Conhecendo um pouco da história do São Luiz, é fácil verificar porque ele se tornou um símbolo para os cinéfilos locais. Durante décadas, todo jovem fascinado por filmes realizava alguns de seus cultos de iniciação diante de sua tela. O cinema foi entregue ao público com o filme O falcão dos mares, de Raoul Walsh, estrelado por Gregory Peck e, desde então, era nele que aconteciam os principais lançamentos da cidade. A abertura de um novo cinema na cidade também mobilizou os cronistas cinematográficos da época, preocupados em nela consolidar uma cultura fílmica mais sólida. Eles tinham esperança de que a sala abrisse espaço para uma programação de melhor qualidade e se mostraram otimistas pelo fato de o São Luiz apresentar boas condições técnicas – os projetores Simplex XL instalados, segundo o grupo Severiano Ribeiro, eram iguais ao do Radio City Music Hall, em Nova York –, algo que nem sempre era encontrado em outros cinemas do centro. Mesmo que, no decorrer dos anos, a programação do cinema possa ter desagradado aos críticos, não se pode contestar o fato de as avant-premières, as sessões especiais – como foi a caso da Sessão Bossa Jovem, aos sábados pela manhã, que, por muitos anos, na década de 1970, foi o ponto de encontro de todos os jovens descolados da cidade – e o bochicho nas estreias dos grandes lançamentos, algumas vezes com a presença dos realizadores e do elenco do filme, terem feito do São Luiz um equipamento indispensável na vida sociocultural do Recife desde sua inauguração.
O CANTO DO MAR
Entre as avant-premières, uma das mais marcantes da história do São Luiz foi, sem dúvida, a de O canto do mar, de Alberto Cavalcanti, todo rodado em Pernambuco. A produção do filme no Recife causou um grande alvoroço. No período, vivia-se certa efervescência em torno da sétima arte, com o surgimento de diversos cineclubes e o crescimento do número de cronistas cinematográficos nos seis jornais em circulação. Entre os críticos, era bem clara a divisão existente entre as linhas editoriais da imprensa. De um lado, estavam os admiradores incontestes do cinema clássico de Hollywood, e, do outro, os que preferiam o cinema europeu. O cinema brasileiro sempre provocava muitas controvérsias, principalmente as chanchadas. Apesar do sucesso popular, elas não eram muito bem-vistas pela maioria dos críticos e esperava-se que o filme de Cavalcanti, pelo seu reconhecimento como cineasta de renome no exterior, pudesse alinhar-se a um cinema sério e de bom nível. Outro motivo para a grande expectativa em torno de O canto do mar era o fato de ele contar majoritariamente com atores pernambucanos, ter roteiro de autoria de Hermilo Borba Filho e o cronista José de Souza Alencar como assistente de direção.
Cena de O canto do mar. Foto: Reprodução
A pré-estreia aconteceu no dia 5 de outubro de 1953 e foi um grande acontecimento social na cidade. Cerca de 450 convites foram distribuídos pela prefeitura local para políticos e autoridades e exigiu-se o uso de traje a rigor, decisão que acabou sendo revogada, permitindo-se o uso de paletó e gravata. Um incidente, porém, por pouco não apagou o brilho da festa. O deputado José Santana, devido a brigas políticas na sua cidade natal, Flores, foi assassinado na calçada do São Luiz, quando chegava para assistir ao filme. Apesar da trágica ocorrência, o cinema ficou superlotado e, segundo o noticiário dos jornais da época, muita gente acabou ficando em pé, inclusive o elenco e parte da comitiva.
A estreia de O canto do mar, segundo aponta a pesquisadora Luciana Araújo, agradou; todavia, mais como acontecimento social do que como filme, pois a plateia presente ao São Luiz buscava diversão e não sensações artísticas. Muitos críticos fizeram comentários desfavoráveis, afirmando que Cavalcanti, por ser também documentarista, não conseguira construir uma narrativa ficcional convincente, ou pior: fizera uma obra expondo a miséria da região e maculando a imagem do Brasil. Exceções foram os artigos de Jomard Muniz de Brito e José do Rego Maciel Filho, que teceram elogios. A recepção morna da estreia e as críticas feitas não ajudaram a carreira do filme de Cavalcanti. Ao entrar no circuito comercial, ele acabou sendo colocado no Teatro do Parque, um dos locais para lançamentos da cidade, mas com condições de exibição bem inferiores às do São Luiz.
