Manter as esposas enclausuradas significava trancar seus corpos, sob a justificativa de protegê-las e resguardá-las da imaginação alheia. Guardadas e cobertas por muitas camadas de roupas – isso se verificando não apenas na Colônia, mas, sobretudo, no Império e na República –, as mulheres eram itens de posse e prazer. A figura feminina era apontada como excitadora e sua indumentária era o reforço a essa imagem, numa visão que se assemelha àquela que justifica a violência contra mulheres que vestem minissaias e shortinhos. Nesse sentido, a historiadora Mary Del Priori escreve, em Corpo a corpo com a mulher, que a roupa “revestindo as partes mais cobiçadas da anatomia, constituía, ao mesmo tempo, um instrumento decisivo e um obstáculo à sedução”, acrescentando, ainda, que “o pudor aumentava a cobiça que deveria atenuar”.
QUIETINHAS OU EMPODERADAS
O recato e o confinamento são os comportamentos esperados da “Mariazinha”, muito antes de a psicóloga Marta Suplicy definir essa categoria, uma referência ao arquétipo da Mãe, bondosa, resignada, virginal. A historiadora Michelle Perrot afirma, no livro As mulheres ou os silêncios da história, que esse comportamento recolhido implicava uma não comunicabilidade: “Uma mulher conveniente não se queixa, não faz confidências, exceto para as católicas, a seu confessor, não se entrega. O pudor é sua virtude, o silêncio sua honra, a ponto de se tornar uma segunda natureza. A impossibilidade de falar de si mesma acaba por abolir o seu próprio ser, ou ao menos, o que se pode saber dele”. Dessa forma, o entendimento do gênero, durante muito tempo, esteve amparado na contraposição Eva x Maria, que se reafirma quando a sociedade estabelece demarcações ou o embate entre cachorras x santinhas.
Tanto um quanto outro estereótipo pagam seu preço. Aquelas que optaram pela vida regrada, e renunciaram ao próprio prazer e liberdade, recolheram-se para evitar enfrentamentos e exposições, à custa da domesticação do corpo e, muitas vezes, do desconhecimento de si. Por outro lado, as que fogem às regras podem até povoar o imaginário feminino como heroínas glamorizadas e inspirar movimentos de igualdade de gênero, mas sofrem achincalhamentos públicos, escandalizam porque lideram um tipo de conquista sutil, mas decisiva: o empoderamento do corpo.
A atriz Leila Diniz chocou a sociedade quando posou grávida, de biquíni, para fotografias. Foto: Reprodução
Para ficar apenas em três exemplos clássicos do século 20, temos, na década de 1930, Patrícia Galvão, a Pagu, com sua vestimenta provocadora, de blusas transparentes; uma fumante que dizia palavrões. Na década de 1950, Luz del Fuego, na linha de frente do pensamento naturista e do vegetarianismo. E, na década de 1970, Leila Diniz, imortalizada numa fotografia em que posa grávida, de biquíni, ela mesma uma desbocada célebre. As três, vistas como extravagantes, expuseram, com seus corpos e atitudes, o moralismo e a perversidade a que submetiam mulheres que desafiavam o status quo.
Nessa segunda década dos 2000, para a mulher moderna que conquistou direitos políticos, sucesso profissional e uma caixinha de contraceptivos mensal, questões dessa natureza parecem superadas, pois os corpos dóceis teriam ficado no passado. Entretanto, quando o assunto é a mulher, tal afirmação soa frágil. Porque estão no cotidiano as evidências de que não aprendemos a lidar com o corpo, humanizando-o. No máximo, descobrimos formas eficientes de torná-lo mercadoria.
Para discutir a suposição da igualdade alcançada, não é necessário recorrer aos episódios extremados de países como o Egito, onde Aliaa Magda Elmahdy foi ameaçada de morte por publicar autorretratos nus, num embate contra a sociedade machista do seu país. Podemos nos ater à realidade brasileira, para percebermos que ainda há muito a se reparar.
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