Livros não são para dar lição, mas para imaginar
Obras voltadas para o público infantojuvenil valorizam o diálogo com esses leitores, através de uma escrita que respeita sua sensibilidade e sua inteligência
TEXTO Isabelle Câmara
01 de Outubro de 2012
Livro 'O mar de Fiote' traz texto e ilustrações de Mariângela Haddad
Imagem Reprodução
Quando as páginas de um livro infantil se abrem, abrem-se as possibilidades de criação de um novo mundo, cheio de aventuras, mistérios, fantasias, imaginação e descobertas. Também, abrem-se as chances de surgimento de um autor, aquele que, em contato com a obra, toma consciência do mundo concreto que o cerca e pode escrever sobre seu próprio conhecimento, de maneira receptiva, dialógica e criadora; significando, transformando e ampliando sua experiência de vida.
De acordo com instituições ligadas à educação, a leitura na infância desenvolve o repertório pessoal e profissional, aguça o senso crítico, amplia o conhecimento geral, aumenta o vocabulário, estimula a criatividade, emociona e causa impacto, muda a vida e facilita a escrita.
Mas a consciência acerca da importância da leitura na infância é recente. Até bem pouco tempo, a literatura infantil era tida como subliteratura, vista pelos adultos como um brinquedo – ainda que, ao longo da história, os brinquedos tenham ocupado lugares mais nobres nas famílias e nas sociedades – ou entretenimento. A valorização do gênero como formador de consciências é recente, embora Carl Jung defenda, há mais de 60 anos, que os contos de fadas se constituíram, através dos séculos, como instrumentos para a expressão do pensamento mítico, perpetuando-se no tempo por desempenharem uma função psíquica importante no processo de individuação.
Somente no século 21, a literatura infantil ganhou a primeira fila nas grandes editoras do país e vem sendo incentivada, por meio de concursos, selos e grandes compras governamentais, para usos em sala de aula. Seguindo essa tendência, a Companhia Editora de Pernambuco – Cepe criou o Concurso Cepe de Literatura Infantil e Juvenil, de âmbito nacional. No primeiro certame, realizado em 2010, foram inscritas 435 obras, das quais 12 foram publicadas. No segundo, realizado em 2011, foram 333 obras concorrentes, das quais seis foram selecionadas.
A coleção 2012 foi lançada em agosto passado, num evento no Museu do Estado de Pernambuco, e os autores premiados na categoria Infantil foram a mineira Mariângela Haddad, com o livro O mar de Fiote, com o primeiro lugar; a jornalista pernambucana Adriana Victor, com Maria das vontades, em segundo; e a cearense Aline Busson, com O hipopótamo que tinha ideias demais, na terceira posição.
Cau Gomez ilustra livro de Pedro Henrique Barros. Imagem: Reprodução
Na modalidade Juvenil, foram premiados o carioca Pedro Henrique Barros, com O dia em que os gatos aprenderam a tocar jazz, em primeiro lugar; o também carioca João Paulo Vaz, com A valente princesa Valéria, na segunda posição; e a paulista Viviane Veiga Távora, com O decifrador de poemas, na terceira. A coleção inclui ainda A casa mágica, de Maria Amélia de Almeida, que não foi selecionada no concurso, mas compõe o conjunto de obras.
Editar livros para a criança é pensar a criança, investigar e pôr em prática o compromisso que se tem em selecionar livros e publicá-los para esse público. Nesse sentido, o concurso da Cepe parece estar buscando “o caminho das letras”. Em um encontro com o escritor Ilan Brenman, durante o programa Literato, produzido pelo Centro Cultural Banco do Nordeste, em Fortaleza (CE), ele defendeu uma literatura infantil e juvenil livre da ideologia do “politicamente correto”, que não se prenda ao interesse de “dar lições” ou moralizar a criança. Brenman, que tem mais de 50 livros publicados, é adepto de uma escrita que respeita a inteligência e a sensibilidade da criança e do jovem leitor.
