Amor – palavra que tão frequentemente (e impunemente!) pronunciamos –, se prestarmos a devida atenção, não apresenta sempre o mesmo sentido em qualquer situação em que a empregamos. Como toda palavra, seu significado depende fundamentalmente do uso, do contexto cultural e vital em que é proferida. Escutamos hoje a palavra “amor” e nos remetemos quase que automaticamente ao ideal do amor romântico: os casais apaixonados, as juras de fidelidade eterna e a instituição do matrimônio heterossexual e monogâmico. Outros sentidos também podem aparecer: um bem-querer intensificado, o desejo erótico, a admiração, a ternura, o companheirismo, o vínculo familiar etc. É difícil estabelecer, como costumam almejar os teóricos ao lidar com conceitos, uma definição fixa e unívoca.
Contudo, a diversidade de usos da palavra amor não precisa ser encarada, necessariamente, como um problema: pode ser vista como uma riqueza da linguagem humana, que busca adequar-se ao espírito de cada época e circunstância. As metáforas amorosas – seja na filosofia ou na linguagem comum – parecem não cessar de gerar significados úteis, sugestivos e esteticamente valiosos.
Não é incomum encontrar, se nos restringirmos ao âmbito da filosofia, pensadores que se referem ao amor como um meio de projetar conceitualmente suas próprias noções essencialistas sobre a verdade ideal, a justiça universal, a virtude suprema, e mesmo sobre Deus e muitas outras noções “superiores”. De forma geral, os filósofos têm usado o amor para elaborar construções intelectuais grandiosas e abstratas, que em quase nada se parecem com a maneira com que as pessoas comuns, na linguagem cotidiana, se referem a esse sentimento. As variadas formas com que usamos a palavra “amar” na linguagem natural, por um lado, e a forma teórica – baseada em sistematizações filosóficas –, por outro, acabaram se convertendo em coisas bem diferentes, apesar de não completamente estranhas entre si.
Para Platão, o amor surge da tensão entre
abundância e necessidade. Imagem: Reprodução
Se quisermos apresentar um brevíssimo panorama de como esse conceito foi tratado historicamente no Ocidente, particularmente no âmbito filosófico, é possível, esquematicamente, falar de duas grandes vertentes semânticas, Eros e Ágape, que surgiram e se desenvolveram a partir de duas fontes culturais fundamentais: o pensamento greco-latino da Antiguidade Clássica e a tradição religiosa judaico-cristã. Entre os gregos, os debates em torno do amor priorizaram o viés erótico, num sentido mais dilatado do que o que manejamos hoje em dia: a influência de Eros na afetividade começava nos impulsos instintivos em direção aos corpos belos e acabava num âmbito transcendente, divino. Em Platão, por exemplo, para quem o amor surge da tensão entre abundância e necessidade – o deus Eros é apresentado como filho da riqueza (Poros) e da carência (Penia) – o amor se mostra como desejo em permanente e penosa busca de satisfação.
É importante registrar que, ainda entre os gregos, podemos relacionar termos afins como filia, aphrodisia, epithemia, que podem ser traduzidos sem grandes inconvenientes como formas de reconhecer o amor que compreendemos ainda hoje (fraternal, sexual, desejante). Aristóteles, por exemplo, nunca se refere ao amor erótico: prefere discorrer a respeito da superioridade ética da relação de amor entre amigos, entre iguais.
COMPASSIVO
Já a noção de Ágape, que também aparece em textos platônicos, como no arquifamoso O banquete (texto em que muitas outras definições de amor aparecem nas vozes dos diversos personagens do diálogo, provando que a riqueza semântica já existia mesmo na Grécia), teve uma interessante trajetória conceitual após sua assimilação pelo cristianismo. Seu modelo passa a ser o amor divino, pleno e perfeito, outorgado pelo criador aos homens, ainda que estes, imperfeitos e originalmente em pecado, não o mereçam. A imagem do filho de Deus crucificado, que doa a vida por um amor compassivo e não correspondido à humanidade é a máxima representação dessa linhagem conceitual.
