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Europa: Eterna sensação de ser “intruso”

Desde a Idade Média até os dias atuais, esses grupos étnicos sofrem barbáries e humilhações, após terem saído da Índia, seu país de origem

TEXTO Danielle Romani

01 de Março de 2013

Os ciganos europeus sofrem, hoje, forte rejeição

Os ciganos europeus sofrem, hoje, forte rejeição

Foto Reprodução

[conteúdo vinculado à reportagem de capa | ed. 147 | março 2013]

Eternos “intrusos” nos países onde vivem,
apesar de neles terem nascido e neles estarem há séculos, os calons, roms, sintis parecem carregar um estigma: o de nunca serem aceitos onde estão e por aqueles que os rodeiam. “A sociedade nos rejeita. Somos sempre olhados com desconfiança. A gente tenta entender o porquê, mas é difícil”, afirma Roberto Cavalcanti Soares, 46 anos, líder do grupo calon de Itambé.

Nômades por séculos e hoje obrigados a exercer uma mobilidade circunstancial – em especial na Europa, onde têm sido jogados de um país para outro –, os ciganos são perseguidos e discriminados desde sempre. Os motivos? Nem mesmo antropólogos, pesquisadores e historiadores conseguem apontar, satisfatoriamente, as razões dessa intolerância.

No livro Anticiganismo: os ciganos na Europa e no Brasil, o antropólogo Frans Moonen explana sobre as perseguições aplicadas contra os ciganos entre os séculos 15 e 20, no continente europeu. Moonen cogita que a discriminação teve motivações políticas e econômicas. O medo de dividir as terras e os empregos fez com que os europeus desejassem que os grupos fossem banidos rapidamente.

“Os primeiros bandos que apareceram na Europa eram liderados por ‘condes e duques’ (autodenominavam-se assim, através de documentos). Acontece que esses nobres ciganos não tinham terras próprias e, embora afirmassem estarem em peregrinação, tudo indicava que vieram para ficar na Europa”, aponta Moonen.

As habilidades profissionais dos ciganos foram outro entrave. Segundo o antropólogo, “exerciam atividades que concorriam com as profissões urbanas, como as de ferreiro, caldeireiro e artesão, de um modo geral”.

Ciganos podiam ser artistas, músicos, dançarinos e acrobatas, ou apenas mendigos. “Constituíam uma ameaça de concorrência econômica também para os artistas e até para os mendigos”

Acrescente-se a isso, pondera o antropólogo, a “cor escura de sua pele, seu aspecto sujo, sua língua incompreensível, sua origem desconhecida, o fato de, aparentemente, não terem religião, os poderes mágicos das mulheres que sabiam prever o futuro e jogar pragas”. Esse conjunto de características provocou receio, depois, ódio na sociedade europeia da época.


Em Berlim, memorial homenageia ciganos mortos pelos nazistas. Foto: Reprodução

Diante disso, logo foram criadas histórias envolvendo-os: roubavam crianças, eram canibais, ladrões, traziam má sorte e doenças, e, principalmente, não eram cristãos, o que foi capitalizado pela Igreja, dando motivos para que muitos fossem mortos e perseguidos pela Inquisição.

Uma das “acusações” foi a de que seriam filhos de Caim e teriam fabricado os pregos que crucificaram Cristo. Moonen explica que isso não passa de invenção, em especial no que diz respeito à época da crucificação, período em que os ciganos sequer haviam saído da Índia.

Na tese Da barraca ao túmulo: cigana Sebinca Christo e as construções de uma devoção, apresentada à Universidade Federal do Paraná, o doutor em História, Lourival Andrade Júnior, registra outros argumentos. “Há relatos de que não deram abrigo a José e Maria e que convenceram Judas a trair Jesus.”

Lourival resgatou um documento datado do século 17, enviado pelo teólogo Sancho de Moncada ao rei da Espanha, em que solicita severa repressão aos ciganos, classificando-os de “uma ralé muito perniciosa, espiões e traidores da coroa, um povo vagabundo e preguiçoso, ladrões de crianças, cavalos e gado, encantadores, feiticeiros, adivinhos mágicos, quiromantes, heréticos, idólatras, ateístas”. O mesmo religioso conclui seu argumento com extremo “pragmatismo”: “Por que não há lei que nos obrigue a criar filhotes de lobo...”

ORIGEM E PERSEGUIÇÃO
Ágrafos, os ciganos não produziram documentos que possam comprovar suas origens e história. Mas estudos linguísticos de seus dialetos, realizados no século 18 – que apontaram semelhanças marcantes com o sânscrito –, e recentes exames biológicos, promovidos pelo Instituto de Biologia Evolutiva da Universidade Pompeu Fabra, em Barcelona, permitiram algumas revelações.

