reprodução da pintura 'Maja Nua', de Francisco de Goya
Imagem Reprodução
8 de julho de 1983. “... sou um pouco inocência em certas coisas... coisas de mulher brasileira, mal-esclarecida em assuntos sexuais. Apesar de ter tido um bebê, foi depois do seu nascimento que descobri a diferença entre útero e ovário. Antes do bebê nascer, eu achava que ele ficava no ovário da mulher. Em minha mente, desenhava-se um grande ovo, semelhante ao da galinha, de cujo ovo saem os bebês que digo, os pintinhos”. É improvável que, hoje em dia, as mulheres mantenham um grau de desconhecimento tão agudo do próprio corpo. Mas, para a moradora do Mato Grosso do Sul de quem se reproduz a fala acima, essa foi uma questão real, partilhada com as espectadoras do TV Mulher, à época apresentado pela psicóloga e atual ministra da Cultura Marta Suplicy, que, posteriormente, reuniu e analisou depoimentos como o citado no seu livro De Mariazinha a Maria.
Se algumas interlocutoras do programa chegavam ao extremo de ignorar o funcionamento do seu aparelho reprodutor – parte do corpo feminino consagrada por abrigar a cria –, pode-se imaginar que o tópico da sexualidade, abordado sob o aspecto do prazer pessoal, era muito mais nebuloso. As “Mariazinhas”, termo usado por Marta Suplicy para denominar o modelo da mulher submissa e conformada, sequer se davam conta de que possuíam um corpo, imagine compreender que era possível a ele “relaxar e gozar” – expressão utilizada pela ex-apresentadora.
Há uma ponte entre a repressão do corpo e o desejo sexual da mulher brasileira, cuja origem não é difícil remontar, em se tratando de uma nação ocidental de formação cristã. Ainda que discuta essa tradição cultural pelas vias racionais e científicas, uma pessoa nascida nesse contexto estará a ele submetida. A Eva pecadora, representação “feminina” arraigada, tem marcado a mulher ao longo da História, dentro de um modelo social machista e patriarcal. Está no Gênesis (3:16) a condenação, fartamente citada como a palavra de um Deus punitivo: “Vou fazê-la sofrer muito em sua gravidez: entre dores, você dará à luz seus filhos; a paixão vai arrastar você para o marido, e ele a dominará”.
No Brasil Colônia, por exemplo, o discurso opressivo serviu à necessidade de se estabelecerem casamentos para povoar o país e se exercer o controle social sobre os moradores. Com o matrimônio, também se normatizava a vida da mulher, que, segundo o historiador Emanuel Araújo, no livro O teatro dos vícios – transgressão e transigência na sociedade urbana colonial, só deveria sair de casa em três ocasiões: para ser batizada, casar-se e ser enterrada. Mais um trecho da Bíblia, dessa vez retirado da Carta aos efésios (5:22-24), justificava as medidas adotadas: “As mulheres sejam submissas aos seus maridos, como ao Senhor. De fato, o marido é a cabeça da sua esposa, assim como Cristo, salvador do corpo, é a cabeça da Igreja. E assim como a Igreja está submissa a Cristo, assim também as mulheres sejam submissas em tudo aos seus maridos”.
Lilith, personagem feminina da mitologia babilônica em
gravura do artista britânico John Collier. Imagem: Reprodução
Manter as esposas enclausuradas significava trancar seus corpos, sob a justificativa de protegê-las e resguardá-las da imaginação alheia. Guardadas e cobertas por muitas camadas de roupas – isso se verificando não apenas na Colônia, mas, sobretudo, no Império e na República –, as mulheres eram itens de posse e prazer. A figura feminina era apontada como excitadora e sua indumentária era o reforço a essa imagem, numa visão que se assemelha àquela que justifica a violência contra mulheres que vestem minissaias e shortinhos. Nesse sentido, a historiadora Mary Del Priori escreve, em Corpo a corpo com a mulher, que a roupa “revestindo as partes mais cobiçadas da anatomia, constituía, ao mesmo tempo, um instrumento decisivo e um obstáculo à sedução”, acrescentando, ainda, que “o pudor aumentava a cobiça que deveria atenuar”.
QUIETINHAS OU EMPODERADAS
O recato e o confinamento são os comportamentos esperados da “Mariazinha”, muito antes de a psicóloga Marta Suplicy definir essa categoria, uma referência ao arquétipo da Mãe, bondosa, resignada, virginal. A historiadora Michelle Perrot afirma, no livro As mulheres ou os silêncios da história, que esse comportamento recolhido implicava uma não comunicabilidade: “Uma mulher conveniente não se queixa, não faz confidências, exceto para as católicas, a seu confessor, não se entrega. O pudor é sua virtude, o silêncio sua honra, a ponto de se tornar uma segunda natureza. A impossibilidade de falar de si mesma acaba por abolir o seu próprio ser, ou ao menos, o que se pode saber dele”. Dessa forma, o entendimento do gênero, durante muito tempo, esteve amparado na contraposição Eva x Maria, que se reafirma quando a sociedade estabelece demarcações ou o embate entre cachorras x santinhas.
Tanto um quanto outro estereótipo pagam seu preço. Aquelas que optaram pela vida regrada, e renunciaram ao próprio prazer e liberdade, recolheram-se para evitar enfrentamentos e exposições, à custa da domesticação do corpo e, muitas vezes, do desconhecimento de si. Por outro lado, as que fogem às regras podem até povoar o imaginário feminino como heroínas glamorizadas e inspirar movimentos de igualdade de gênero, mas sofrem achincalhamentos públicos, escandalizam porque lideram um tipo de conquista sutil, mas decisiva: o empoderamento do corpo.
A atriz Leila Diniz chocou a sociedade quando posou grávida, de biquíni, para fotografias. Foto: Reprodução
Para ficar apenas em três exemplos clássicos do século 20, temos, na década de 1930, Patrícia Galvão, a Pagu, com sua vestimenta provocadora, de blusas transparentes; uma fumante que dizia palavrões. Na década de 1950, Luz del Fuego, na linha de frente do pensamento naturista e do vegetarianismo. E, na década de 1970, Leila Diniz, imortalizada numa fotografia em que posa grávida, de biquíni, ela mesma uma desbocada célebre. As três, vistas como extravagantes, expuseram, com seus corpos e atitudes, o moralismo e a perversidade a que submetiam mulheres que desafiavam o status quo.
Nessa segunda década dos 2000, para a mulher moderna que conquistou direitos políticos, sucesso profissional e uma caixinha de contraceptivos mensal, questões dessa natureza parecem superadas, pois os corpos dóceis teriam ficado no passado. Entretanto, quando o assunto é a mulher, tal afirmação soa frágil. Porque estão no cotidiano as evidências de que não aprendemos a lidar com o corpo, humanizando-o. No máximo, descobrimos formas eficientes de torná-lo mercadoria.
Para discutir a suposição da igualdade alcançada, não é necessário recorrer aos episódios extremados de países como o Egito, onde Aliaa Magda Elmahdy foi ameaçada de morte por publicar autorretratos nus, num embate contra a sociedade machista do seu país. Podemos nos ater à realidade brasileira, para percebermos que ainda há muito a se reparar.
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