É interessante perceber que, já finda a Idade Média, a concepção amorosa de um racionalista como Baruch Espinosa, um dos pensadores fundamentais da modernidade, ainda não se difere muito, em essência, da visão bíblica da Ágape grega: o ato de amor consiste num gesto verdadeiro de empatia, no compartilhamento das “alegrias e tristezas dos outros como se fossem próprias”, assim como aparece em “amarás a teu próximo como a ti mesmo”. Segundo suas palavras: “Se imaginamos que alguém afeta de alegria a coisa que amamos, seremos afetados de amor para ele. Se imaginamos, pelo contrário, que afeta de tristeza, seremos, pelo contrário, afetados também de ódio para ele”. A ética espinosiana se refere ainda a um tipo de amor particular: o amor intelectual a Deus, que se traduz na necessidade humana de buscar o sentido de tudo que o rodeia.
Depois de ser assimilado pelo cristianismo, Ágape passa a ser o amor divino, pleno e perfeito. Imagem: Reprodução
O pensamento filosófico mais recente além de, por um lado, seguir considerando o amor a partir de vieses teológicos e metafísicos tradicionais, por outro, apresentou uma inflexão importante: os estudos acerca do fenômeno amoroso passaram a adotar em grande medida pontos de vista psicológicos (emocional) e sociológicos (modo de relação dos seres humanos em sociedade). A partir de então algumas questões passaram a ser debatidas reiteradamente. Em primeiro lugar, discutiu-se a validez da consideração da natureza puramente subjetiva do amor em oposição à noção de que o sentimento surge da descoberta de qualidades e valores objetivos no ser amado.
Outra controvérsia recorrente, sobretudo a partir da psicanálise freudiana, refere-se à ideia de que o amor pode ser explicado simplesmente através de nossa estrutura psicofisiológica (o amor como epifenômeno social do desejo sexual) ou se possui autonomia em relação ao meramente orgânico, quer dizer, se ele transcende uma explicação material por ser irredutível à tal. Outra linha de debate levanta as seguintes premissas, excludentes entre si: ou o amor é resultado de uma cadeia de processos imutáveis, baseados em uma natureza humana universal e estável; ou é fruto das contingências históricas, dos valores circunstanciais que o homem inventa para viver em comunidade – José Ortega y Gasset, por exemplo, afirmava que nossa ideia de amor surgiu num período determinado da história e que de certa maneira é uma “invenção literária”.
A visão mais comum que temos hoje a respeito do amor parece ter sua origem nos padrões do amor cortês tardo-medieval, berço do ideal romântico. Desde então, muitos pensadores têm pautado suas especulações sobre o fenômeno a partir da perspectiva passional, dentro do enquadramento de uma espécie de antropologia psicológica, tal como acontece em Descartes e Hobbes. Outros, como Rousseau e Schopenhauer (para quem todo amor é amor-próprio), apresentam um ponto de vista crítico, afirmando o caráter irracional das paixões amorosas: o amor como prisão, como armadilha da natureza, operando através dos nossos baixos instintos, para a consecução de seus próprios fins.
A diversidade semântica do amor no âmbito filosófico, obviamente, não cessa por aqui. Contudo, parece mais produtivo terminar este texto com uma provocação à filosofia do que com mais definições. Tal variedade de usos e concepções não deveria servir como um alerta no sentido de que a busca teórica por uma significação última, essencialista e definitiva para o amor é um empreendimento estéril? O amor é mais bem-compreendido justamente como o elogio humano da contingência enquanto as teorias sobre o amor são, em sua maioria, a negação justamente dessa contingência, motivada pela ilusão de permanência.
EDUARDO CÉSAR MAIA, jornalista, professor universitário, mestre e doutor em Teoria da Literatura pela UFPE.
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