A falta de um entendimento evidente e comum não tem, contudo, impedido o romantismo de espalhar seu ideal máximo de felicidade. A necessidade do amor para a realização pessoal é a premissa da visão romântica do mundo, responsável por um legado simbólico resistente e que se multiplica como o mais famoso preceito bíblico. Nas últimas décadas, graças à ampliação do alcance da produção cultural, o amor está no ar de forma epidêmica: na mídia, no desejo de consumo, nas prateleiras, no calendário, nos bares, na moda, na TV, nas redes sociais, na música, na literatura, no cinema. E na mente de cada um parece ter sido depositada a noção de que sem aquele amor arquetípico, de vitrine, do comercial de shopping, a própria vida não vale a pena. Como a felicidade não chega porque o consumo do desejo não cessa, vai faltando sentido para muita gente, cada vez mais atraída pelos apelos do romantismo amoroso. O círculo se fecha, e não se consegue sair dele.
INVENÇÃO DO FOGO
“Adoro um amor inventado...”, cantou Cazuza. No livro de referência para qualquer um que se interesse pelo tema, Sem fraude nem favor – estudos sobre o amor romântico, Jurandir Freire Costa é taxativo: “O amor é uma crença emocional e, como toda crença, pode ser mantida, alterada, dispensada, trocada, melhorada, piorada ou abolida. O amor foi inventado como o fogo, a roda, o casamento, a medicina, o fabrico do pão, a arte erótica chinesa, o computador, o cuidado com o próximo, as heresias, a democracia, o nazismo, os deuses e as diversas imagens do universo”. Linhas adiante, o autor é otimista: para ele, as convicções amorosas podem ser aperfeiçoadas.
Na introdução da obra, o psicanalista recorda uma cena de filme para mostrar como a cultura retrata a busca amorosa. Em Terra das sombras, a moral é clara, aponta Jurandir Freire: “Sem amor, estamos amputados de nossa melhor parte. A vida pode até ser mais tranquila e livre de dores, quando não amamos. Mas trata-se de uma paz de cinzas. Nada substitui a felicidade erótica, nada traz o alento do amor-paixão romântico correspondido. Diante dele, tudo empalidece; sem ele, até o que engrandece perde a razão de ser”.
E nada impregna mais a contemporaneidade do que o romantismo amoroso, na exacerbação de cenários dignos de filmes, novelas e anúncios em que o final feliz é o princípio regente de uma perseguição infinda. “A nossa cultura exalta o amor romântico e isso compromete as relações com o mundo”, anota a publicitária Ana Lima. “Vivemos o mundo da busca pelos contos de fadas, a sociedade do inalcançável.”
“Idealizamos o objeto de amor para perceber se somos amáveis aos olhos dos nossos ideais” (Contardo Calligaris). Foto: Divulgação
Em um de seus romances, Paisagem com dromedário, Carola Saavedra fala através de uma personagem: “Sentimos apenas o que nos foi dito que era possível sentir, fazemos apenas o que se vislumbra como uma possibilidade”. Deparamo-nos com o confronto entre as demandas abertas e os limites impostos pela mesma herança cultural.
Para o professor e pesquisador da Universidade Católica de Salvador, José Menezes, a transmissão de valores enraizados no romantismo é a causa de tudo. De acordo com ele, que ensina no mestrado e no doutorado em Família na Sociedade Contemporânea, o correto é analisar romantismos, no plural, tal a variedade de significados que o termo assumiu. “Em sua forma mais elaborada, trata-se do movimento filosófico-cultural que matizou as produções de entre fins do século 18 e todo o século 19. O exemplo mais desenhado é Goethe, que expõe, particularmente em Os sofrimentos do jovem Werther, a aspiração desesperada dos amantes pela completude através da experiência amorosa. Ou, se quisermos, o romantismo expressa a busca dos amantes por uma unidade absoluta na experiência amorosa. Unidade absoluta: os dois sujeitos se tornam um.”
A psicanálise lançou um balde de água fria na pretensão romântica. Freud e Lacan chamaram a emoção de impossível. Em suas Cartas a um jovem terapeuta, Contardo Calligaris expõe a mecânica do problema: “Quando nos apaixonamos por alguém, a coisa funciona assim: nós lhe atribuímos qualidades, dons e aptidões que ele ou ela, eventualmente, não têm; em suma, idealizamos nosso objeto de amor”, define, acrescentando que “idealizamos nosso objeto de amor para verificar que somos amáveis aos olhos de nossos próprios ideais”.
A cultura se transforma, então, num caldeirão de idealizações, como sugere o professor José Menezes. “Na música popular de todos os países (pensemos o rock, por exemplo), na poesia, nas artes plásticas, no teatro, no romance, essa ideia de identificar o romântico como aquele que adere com suas ventosas amorosas em toda a superfície do outro tem certa correspondência com o desejo de completude absoluta. Quem de nós não conhece a famosa ‘fossa’, ou identifica rapidamente aquilo que vulgarmente se nomeia como ‘dor de corno’? O que essas duas menções aqui apontam? Profundos sentimentos de frustração pela ruptura de uma relação que se esperava ‘eterna’, duradoura, com correspondência e reciprocidade de fidelidade, centralidade na vida etc.”
É na celebração de uma projeção idealizada que se fundamentam os produtos culturais de hoje, reconduzindo ao turbilhão de informações em rede o ideário da paixão romântica.
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