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Memória: Um sexagenário fundamental

O São Luiz venceu, com a relevância de sua história, as mudanças urbanísticas e comportamentais da cidade

TEXTO LUIZ JOAQUIM
FOTOS JARBAS JR.

01 de Setembro de 2012

 Suntuosidade até hoje fascina os espectadores

Suntuosidade até hoje fascina os espectadores

Foto Jarbas Jr.

[conteúdo vinculado à reportagem de capa | ed. 141 | setembro 2012]

Se, do alto do cinema São Luiz,
houvesse uma câmera de filmar registrando o cenário que o cerca no Recife, de 1952 até hoje, e outra registrando as transformações em seu interior, a primeira nos daria uma interminável gama de ricas informações socioculturais sobre o que levou o centro da capital pernambucana a ser o que é, em 2012. A outra câmera, felizmente, forneceria apenas algumas pequenas diferenças sofridas pelo palácio da Rua da Aurora.

A própria ideia, há 60 anos, de construir uma sala de exibição tão portentosa, por parte do Grupo Severiano Ribeiro, nasceu da crença de que, na época, o Recife era uma cidade que não apenas se adequava a um empreendimento assim, como também o merecia. O próprio convite para a sua inauguração, no dia 6 de setembro, com o filme O falcão dos mares, de Raoul Walsh, é explícito nesse sentido. Nele, estava escrito:

“... É que ao entregar ao grande público pernambucano um dos mais luxuosos e bem aparelhados cinemas do Brasil, colocamos a cidade do Recife, no âmbito cinematográfico, numa posição de igualdade, se não de superioridade, em relação aos grandes centros do território nacional. E foi a própria cidade do Recife, pelo seu desenvolvimento, pelo progresso manifestado em todas as suas atividades, que deu oportunidade a que, acompanhando esse progresso e esse desenvolvimento, lançássemos ombros a uma realização de tamanha envergadura”.

Como testemunha daquele momento, o arquiteto e vice-presidente do Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico de Pernambuco, José Luiz Mota Menezes, afirma que, desde a abertura do Teatro de Santa Isabel, no século 19, a sociedade recifense não presenciava a abertura de uma casa tão luxuosa, dedicada à cultura.

“A chegada do São Luiz corresponde a uma série de situações novas para o usuário da cidade. O cinema foi responsável pela descentralização do foco de interesse do Bairro do Recife para o Bairro da Boa Vista, para as margens do Rio Capibaribe.” O arquiteto lembra que, com a construção do Edifício Duarte Coelho, pelo engenheiro Américo Rodrigues Campello, abrigando o cinema no térreo, voltava-se a valorizar as vistas para o Capibaribe e a revalidar aquele corredor urbano a partir da cultura.

“Foi por isso que houve um deslocamento dos footings, que antes eram feitos pela alta sociedade, essencialmente na Rua Nova e Rua da Imperatriz, para o cais da Rua do Sol e Rua da Aurora, restaurando um valor que esses corredores já possuíam no século 19”, contextualiza.


Para o programador Geraldo Pinho, a segurança do público é essencial

A planejadora urbana e professora da Universidade Federal de Pernambuco, Norma Lacerda, conta que, ainda hoje, se surpreende com a devolução do São Luiz à sociedade pernambucana. Norma refere-se ao fato de o cinema ter sido fechado em fevereiro de 2007 pelo Severiano Ribeiro, e reaberto em dezembro de 2009, sob a coordenação do governo do estado, que o compraria por R$ 2,5 milhões, em 2011.

“Fui lá, recentemente, e é incrível como entrar ali ainda provoca uma sensação única. Desde sua inauguração, ele virou uma referência para o Recife. Do ponto de vista arquitetônico, é um trunfo que o Recife ainda tenha um espaço como aquele, com uma decoração interna tão suntuosa, que lhe confere imponência até hoje”, salienta.

Já no convite de 1952, a decoração era um ponto de destaque. Além de ressaltar o mural de Lula Cardoso Ayres na sala de espera, justifica o projeto de Pedro Correia de Araújo para o auditório: “A decoração da plateia representa o interior de uma grande tenda real: vastas tapeçarias suspensas, bordadas com os três lírios de França, sobre os quais repousam 16 escudos de guerra, em lembrança das cruzadas. O teto é como um imenso véu de rede, que grossas cordas amarram”.

E continua: “Na frente do palco, os variados ornatos simbolizam as grandes virtudes de um rei, que desceu do trono para subir a um altar: a Palma (o prêmio eterno da boa aventurança), a Concha (o brasão do peregrino), os Besantes (os arautos do valor), a Flor-de-Lis (orgulho da casa de França) e os dois ramos policromados (o perfume de todas as virtudes), em cujo colorido os nossos olhos descansam”.

