FOTO ROBERTA GUIMARÃES
01 de Março de 2013
Reunião de quatro gerações da família de Amélia Targino (sentada, ao centro), em frente de casa, no município de Apodi (RN)
Foto Roberta Guimarães
[conteúdo vinculado à reportagem de capa | ed. 147 | março 2013]
"Desde a colonização, os ciganos estiveram nos quatro cantos do Brasil. Por isso, bem se pode afirmar que, para compreender a cultura brasileira em sua totalidade, é preciso investigar as contribuições dos ciganos para as artes, a toponímia, os hábitos, enfim, para a vida tradicional do país.”
A afirmação, feita pela pesquisadora Cristina da Costa Pereira (Os ciganos ainda estão na estrada), reflete a presença cigana na formação da identidade nacional: nas guerras travadas no início da colonização, na língua e nos folguedos, mas desconhecida dos brasileiros e ignorada pela historiografia oficial.
A presença cigana no Brasil data, oficialmente, de 1574. Nesse ano, João Torres foi condenado ao degredo no Maranhão apenas pelo fato de ser cigano. Apesar da ordem de despacho, não existem registros posteriores da sua presença no Brasil. Mas, nesse período, já se registrava a chegada de ciganos ao país.
Na dissertação Sou cigano sim! Identidade e representação: uma etnografia sobre os ciganos na Região Metropolitana do Recife, apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia da UFPE, Erisvelton Sávio Silva de Melo pesquisou a presença desse povo em território pernambucano. Encontrou evidências de que membros da etnia calon se encontravam aqui no final do século 16.
“Em abril de 1594, o cigano Diogo Sanches, residente em Igarassu, é citado no livro Denunciações de Pernambuco, como ‘mercador de lógea de mercearia, sedentário e rico’, denotando uma afronta ao pensamento vigente sobre quem seriam os ciganos, geralmente associados ao nomadismo, à pobreza e ao roubo”, aponta a dissertação.
Para reforçar a tese de que os ciganos já estavam no Brasil, Sávio mostra que, em 1603, a Câmara Municipal de São Paulo de Piratininga concedeu licença para a abertura de uma casa comercial na cidade, recebendo a alcunha de Cigana Francisca Roiz. “Foi o primeiro comerciante de todo estado de São Paulo, reforçando o protagonismo da mulher cigana no grupo.”
DENTRO DOS QUILOMBOS
A calin Márcia Yáskara Guelpa pesquisa a história do seu povo. Ela afirma que os ciganos viveram com os negros em quilombos e que participaram de várias guerras e revoltas coloniais, a exemplo da expulsão dos franceses, no Maranhão. Foram usados pelos portugueses, também, para combater os índios que resistiam à colonização.
Se havia ciganos aliados aos quilombolas, havia, também, os que traficavam e vendiam escravos, atividade que se desenvolveu a partir do século 17 e se estendeu até o fim da escravidão. O viajante francês V. Gendrim, que morou no Rio de Janeiro entre 1816 e 1821, referiu-se, em cartas, às ciganas “vendedoras ambulantes de escravos africanos, as quais percorriam as ruas da cidade”.
No trabalho Anticiganismo: os ciganos na Europa e no Brasil, o antropólogo Frans Moonen descreve a diáspora cigana pelo país. Segundo ele, a deportação “maciça” começou a partir de 1686, quando a expulsão para o Novo Mundo passou a ser uma estratégia para “livrar-se” dos grupos que insistiam em permanecer nos territórios portugueses. Nesse período, os ciganos eram deportados, principalmente, para o Maranhão, Pernambuco e Bahia.
Atraídos pelo ciclo do ouro, os ciganos já se encontravam em Minas Gerais desde o início do século 18. A partir da sua chegada, tudo lhes era atribuído. O preconceito era tão grande na região, que várias correspondências da época citam Tiradentes, o herói nacional, como um autêntico caçador e matador de ciganos.
A perseguição aos calons no Brasil colonial, portanto, era intensa e indiscriminada. Assim como acontecia na Europa, em vários períodos houve ordem expressa de expulsão, morte e confiscamento de bens de vários grupos.
FAMÍLIA REAL
Com a chegada da família real portuguesa ao Brasil, em 1808, mais ciganos aportaram no Rio de Janeiro. Dessa vez, com status diferente dos que haviam desembarcado nos séculos anteriores. “Tudo indica que se encontravam também ciganos e que, pelo menos vários deles, foram contemplados com o cargo vitalício e hereditário de oficial de justiça.”
Documentos do início do século 19 também fazem referências a artistas ciganos que participavam de eventos reais. Em 1818, quando do casamento de Dom Pedro I com a princesa Leopoldina, mais uma vez os ciganos foram convidados para animar a festa. “Os dançarinos são vistoriados: flores, fitas, aplausos, eles conquistam pela magia plangente de seus instrumentos, pela graça de suas danças.”
Os calons estiveram aqui desde o início, os outros só chegaram depois. Existem teses de que as primeiras levas de grupos rom (do Leste Europeu) só chegaram a partir de 1865, após o fim da escravidão cigana na atual Romênia.
No livro Os ciganos no Brasil, uma breve história, o pesquisador Rodrigo Corrêa Teixeira contesta essa versão. Ele afirma que, em 1830, chegou a Minas Gerais o primeiro rom, vindo da Boêmia (pertencente ao antigo império austro-húngaro). Sua alcunha era João Alemão, mas seu nome era Jan Nepomuscky Kubitschek. Ou seja, o primeiro representante rom mineiro era o bisavô do presidente Juscelino Kubitschek.
Outros descendentes de ciganos famosos foram Castro Alves e Cecília Meireles. A poetisa mineira teria escrito uma estrofe em que cita sua etnia. “O meu povo não quer ir nem vir. O meu povo quer passar”.
ROM
Somente a partir da segunda metade do Século 19 foi que os roms vieram em grupo para o Brasil. Eles se dividem em cinco subgrupos, concentrados no Sul e Sudeste. Os kaldeirash são caldeireiros e circenses, e muitos ascenderam economicamente. Vieram principalmente da Itália, Alemanha, Grécia e Rússia. Os macwaia, sedentários, vieram, especialmente, da Iugoslávia. Os rudari, vindos sobretudo da Romênia, têm bom nível econômico e se fixaram no Rio e em São Paulo. Os horahané, oriundos da Turquia e da Grécia, são renomados vendedores ambulantes e os lovara, em franco recesso cultural, recorrentemente fazem-se passar por imigrantes italianos.
A vinda de ciganos sinti, provenientes da Itália, Alemanha e França, muito deles vítimas do holocausto nazista, também é comprovada. Embora não existam indícios de grandes comunidades em território nacional, a presença de pequenos grupos foi relatada e confirmada em vários estados. Há poucos anos, uma família habitava a Região Metropolitana do Recife, segundo informações de pesquisadores da UFPE.
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