Mirante

“Sem música, a vida seria um erro”

TEXTO Débora Nascimento

31 de Julho de 2020

Maria Solange dançando hit do primeiro disco de Madonna e no salão de beleza após corte de cabelo

Maria Solange dançando hit do primeiro disco de Madonna e no salão de beleza após corte de cabelo

Foto Reprodução

Hoje faz uma semana que fui ao Parque Santana pela primeira vez em quatro meses. Para aproveitar a tarde ensolarada de céu azul daquele dia e atenuar a longa quarentena, eu, meu marido e meu filho fomos dar um passeio por lá. Antes de circular pelo lugar, avaliamos se a quantidade de gente seria segura para essa aventura. Havia pouquíssimas pessoas. Do lado esquerdo de quem entrava, um grupo de crianças participava de uma aula de futebol. Do lado direito, algumas pessoas sentadas nos bancos onde ficam os brinquedos rodeados pelas pistas de bicicleta e de correr. Mais à frente, uns cinco rapazes faziam manobras na pista de skate. Fomos andar. Quando passávamos pelo trecho da pista situado próximo à lateral do portão de entrada do parque, avistamos um homem de calça jeans e camisa polo listrada parado no local, como se fosse um porteiro. Chamou a atenção o fato de ele estar cantando bem alto. Era um hit antigo, que eu tinha esquecido, mas adoro: Have you seen her, dos Chi-Lites, lançado em 1971. Depois que nos afastamos dele, seguindo o caminho da pista, talvez o instinto de defesa tenha me levado a olhar umas duas vezes para trás, para me certificar de que esse homem não estava vindo atrás de nós. O meu leve receio tinha uma justificativa, fora o Maníaco do Parque. No código de comportamento da sociedade, alguém que fica plantado na entrada de um lugar público, cantando repetidamente a plenos pulmões uma mesma música, sem querer retorno financeiro, corre o risco de ser considerado pelos espectadores um maluco.

Depois da rápida caminhada que durou uns 15 minutos, fomos embora. O cantor já havia sumido. Mas ficou a música e o mistério sobre o que teria levado esse homem a cantar tão alto solitariamente, sem ser pregação evangélica, numa praça pública. Na volta, no carro, comentei, “Adoro a música que ele estava cantando”. Meu marido respondeu: “Que música?” Cantei. Ele não lembrou. Talvez eu tenha cantado sem a mesma precisão musical do homem. No outro dia, me veio a canção novamente. Coloquei no Spotify e mostrei pra ele, que disse não conhecer. Fiquei surpresa, porque é uma daquelas canções que tocavam em programas de rádio no estilo “love songs are back again”, de se acompanhar estalando os dedos como os Four Tops, outro adorável grupo de cantores negros dos anos 1970.

Além da recordação (vamos resgatar essa palavra em desuso) da música, me fascina, nesse episódio prosaico, o fato de algumas pessoas terem a coragem de contrariar o comportamento padrão exigido em certos ambientes, como o fez o Cantor Anônimo do Parque e a Mulher que Dançava Sozinha num Bar em Manaus.

No dia 22 de julho, Madonna compartilhou um vídeo e escreveu: “Você está se sentindo sem esperança hoje? A vida parece ser uma má notícia após a outra? O Apocalipse parece estar logo após a esquina? Eu acho que muitos de nós sentimos o mesmo. Em dias como este, temos apenas que aumentar a música e dançar!”. No começo do vídeo, antes de dançar uma música da cantora com uma vontade genuína, uma mulher se aproxima da câmera do celular que a está gravando e grita: “Eu vou dançar pro meu filho!”. Bate no peito no momento em que diz “pro meu filho”, para expressar uma coisa muito sua. A pessoa que está filmando diz genericamente: “Vai, Dona Mari (não dá para ouvir direito se é Maria ou Marina)!”, para continuar a registrar o que provavelmente compartilharia como algo engraçado nas redes sociais.

Esse compartilhamento repercutiu para além do provável objetivo de quem a registrava, ao ponto de chegar até a Madonna e sabermos a identidade dessa brasileira anônima para o país, mas conhecida no centro de Manaus. É uma ex-moradora de rua, cearense, dependente química e que sobrevivia de contribuições, principalmente de um amigo (o empresário de revenda de automóveis Marcos Bastos) que, há três meses, paga um quartinho para ela morar nessa área central da cidade. A mulher se chama Maria Solange, 50 anos, 32 deles sendo usuária de drogas. Naquele dia, dançou para homenagear seu filho de 22 anos, também viciado em drogas, que fora sequestrado e assassinado neste ano. E descobrimos, então, que ela dançava como uma forma de tentar expurgar uma dor profunda. “It's time for the good times / Forget about the bad times, oh yeah”, canta Madonna no hit de seu primeiro álbum, lançado em 1983, quando os bad times não eram tão bad quanto hoje em dia.