Tanto luxo exigia galhardia também de seu frequentadores. Até a segunda metade dos anos 1960, os homens vestiam seus melhores ternos para entrar no palácio da Rua da Aurora. O atual programador do São Luiz, Geraldo Pinho, lembra que, na sua primeira vez no São Luiz – aos 12 anos, em 1963, para ver La violetera, com Sarita Montiel –, ainda vivenciou esse ritual.


A arquiteta Norma Lacerca destaca a referencialidade ocupada pela sala no tecido urbano

José Luiz Mota Menezes explica que, já no final daquela década, uma série de questões urbanas e sociais propiciaram o relaxamento quanto à exigência do paletó no São Luiz. “Seu entorno começava a não oferecer tanta facilidade de estacionamento, e, como precisava de público, o espaço começou a programar títulos que atraíssem os jovens, que vinham de transporte coletivo e vestidos mais à vontade.”

Para Geraldo, ele envelheceu, mas o São Luiz, não. “É um cinema moderno, desde que foi entregue ao público – e o é ainda hoje. Ele, funcionando naquela esquina, quase como uma afronta a uma cidade que é hostil a um cinema de rua. Tem transeunte ali que já me perguntou: ‘Isso aqui é um cinema mesmo?’”, recorda.

Norma, que, na juventude, após uma sessão de cinema, não deixava de passar na sorveteria Gemba da Rua da Aurora, destaca que hoje é uma covardia comparar o entorno do São Luiz com as opções dos cinemas nos shopping centers. E Geraldo endossa: “Somos apenas um cinema. Não temos praça de alimentação, a gente oferece filmes. Estamos na rua e somos um alvo fácil. É uma casa de cultura, e todas as casas de cultura da cidade precisam melhorar a estrutura para receber seus frequentadores”, diz.

NEGAÇÃO DA RUA
Milton Botler, arquiteto urbanista e coordenador geral do Instituto Pelópidas Silveira – órgão que nasceu na atual gestão da prefeitura do Recife para “pensar o Recife do futuro” –, deixa a questão mais complexa ao explicar que, dos anos 1970 para cá, a população vem passando por um processo de “negação da rua”.

“O que acontece é uma espécie de recolhimento para espaços mais segregados. E isso tem a ver com a massificação do automóvel. Daí começa o esvaziamento do centro, pois tanto o programa habitacional quanto o comércio, ali, não foram pensados para a cultura do automóvel”, diz o urbanista, que, na infância, era levado pelo tio ao São Luiz para ver desenhos de Tom & Jerry.


Para o urbanista Milton Botler, há um processo de “negação da rua” que isola o cinema

Botler ainda aponta que, no final dos anos 1970, os cinemas de rua iniciaram um processo de perda do fluxo de público misto, que circulava pela cidade com outros fins. Processo que é consagrado com a chegada do Shopping Center Recife, quando as pessoas começam a usufruir, ali, um simulacro de espaço público. “O grande jargão dos shopping centers é ‘No parking, no bussiness’ (sem estacionamento, sem negócio) e, de fato, a população começa a migrar para esses complexos comerciais”, diz.

Para Botler, esse simulacro de espaço público oferecido pelos shoppings, com conforto, segurança e outras opções de lazer, levou ao empobrecimento do centro urbano, pois substituiu o que no passado era uma realidade das ruas.

Dessa maneira, todos parecem concordar que, para o Cine São Luiz manter-se saudável por mais 60 anos, é preciso devolver esses valores ao centro. “Esse discurso de valorização do centro urbano que estamos vendo atualmente é muito recente e o cinema de rua é uma peça importante aí”, diz o urbanista.

Na sua experiência de programador, Geraldo Pinho defende que segurança é o item mais desejado pelos seus atuais frequentadores. “As pessoas se inibem de ir às sessões, à noite, mas a gente sabe que, para continuar contemporâneo, o cinema também precisa se reequipar em termos de tecnologia e, claro, ter uma programação atraente.”

A receita de Geraldo comunga com o pensamento de todos os outros entrevistados para a boa saúde do cinema. “Além de uma reestruturação em seu entorno, a função do São Luiz deve ser reforçada com festivais e uma programação alternativa diferenciada, até voltar a ser incorporada à vida cotidiana do Recife. A partir daí, ele vai conseguir sobreviver sem subsídios extravagantes, assim como hoje funciona o Cinema da Fundação Joaquim Nabuco”, vaticinou Botler. 

LUIZ JOAQUIM, crítico de cinema, mestre em Comunicação Social e curador do Cinema da Fundação.
JARBAS JR., fotógrafo.

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