E criança precisa ser tratada como tal. E assim é em O mar de Fiote, A valente princesa Valéria e O decifrador de poemas, livros que, cada um em sua categoria e à sua maneira, estimulam os sentimentos e a cognição dos pequenos leitores. O mar de Fiote apresenta uma narrativa cativante, apesar de extensa para os mais novos, que tem o único compromisso de encantar, fazendo referências ao imaginário infantil: o chapéu de papel, os medos, o cachorro, os mundos paralelos, as irmãs chatas, o mar e o desejo de navegar.
Poético, ele mesmo, O decifrador de poemas narra a história de dois gêmeos que ficam órfãos e, no orfanato, criam uma engenhoca que batizam de “decifrador de poemas”. E é nos versos de Fernando Pessoa, Alberto Caeiro, Álvaro de Campos, Elias José e Tatiana Belinky que eles encontram a cura para as suas tristezas e inquietações – além de uma nova família.
Quanto ao A valente princesa Valéria, teria sido ótimo se o roteirista do filme Valente, de Walt Disney, recentemente visto no Brasil, tivesse lido esse livro antes de escrever seu roteiro. A obra literária é o famoso conto de fadas às avessas, no qual a princesa salva o príncipe (que vira sapo e prefere o estado animal por um tempo) da bruxa-dragão e até dele mesmo: da acomodação, da gula, da baixa autoestima e da tristeza, mas sem apelos psicológicos. No fim das contas, salvam-se os dois: ele, de tanto temor, ela, da impulsividade.
Ilustração de Simone Mendes para o livro Maria das vontades, de Adriana Victor.
Imagem: Reprodução
Já O dia em que os gatos aprenderam a tocar jazz tem um ritmo vibrante, empolgante, noturno, que soa como o próprio jazz, além de dar dicas sobre a história do gênero musical, mas traz uma linguagem muito mais dos blogs, do mundo virtual, que dos livros. Maria das vontades parece trazer em si mesmo a vontade de salvar a criançada. Como à obra falta uma pequena apresentação da personagem-título, a sensação que fica é a de que, para Maria, resta a lição, antes mesmo da trela, da bagunça.
A casa mágica é cheio de sinestesias, talvez inalcançáveis para o público infantil. Altamente descritivo, o livro tira da criança a fantástica possibilidade de imaginar, fantasiar, inventar, coescrever. O hipopótamo que tinha ideias demais mistura diversas referências a pesquisadores e adoradores das estrelas e dos astros, como astrólogos, índios e astrônomos, para dizer que as ideias que não se concretizam viram estrelas. Mas é um livro ansioso, que se perde em meio a tantas referências.
Uma história traz consigo inúmeras possibilidades de cognição. Ao levar a literatura infantil para a sala de aula, o educador estabelece uma relação dialógica com o aluno, o livro, sua cultura e a própria realidade. Ao contar uma história, ele cria condições para que a criança trabalhe com a narrativa a partir de seu ponto de vista, rememorando fatos, trocando opiniões, assumindo posições frente ao que é contado, defendendo atitudes e personagens e criando situações através das quais as histórias podem ser recontadas pelas próprias crianças.
De acordo com Fanny Abramovich, escritora, pedagoga e atriz, autora do livro Literatura infantil: gostosuras e bobices (Scipione), ler histórias para crianças é suscitar o imaginário, ter a curiosidade respondida em relação a tantas perguntas, encontrar outras ideias para solucionar questões.
É uma possibilidade de descobrir o mundo imenso dos conflitos, dos impasses, das soluções que todos vivemos e atravessamos – de um jeito ou de outro. Para ela, a conquista do pequeno leitor se dá através da relação prazerosa com o livro infantil, onde sonho, fantasia e imaginação se misturam numa realidade única, e o levam a vivenciar as emoções em parceria com os personagens da história, introduzindo, assim, situações da realidade.
ISABELLE CÂMARA, jornalista e educadora, com especialização em Direitos da Criança pela USP.