Obviamente, é tolice tratar a preocupação com o corpo como se fosse exclusiva do contemporâneo. Basta lembrarmo-nos da importância do talhe na Idade Moderna, conquistado pelo aperto do torso pelo espartilho. Essa peça, parente próxima das atuais cintas elásticas, já orientava a estética da compostura e a ética da contração. Mary Del Priore (Corpo a corpo com a mulher) avalia esse fenômeno como uma “vitória da razão sobre a natureza, da fixidez contra os movimentos intempestivos, da impassibilidade sobre a emoção”. Assim, a padronização exemplar não é nova. Mas o que muda, a partir do século 20 – além do padrão de beleza, que passa a ser o das supermagras –, é o grau de obsessão por essa “perfeição” moldada.
Ao mesmo tempo em que esse padrão se estabelece, os corpos femininos começam a circular nus ou seminus nas revistas, na TV ou no cinema, mas seguindo uma lógica de legitimação própria da cultura machista. Eles devem estar exibidos a serviço do gozo dos homens, ser de mulheres que “não são pra casar”, exuberantes e, antes de tudo, jovens.
A tríade beleza-saúde-juventude se torna, simultaneamente, a utopia e a distopia de toda uma geração que não pode engordar, ter celulite ou estria, atrasar a depilação e deixar as unhas por fazer, pois precisa alcançar o padrão photoshop de qualidade. O mais chocante, no entanto, está destinado ao seu “futuro”: a mulher não pode envelhecer, porque as marcas do tempo, os sulcos na pele, os fios brancos, tudo isso é old-fashioned e desagradável. Contra todos esses “problemas” vivenciados pelo gênero, o mercado e as tecnologias associadas à estética oferecem soluções, com intervenções que vão de cremes milagrosos a invasivas cirurgias “corretivas”.
A tendência de converter mulheres em bibelôs eróticos confunde a opinião pública, que, muitas vezes, interpretando o comportamento feminino apenas em seus aspectos mais superficiais, midiáticos e publicitários, acredita que vivemos numa sociedade verdadeiramente liberal.
MANIFESTO
Para afirmar que, no Brasil, o machismo e o propalado “culto à bunda” formam a mesma face da moeda – a da opressão –, a cantora Karina Buhr lançou manifesto nas redes sociais, no último Dia da Mulher, no qual aparecia com os seios despidos junto às cantoras Naná Rizzini e Marina Gasolina, à atriz Mariah Teixeira, e ao músico Adriano Cintra. Compondo o ensaio fotográfico, havia mensagens de protesto questionando hábitos e hipocrisias culturais: “Sua blusa é uma miniburca, a burca dela é só um blusão”.
Manifesto contra o machismo, liderado por Karina Buhr
(embaixo, à esq.). Foto: Marcos Vilas Boas
Sobre o paradoxo brasileiro – que combina a difusão de nudez e pornografia à persistência do conservadorismo –, Karina acredita que o quadro é coerente: “O moralismo precisa das ‘putas’, das mulheres que ele exalta na hora de falar de sexo quente, das que chama de ‘vadias’, e também das santas e traídas. O culto é ‘à bunda’ e não à mulher ou à liberdade da nudez feminina”.
A situação torna-se mais tensa em zonas fronteiriças, quando mulheres adotam comportamentos acintosos – ambíguos – e desorientam até mesmo observadores progressistas e feministas de longa data. Suelen, personagem da novela Avenida Brasil, e a polêmica Valesca Popozuda instigam questões sobre se estão realmente assumindo seus corpos e desejos ou se estão submissas à própria expectativa do “macho”. Não se trata de julgar a qualidade artística de Valesca, mas de reconhecer que ela incomoda ao falar de sexo sem floreios, sem enfeites, na forma “rasteira”, e que o choque origina-se no fato de haver uma mulher por trás daquelas ideias e palavras chulas.
A cantora Karina Buhr também é enfática a esse respeito: “Uma mulher que se veste como quer, que sai com quem quer e quantas vezes quer, sem se preocupar com o que vão falar, é uma mulher totalmente livre, e ponto. Essa visão de que ela é uma vítima, de que vai sempre ser usada, é machista, como se ela não pudesse escolher ‘pegar geral’”.
A historiadora, e líder do Núcleo de Pesquisa e Estudos em Gênero (Nupege) da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE), Natália Barros, concorda com a artista: “A ambiguidade da figura da ‘periguete’ reside na sua potência desestabilizadora dos valores morais comumente atribuídos ao feminino. Ela desafia as classificações e incomoda homens e mulheres, não esconde seu gosto pelo sexo, mesmo que casual; sabe que seu corpo inspira desejo e o usa deliberadamente como arma de conquista”, avalia.
É curioso perceber como os xingamentos mais ofensivos utilizados contra as mulheres remetem quase sempre à sua postura ativa em relação à sexualidade: “piranha”, “galinha”. No artigo Xingamentos: entre a ofensa e a erótica, a pesquisadora Valeska Zanello conclui que essas detratações “apontam para o modo de organização de uma sociedade, mostrando uma forma de regramento libidinal que constrói o que pode ser desejado e de que maneira”. Pelo visto, as chamadas periguetes de hoje são tão incompreendidas e rechaçadas quanto foram Pagu e Leila Diniz em outros tempos, justamente por desejarem e se expressarem à sua maneira, fora dos rótulos impostos.
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