Mostras como a Janela Internacional de Cinema do Recife atraem grande público ao São Luiz. Foto: Guga Matos/JC Imagem
Outra estreia significativa para o cinema pernambucano, realizada no São Luiz, foi a de Baile perfumado, em 1996, quando o cinema já não ostentava as mesmas boas condições do passado. O filme marcou o retorno da produção cinematográfica em longa-metragem em Pernambuco e foi a grande sensação do I Festival de Cinema do Recife (atual Cine PE). Na primeira exibição, a plateia, que lotava o cinema, ovacionou os cineastas Paulo Caldas e Lirio Ferreira, elenco e equipe técnica, e fez o São Luiz reviver os seus dias de glória.
FILAS PARA TITANIC
Na verdade, o São Luiz, dentre os cinemas do centro do Recife, foi o único que resistiu à decadência da região e não fechou imediatamente suas portas. Ele continuou sendo rentável para o grupo Severiano Ribeiro e conseguia manter um público popular fiel, graças ao preço mais em conta que o dos cinemas dos shoppings centers. Enquanto a elite da cidade migrou para os multiplex, o público interessado em ver pornochanchadas, filmes de ação, comédias dos Trapalhões ou grandes lançamentos nunca abandonou o São Luiz. Prova maior disso foi o sucesso de Titanic (1998), de James Cameron, com Leonardo Di Caprio e Kate Winslet, no elenco. A bilheteria foi uma das maiores entre todas as salas do Brasil, alcançando o impressionante número de 30 mil espectadores médios por semana, numa época que isso já não era tão comum.
O São Luiz mantém-se como importante palco para as produções pernambucanas.
Foto: Jarbas Jr.
Apesar desse público fiel pagante, desde os anos 1990, o grupo Severiano Ribeiro nunca fez grandes investimentos para melhorar as condições de conforto para o espectador. Muitas poltronas estavam rasgadas e quebradas, o ar condicionado às vezes não funcionava totalmente, fazendo das sessões uma verdadeira sauna, e a qualidade da projeção e do som era péssima. A deterioração do entorno do Edifício Duarte Coelho, por conta dos assaltos, dificuldades para estacionamento, mendigos, também contribuiu para afastar o público de classe média. A sentença de morte da sala só não foi promulgada porque a programação, embora não fosse lá grande coisa, escapou dos filmes de sexo explícito, recurso fatal capaz de apressar o fechamento total de uma sala. Contudo, via-se claramente que o Severiano Ribeiro, mais cedo ou mais tarde, encerraria as atividades do São Luiz, algo que acabou se confirmando em 2007.
A mobilização dos cinéfilos, intelectuais, animadores culturais e dos críticos dos principais jornais, no entanto, salvou o São Luiz de ser transformado em templo evangélico ou loja de eletrodomésticos, como se verificou em tantas salas de rua no centro e nos bairros. No mesmo ano em que o grupo Severiano Ribeiro anunciou a paralisação das atividades do cinema, uma instituição de ensino particular arrendou a sala com a intenção de transformá-la num centro cultural. No ano seguinte, porém, desistiu do empreendimento. Finalmente, em 2008, o prédio foi tombado pelo governo do estado e a Fundarpe assumiu a revitalização da sala.
Hoje, o São Luiz pode não ter recuperado o glamour do passado, mas cumpre uma importante função na vida cultural do Recife. A sala foi reformada, tendo agora 992 lugares, e exibe, a preços populares, uma programação diversificada, com filmes de destaque da produção nacional e clássicos do cinema. Conta ainda com uma programação fixa de filmes infantis e, pela manhã, promove as atividades do Cine-Escola, voltadas para os alunos da rede pública de ensino. O cinema vem abrigando, também, em suas dependências, mostras e eventos como o Animage – Festival Internacional de Cinema de Animação de Pernambuco – e a Janela Internacional de Cinema do Recife, ocasiões em que vemos com satisfação centenas de jovens amantes do cinema refazendo os mesmos caminhos feitos por nós, hoje cinéfilos cinquentões, quando aprendemos a enriquecer a nossa imaginação com as imagens que desfilavam pela tela do São Luiz.
ALEXANDRE FIGUEIRÔA, jornalista, professor universitário e doutor em Cinema pela Sorbonne IV.
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