos. Em seu romance de 1854, Manuel Antônio de Almeida descreve os ciganos: “Com os emigrados de Portugal, veio também para o Brasil a praga dos ciganos. Gente ociosa e de poucos escrúpulos, ganharam eles aqui reputação merecida dos mais refinados velhacos: ninguém que tivesse juízo se metia com eles em negócio, porque tinha certeza de levar carolo. A poesia, seus costumes e suas crenças, de que muito se fala, deixaram na outra banda do oceano: para cá, só trouxeram os maus hábitos, esperteza e velhacaria (...) Viviam em quase completa ociosidade; não tinham noite sem festa”.

É a partir desse imaginário que os ciganos aparecem para os brasileiros urbanos e que serão construídas as relações sociais e as políticas públicas brasileiras. A descrição do escritor não difere em nada da definição divulgada da Encyclopédie de Diderot, que propaga ao mundo das letras que os ciganos são “vagabundos que praticam a profecia pela leitura de mãos. O seu talento é cantar, dançar e roubar”.

Isso vai influenciar o “darwinismo social”, que, como doutrina, contribuiu para o acirramento das perseguições aos ciganos e às outras minorias étnicas. É indiscutível que, degradantes ou românticas, cercadas de generalizações e estereótipos, todas essas impressões sobre os ciganos tiveram um lugar garantido em nossa “bagagem de heranças europeias”.

Valem ser lembrados outros autores que descrevem com mais simpatia a vida dos ciganos, entre os quais, Bartolomeu Campos de Queirós, com destaque para o seu premiado livro: Os ciganos. Esse autor apresenta muito bem a temática, mostrando em sua narrativa a ambiguidade de sentimentos que os ciganos despertam. Nessa história, ele mostra um menino, Mário, que, com medo, sonhava em ser roubado pelos ciganos que acampavam em sua cidade. Mário pensava, na realidade, ganhar liberdade e conhecer um novo mundo com o qual sonhava, e, ao mesmo tempo, despertar o amor do seu ocupado pai, que partiria para resgatá-lo. Até hoje, essa ambiguidade está presente entre muitas pessoas.

Mais tarde, durante minha formação como antropólogo, sobretudo vivendo na Europa por vários anos, tive um contato maior com os ciganos. Ali, aprendi a vê-los como uma categoria social, com história e cultura bem específicas, distribuídos em diversos grupos étnicos, com etnônimos próprios, cujos principais são os rom, os calon e os sinti.

No Brasil, acredito que o preconceito ainda é o mesmo existente em relação aos judeus. Em diferentes momentos históricos, os ciganos estão presentes fortemente no imaginário dos brasileiros.

ORIGENS
A origem dos povos ciganos, como grupos nômades, é a Índia. Eles migraram de lá, de maneira ostensiva, durante os séculos 8 e 9, passando a circular de maneira efetiva por inúmeros países em diferentes continentes.

Angus Fraser, talvez a maior autoridade britânica sobre a história dos ciganos, traça um quadro histórico da expansão deles na Europa, desde o século 15, bem como as diversas reações que essas mobilizações impactaram, por mais de quatro séculos consecutivos. Através dessas leituras, conseguimos identificar uma maior unidade étnica e cultural entre os antepassados, assim como alguns aspectos culturais presentes nos dias atuais.

As informações mais seguras indicam que as primeiras grandes famílias ciganas que chegaram ao Brasil vieram de Portugal, sendo que esses ocuparam a Península Ibérica entre os séculos 14 e 15. Os documentos conhecidos que tratam da presença de ciganos na Península Ibérica datam de 1415 e 1425, ambos emitidos por D. Afonso V, que autorizavam a circulação temporária de ciganos em Aragão, solicitando que os mesmos fossem bem tratados e acolhidos por um período de três meses, sem pagarem taxas ou tributos. Esse teor já não é o mesmo nos documentos do século 16, quando muitas leis e regulamentos tentam erradicar os ciganos de Portugal ou obrigá-los a se integrarem na sociedade.

Pesquisas demonstram que os ciganos chegaram ao Brasil ainda no período colonial, mas não existe um consenso quanto à data exata. Essas informações remetem ao degredo de indivíduos ou famílias ciganas, por determinação da Coroa Portuguesa. As deportações de ciganos de Portugal para o Brasil se estenderam até o final do século 18.

Fui ter mais contato com os ciganos quando iniciei uma pesquisa, em 1997, entre os índios pancararus. Acredito que ainda exista uma rota de ciganos que passa pelo território desses índios, no sertão pernambucano. E, de acordo com os pancararus, o trajeto é muito antigo, pois eles têm notícias de grupos de ciganos através da tradição oral. Historiadores, entre os quais Geraldo Pieroni, destacam o século 17 como o momento em que se generalizou o degredo de “bandos” de ciganos para o Brasil, principalmente após a resolução real de 1686, baseada nas orientações de Filipe II (1610), que determinava o degredo de ciganos para a África, e, depois, para o território brasileiro.

Esse decreto representou um dos principais instrumentos utilizados pela coroa portuguesa para “despejar” seus “elementos indesejáveis”. O degredo funcionava como um ritual de purificação, ligado a questões religiosas, sob o comando do Santo Ofício. Porém, antes desse período, têm-se notícias de chegadas de ciganos no Brasil tal como nos informam outros autores.

Rodrigo Corrêa Teixeira analisa as cartas do secretário de Estado da Marinha e Domínios Ultramarinos, Martinho de Melo Castro, cujo conteúdo indica o envio anual de cerca de 400 ciganos para o Brasil, entre 1780 e 1786. Ele também identifica que muitos desses vieram para o território de Minas Gerais através do Rio São Francisco.

OLHAR “ESTRANGEIRO”
Existe um desconhecimento mútuo e uma intolerância nas relações entre os ciganos e não ciganos. Podemos verificar isso há séculos, nas relações entre o Estado e esses grupos, não só no Brasil, e buscar os registros dessa relação, que têm sido feitos de maneira unilateral, sob o olhar “estrangeiro”, algumas vezes implacável e outras, paternalista, dos estudiosos não ciganos sobre o tema, que buscam enumerar, e descrever os costumes e tradições dos ciganos, como um jornalista em busca de um furo de reportagem. O resultado é geralmente cercado de leituras equivocadas, generalizantes e preconceituosas, acentuando a dificuldade de entendimento entre esses dois mundos, involuntariamente, mas obrigatoriamente interligados.

Os estudos sobre a temática cigana têm sido caracterizados como ciganologia, relacionada diretamente à Antropologia Cultural, mas tendo a História e a Linguística como disciplinas auxiliares. Como área específica de conhecimento, assim como da terminologia que a compõe, aparece a partir de 1888, na Inglaterra, quando foi lançada a revista Gipsy Lore Society, a primeira revista europeia, responsável pela generalização recorrente de se denominar como “ciganos” grupos de “populações flutuantes”. Existem muitos ciganólogos nas diversas universidades brasileiras que lidam com esses estudos.

Mas o que me interessa, como antropólogo, é poder compreender o processo de etnicidade cigana nos diversos contextos brasileiros. Venho trabalhando com essa vertente nas pesquisas que desenvolvemos no Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Etnicidade do Programa de Pós-Graduação em Antropologia da UFPE. Talvez, uma das questões principais desses estudo é entender a mobilidade cigana ou como se dá hoje a noção de nomadismo. O que significa essa “perambulação” fortemente associada às identidades ciganas. 

RENATO ATHIAS, antropólogo e diretor do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Etnicidade da UFPE.

Leia também:
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Brasil: Mestiçagem também cigana
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