Após um exame do genoma de milhares de indivíduos, a instituição concluiu que, aproximadamente, 11 milhões de ciganos que vivem atualmente na Europa têm a mesma origem, o norte da Índia. Os estudos também indicam que eles saíram do país há 1.500 anos, de uma só vez, chegando à Europa a partir dos Balcãs, no século 14. Os rom mantiveram maior pureza dos genes, ao realizarem mais casamentos endogâmicos. Os calons, por sua vez, demonstram maior nível de miscigenação.

Nesse percurso da Índia à Europa, atravessaram a Ásia Central, o Oriente Médio e a Grécia, onde permaneceram por um bom tempo. O nome cigano, entretanto, surgiu de um mal-entendido: aos serem indagados sobre suas origens pelos europeus, afirmavam ser provenientes do pequeno Egito, região grega, e não o país. Daí cogitar-se que suas origens fossem egípcias, o que redundou nas denominações gypsies, zingari, zigeuners, tsiganes, gitanos, ciganos. As primeiras informações confiáveis datam de 1417, quando vários registros atestam que visitaram a Alemanha. No começo do século 16, já estavam em todo o continente, inclusive na Inglaterra.

Após a recepção, por pouco tempo calorosa, as perseguições começaram. Em 1430, na cidade de Konstanz, um cronista culpa os ciganos por praticarem magia, roubo, de serem responsáveis pela fome que assolava a cidade e por uma epidemia de peste. Em 1526, foi vetada a entrada deles em Portugal. Nada menos que 133 legislações anticiganas foram editadas na Alemanha, entre 1551 e 1774. Em 1734, na Prússia, podiam ser aprisionados ou caçados. E mortos, obviamente.


A roda, que representa a carroça e o movimento contínuo dos grupos, tornou-se emblema dos roma. Foto: Reprodução

SÉCULO 20
A discriminação e o desprezo só aumentariam. Juntamente com os judeus, os ciganos foram os alvos preferenciais dos nazistas. Em 1927, antes mesmo da criação de leis antijudaicas, os ciganos alemães eram obrigados a andar com um documento de identificação. Algum tempo depois, foi criado o Serviço Central de Combate à Praga Cigana.

Em 1937, no Centro de Pesquisa para Higiene Central e Biologia Populacional, em Berlim, investigava-se a suposta relação entre hereditariedade e criminalidade, elaborando complicadas árvores genealógicas de ciganos. Em dezembro de 1942, Heinrich Himmler, comandante da SS, ordenou o envio de todos os ciganos alemães para o campo de Auschwitz–Birkenau. Estima-se que foram mortos entre 220 mil e 500 mil ciganos na Segunda Guerra Mundial.

Em 2012, 67 anos após o massacre, um memorial para os ciganos vitimados pelo Holocausto foi inaugurado, em Berlim, pela chanceler Angela Merkel. O monumento não deixa de ser um reconhecimento do governo alemão. Mas, contraditoriamente, não retrata a realidade: reconhece-se a injustiça contra a etnia, mas o fato não sensibilizou as autoridades alemãs a revogar as políticas de deportação no país.

Na França, a situação não é diversa. Apesar das promessas, o governo socialista de François Hollande manteve a política segregacionista de Nicolas Sarkozy: em agosto de 2012, alegando medidas sanitárias, desmontou vários acampamentos ciganos no país, deportando-os para a Romênia.

A discriminação que sofrem foi observada muito de perto pela professora, antropóloga e socióloga pernambucana Vânia Fialho, que, durante o ano de 2010, esteve em regiões italianas situadas no norte industrial. Inicialmente preparada para estudar os migrantes de uma forma geral, ela se assustou com a intensa discriminação contra os ciganos locais, que acabaram virando objeto de estudo. “Uma das expressões mais utilizadas em relação às comunidades e indivíduos é schifo e schifosi, que equivalem a nojo e nojentos em português”, conta Vânia.

Em Milão, um acampamento de 10 anos de existência (portanto legitimado) passou dias sendo vigiado pela polícia e foi desmontado. “Os jornais denunciavam que o governo estava permitindo a criação de uma zingarópolis (cidade de ciganos), cobrando medidas mais efetivas contra eles”, lembra Vânia.

Em Roma, verdadeiros “campos de concentração” estão sendo cogitados para os ciganos. Na Espanha, medidas semelhantes vêm sendo estudadas. “Com a crise econômica continental, acredito que os desdobramentos serão ainda mais difíceis e dramáticos”, diz.

Em entrevista à Isabel Fonseca, autora de impecável livro sobre os ciganos europeus, o rom búlgaro Manush Romanov demonstrou toda sua dor, cansaço e frustração pelas lutas e humilhações vivenciadas nas últimas décadas, com a seguinte frase: “Enterrem-me em pé. Passei de joelhos toda a minha vida”. Enterrem-me em pé – a longa viagem dos ciganos foi, portanto, o título dado ao livro por Isabel Fonseca, que registrou outra fala de Romanov: “Nossos problemas são tantos quanto as folhas da floresta”. Não há exagero em sua frase. 

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