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Sagrado: Deus, a natureza e os antepassados

Sem uma religião específica, os calons, sintis e roms geralmente se aproximam das crenças das comunidades em que estão inseridos

TEXTO DANIELLE ROMANI
FOTOS ROBERTA GUIMARÃES

01 de Março de 2013

A santa negra Sara Kali é amplamente reverenciada na Europa

A santa negra Sara Kali é amplamente reverenciada na Europa

Foto Roberta Guimarães

[conteúdo vinculado à reportagem de capa | ed. 147 | março 2013]

"Em cima, o céu; embaixo, a terra;
no meio, os ciganos.” O velho ditado reflete bem a essência dos calons, sintis e roms. Independentemente da religião ou da fé que professam, na maioria das vezes assimilada junto à comunidade com a qual se relacionam, existe neles algo que nos escapa, e que lhes é intrínseco, peculiar. Talvez porque a relação secular com a natureza dotou-os de uma religiosidade latente, que não foi construída em templos, igrejas ou mesquitas, mas nas caminhadas nômades, nos acampamentos e paisagens abertas, sertões e caatingas, pelo verde das florestas e das montanhas; pela força do sol, chuva, rios, ventos e estrelas.

“A gente não precisa das coisas como vocês (não ciganos). Do que adianta ter tanto objeto, se a gente vai embora e não leva nada? Deus está no coração, nos amigos, na natureza, só tenho saudades do tempo que andava pelo mundo. Ali, eu estava realmente perto de Deus ”, ponderou Raimundo Ferreira Dantas, Chico, 54 anos, como que prevendo seu próprio destino: antes mesmo desta matéria ser editada, ele faleceu. Na ocasião, vivia em situação lastimável, num acampamento sem a mínima infraestrutura básica, em Tangará, no Rio Grande do Norte.

O falecimento de Chico foi um baque para os ciganos que o conheciam. A morte de um calon deve ser tratada com grande seriedade: se ele morasse em uma casa – o que não era o caso, pois habitava numa barraca –, após prantear o morto, os parentes mudariam de lugar, tirariam as fotografias da vista, não pronunciariam seu nome durante meses e guardariam luto por grande período, em que deixam de dançar, cantar, festejar. “Quando meu pai, Enildo Soares, morreu, a gente morava em Afogados (bairro recifense). Mudamos para Paulista, passamos longo tempo em luto e evitávamos fotos ou falar o nome dele. Faz parte da tradição”, conta Enildo Soares Filho, líder dos ciganos pernambucanos.

Nos primórdios, entre os ciganos, havia apenas o conceito de Devel (Deus) e Beng, a incorporação do demônio ou da energia negativa, contra a qual se cercavam de simpatias, ritos e rezas. A cartomancia e a quiromancia lhes têm sido inerentes. Mas não existem informações de quando e como aprenderam esses métodos divinatórios.


Pedro Maia é devoto de Padre Cícero de Juazeiro do Norte

No livro O rosto de Deus na cultura milenar dos ciganos, o padre Murialdo Gasparet pondera: “A maioria dos ciganos acredita em um só Deus e valoriza bastante os antepassados. Há ciganos católicos, espíritas, protestantes e ortodoxos. E, sobretudo, valorizam o destino como um fator determinante em sua vida”.

SARA KALI
A crença em Santa Sara Kali é forte entre os ciganos europeus e os das regiões mais ao sul do Brasil, onde se fixaram os roms. Sara, ou a santa negra, foi escrava egípcia de uma das três marias (Madalena, Jacobé ou Salomé) e, juntamente com elas, foi atirada pelos judeus numa barca sem remos ou alimentos. Enquanto a santa negra é cultuada pelos fiéis de outras regiões, no Nordeste, os calons são devotos dos santos regionais.

“Comandante dos ciganos de Souza”, Pedro Maia, 86 anos (também conhecido como Boca Rica, devido ao fato de ter os dentes todos capeados com ouro e platina), é devoto de Padre Cícero do Juazeiro. Na sua casa, em Sousa (PB), em meio às relíquias pessoais, destaca-se uma imagem de Padre Cícero, trazida do santuário do Horto, no Juazeiro. “Meu padrinho é um homem de Deus. Se as pessoas soubessem dos poderes dele, conseguiam muitas dádivas”, diz o antigo líder dos calons.

No Rio Grande do Norte, a devoção a Frei Damião é grande “A gente teve muito contato com ele. O homem era um profeta, um santo, um sábio”, acredita Gonzaga, de Macau.

São Francisco é adorado por sua ligação com a natureza. “A gente, que sempre viveu no mato, tem muito a ver com seu estilo de vida e sua história”, diz José Kleber Soares, chefe dos calons de Serra Caiada, e que disse à Continente, em calé: Kilduve guirli kutuns (Que Deus vá com você).


No templo Pai Oxoce, Mãe Celeste (C) incorpora a cigana Milena

UMBANDA
O sincretismo religioso brasileiro fez com que os ciganos chegassem à umbanda, incorporando entidades da chamada linha oriental. No Recife, no Templo Espiritualista Pai Oxoce, no Ipsep, Maria Celeste Santos Silva comanda sessões em que entidades ciganas se encontram com pretos velhos, caboclos, boiadeiros e afins.

As sessões conduzidas pela cigana Milena, incorporada por Celeste, atraem centenas de pessoas. A aceitação do templo talvez se dê pelo “inusitado” em torno da sua criação: foi erguido num local onde havia sido montado um acampamento cigano.

“Era agosto de 1957, uma amiga chegou e me chamou: ‘Celeste, tem uns ciganos aqui perto, vamos lá!’ Fui só de curiosidade. De repente, uma cigana me olhou e disse: ‘Quero falar contigo. Estás pisando no solo sagrado: aqui vai construir seu templo’. Tirou do bolso um lacinho e falou: ‘Guarde, meu nome é Rosa’.”

Celeste foi iniciada no candomblé e abriu um centro. Depois de décadas, soube que havia um terreno à venda. No momento que ia sair para visitá-lo, uma bolsa caiu no seu colo e o lacinho pulou dela. Não tardou para descobrir que o terreno era o mesmo da cigana. Ao comprá-lo, teve uma visão: Rosa na porta, sorrindo.“Entendi tudo na hora”, diz Celeste, que desde 1988, promove reuniões com os ciganos. Ela afirma: “Os ciganos tornaram minha vida uma bênção”. 

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