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Música: Ritmos de um rico simbolismo instrumental

Repertório concebido para a formação da Orquestra e do Quinteto Armorial delineou toda a estética sonora do movimento

TEXTO Carlos Eduardo Amaral

01 de Outubro de 2010

Antônio Nóbrega, ex-integrante do Quinteto Armorial que se consagrou em carreira solo

Antônio Nóbrega, ex-integrante do Quinteto Armorial que se consagrou em carreira solo

Foto Roberta Guimarães

[conteúdo vinculado à reportagem de capa | ed. 118 | outubro 2010]

O Movimento Armorial pode não ser
mais organizado e ativo como nos anos 1970, quando surgiu, como uma celebrada proposta de releitura das artes populares rurais nordestinas pelas artes eruditas, mas perdurou, pelo menos na música, como uma influente corrente estética em Pernambuco até a eclosão do Manguebeat nos anos 1990. E mesmo quando esse ambiente musical efervescia e dava novo rumo à música popular, grupos como Comadre Fulozinha e Mestre Ambrósio desenvolviam seus estilos inspirados pelo legado iniciado por dois antológicos grupos eruditos: a Orquestra Armorial e o Quinteto Armorial.

Ambos, nascidos pelo beneplácito de Ariano Suassuna, serviram de parâmetro daquilo que conhecemos como música armorial. No entanto, as composições sob essa estética, à primeira vista, nada mais seriam do que uma contribuição anacrônica, porque vinda de músicos de orientação nacionalista, quando essa vertente havia perdido força na década de 1960, e compositores como Camargo Guarnieri (1907-1993) e Francisco Mignone (1897-1986) já haviam “universalizado” suas linguagens.

A chave para a compreensão do diferencial da música armorial encontra-se no texto de apresentação de um dos discos da Orquestra Armorial, que expõe o simbolismo norteador da sua formação instrumental, aplicado por extensão e a posteriori ao Quinteto Armorial. Tudo está explicado em letras miúdas, embora até hoje pouco percebido, na contracapa de Chamada (1975), pelo maestro e violinista Cussy de Almeida.

Os duelos de rabequeiros, reproduzidos na antiga casa de Ariano Suassuna, em Casa Forte, por Cussy ao violino e Jarbas Maciel à viola (molde que pode ser observado mais notadamente no primeiro movimento da suíte Sem lei nem rei, de Capiba) deram origem à ideia de expandir os desafios, cavalos-marinhos e xaxados para um conjunto maior e fomentá-lo com repertório original. Para tanto, contrabaixos e violoncelos teriam de se somar a violinos e violas por imperativos de harmonia e timbre.


Ariano suassuna, à frente do Quinteto Armorial, que tomou como ponto de partida a música barroca e renascentista. Foto: Álbum de família

Como a Orquestra Armorial haveria de executar peças inspiradas em outras manifestações, a exemplo das bandas de pífanos e repentes, ela incorporou um duo de flautas transversais (em equivalência às flautas de taboca), um cravo (pelo parentesco sonoro com a viola caipira, embora essa fosse eventualmente requisitada) e percussão básica: triângulo, zabumba, pratos e caixa (um mínimo múltiplo comum da percussão de trio pé-de-serra com a de terno de pífanos). As flautas de taboca e a rabeca foram rejeitadas após algum tempo em virtude da instabilidade de afinação ante os instrumentos eruditos.

Fundada a orquestra em 1970, tomou corpo em seguida o Quinteto Armorial, que decidiu reaplicar esse princípio simbólico em um conjunto de câmara aos moldes de um que existiu em 1969 e do qual faziam parte Cussy e Jarbas Maciel. Curiosamente, o Quinteto Armorial, que reintegrou os instrumentos populares sem espaço na orquestra, tomou como ponto de partida a música barroca e renascentista, para aos poucos gerar peças baseadas na música folclórica. Do grupo faziam parte: violino (ora substituído pela rabeca), violão (para dar base harmônica), viola caipira (não mais trocada pelo cravo), flauta ou pífano, e o inédito marimbau, na percussão.

EVOLUÇÃO
A adoção, por parte de compositores eruditos, de ritmos folclóricos e escalas modais (de intervalos característicos entre as notas) presentes na música rural nordestina era recorrente nos anos 1930-1950, mas César Guerra Peixe (1914-1993) ressaltou em maior escala a aproximação de timbres entre instrumentos populares e eruditos – vide Inúbia do cabocolinho, para flauta e piano, e De viola e de rabeca (depois reescrita por Clóvis Pereira e rebatizada de Mourão), para violão e violino. Não por acaso, Guerra Peixe foi professor de Capiba, Clóvis Pereira e Jarbas Maciel (e também de Sivuca), por volta de 1950.


O Quinteto Armorial abriu caminho para grupos como o Quinteto Violado.
Foto: Fundação Quinteto Violado

Se o Movimento Armorial construiu todo um imaginário com base nas artes populares rurais nordestinas e enfatizou as raízes ibéricas dessas artes, com o tempo, foi preciso que algumas de suas premissas se revisassem ou evoluíssem, de modo que a natureza regionalista do movimento não o associasse somente às fontes artísticas da região Nordeste – por mais que essas ainda sejam as fontes seminais das obras armoriais. Na música armorial, essas premissas de fato foram depuradas.

Primeiro, um dualismo aparente logo se converteu em um frutífero caminho de mão dupla. Não apenas as matrizes da música folclórica foram adotadas pela música erudita, no que trabalhava a Orquestra Armorial (e depois o Quinteto Itacoatiara e o Grupo Orange), como também o inverso ocorreu: os instrumentos e formas da música erudita puderam ser incorporados pela popular, tendo o Quinteto Armorial, mesmo sendo um grupo formado por músicos eruditos, aberto caminho para o Quinteto Violado, a Orquestra Popular do Recife, o Quarteto Romançal e a Banda de Pau e Corda.

Segundo, a condição de movimento artístico oficial do Estado de Pernambuco expirou e alguns conjuntos ligados aos projetos de divulgação da música armorial cessaram as atividades, mas a estética musical armorial já estava consolidada. Paralelamente, o não estímulo aos artistas folclóricos, posto que somente artistas de formação musical acadêmica se projetaram durante a ascensão do armorial, também foi superado e, hoje, pode-se ver rabequeiros como Seu Luiz Paixão dividir o palco com violinistas e afins.


Na contracapa do disco Chamada (1975), da Orquestra Armorial, há um texto que explica a música. Imagem: Reprodução

O regionalismo centrado no Nordeste igualmente se expandiu e o ideário armorial influenciou músicos de outras regiões, como o maestro Leandro Carvalho, que criou a Orquestra do Estado de Mato Grosso, o violinista José Eduardo Gramani, pesquisador de repertório e luteria de rabeca no Paraná e em São Paulo, e o violeiro Roberto Correa, em Minas Gerais. Da mesma forma, o frevo, inicialmente preterido pela Orquestra Armorial e pelo Quinteto Armorial, por se tratar de um gênero popular urbano e não modal, passou a ser valorizado.

Desfez-se, sobretudo, o desequilíbrio entre as matrizes musicais negras, as ibéricas e as indígenas: mal se encontravam nas “obras clássicas” da música armorial referências a manifestações do porte do maracatu nação, da congada e do banzo. Cussy de Almeida, pessoalmente, reviu essa lacuna ao incluir esses três gêneros em sua Missa do Descobrimento (2001). Assim, a música armorial poderia fazer, com propriedade, apologia à mestiçagem cultural – mesmo porque a cultura ibérica, ancestral direta da cultura sertaneja nordestina, era exaltada por Ariano Suassuna pela sua hibridização judaico-árabe-cristã, refletida na música modal.

Já a premissa mais polêmica da música armorial, a rejeição à música popular massiva norte-americana “em defesa da autêntica música brasileira” (misto de proscrição à la Adorno e elogio marioandradiano), é a que encontra mais respaldo no senso comum – basta lembrarmos as críticas à atual música sertaneja, que se converteu num country sem nenhuma identificação com a cultura caipira –, ainda que o Manguebeat tenha achado uma inteligente solução para esse falso dilema em Pernambuco. Mas o encanto que a música armorial desperta transcende essas discussões estéticas, já que reside em ritmos e modos revestidos sob um rico simbolismo instrumental. 

CARLOS EDUARDO AMARAL, mestrando em Comunicação Social pela uFPE e crítico de música.

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