Após o vídeo viralizar e repercutir com o post no Instagram da artista (de 15 milhões de seguidores), Maria Solange recebeu da instituição Parceiros Brilhantes, de Manaus, abrigo para seis meses de tratamento do vício, em Araçoiaba da Serra, no interior de São Paulo. Para a viagem, ganhou um trato no cabelo, roupas novas e passagem de avião. “Vamos arcar com as despesas mensais até o fim do tratamento, e ela deu a palavra dela que vai sair renovada. Eu confio muito nela, é um ser de luz. No fim, ela é quem está transformando nossas vidas”, afirmou a diretora da instituição, Mayara Brilhante, ao G1.

No dia 24, Madonna compartilhou o desdobramento de seu post: “Finalmente algumas boas notícias para acordar! Postei Maria dançando Holiday em Manaus. Seu filho foi assassinado há algum tempo e ela se voltou às drogas! Agora ela está recebendo a ajuda que merece e sou muito grata às pessoas que estão cuidando dela”. E aqui abro breves parênteses para celebrar o fato de o perfil no Instagram desse ícone da música pop dialogar com a vida real e não apenas refletir delírios glamourosos, como costumam ser os IGs de celebridades.

Maria Solange, que ganhou o apelido de Marina Silva de Manaus (pelo biótipo semelhante) e por sua imitação (seu sonho é o de ser atriz) da ambientalista da Rede, me lembrou aqueles mendigos solitários, muitas vezes bêbados, que costumam (ou costumavam) dançar na frente dos palcos públicos instalados no Pátio de São Pedro. Muitos desses pedintes e viciados acabaram na rua não somente pela extrema pobreza, mas por serem vítimas da ausência de um amor imenso em suas vidas, seja de uma mãe, de um pai, de um filho, de um parente, de um amigo, de um parceiro, de uma sociedade, de um governo. E vagam sozinhos like a rolling stone.

Ah, look all the lonely people, canta Paul McCartney em Eleanor Rigby, faixa do álbum Revolver (1966). All the lonely people / Where do they all come from? / All the lonely people / Where do they all belong? Na letra, Eleanor Rigby morre solitária, como muitas vítimas da Covid-19, inclusive de Manaus, um dos estados mais atingidos pela pandemia. A personagem foi enterrada junto com seu nome. Ninguém apareceu. Como também ninguém aparece para visitar milhares de presos e presas do país, o terceiro do mundo em encarceramento em massa.

Solidão, né, minha filha?”, disse, em março, o generoso médico Dráuzio Varella antes de abraçar uma mulher trans, detida há 10 anos e que não recebeu nenhuma visita de parente durante esse período. Com seu gesto, Dr. Dráuzio emocionou milhares de brasileiros, logo depois foi achincalhado. Seu "crime" foi não ter perguntado qual crime a detida cometera para estar presa. Segundo seu argumento, prefere não saber, pois, primeiro, isso não tem relação com o tipo de trabalho que desenvolve nas penitenciárias; segundo, saber poderia afetar seu comportamento. Os telespectadores, por sua vez, se acharam ludibriados por terem sentido compaixão por uma pessoa que cometeu um crime hediondo. A frase do médico humanista (vale a pena o pleonasmo) ao abraçar a detenta virou meme, ganhou adaptações para outras situações e hoje é usada por todos que, no Brasil, sentem saudade de alguma coisa durante esta quarentena – sim, ainda estamos em quarentena, que muitos sentem como se fosse uma prisão domiciliar.

Dentre os milhares de encarcerados solitários deste país, está Adélio Bispo. Quando foi interrogado em 2018, após o polêmico episódio da facada no então candidato a presidente Jair Bolsonaro, o autor do crime respondeu que foi “a mando de Deus”. Em setembro de 2019, a Folha de S.Paulo entrevistou o prisioneiro. Ele continuou expressando a mesma obsessão em matar o agora presidente – a quem muitos atribuem à loucura o terrível comportamento como político e ser humano. Adélio, há quase um ano atrás, afirmou ao jornal que era “uma missão divina, para salvar o Brasil, porque coisas ruins podem acontecer”. Essa fala do acusado me fez lembrar de um vídeo que circulou nas redes sociais durante as eleições de 2018. Nele, alguém soma o múltiplo de "6" nas letras que compõem o sobrenome Bolsonaro e encontra como resultado os três famosos números do "Coisa Ruim". Parece apenas coisa de internet, mas, diante do comportamento criminoso do presidente em relação ao vírus que está bem próximo de matar 100 mil brasileiros, começo a cogitar que Adélio não era tão louco assim, como dizem os especialistas...

Uma semana depois daquele rápido passeio no quase vazio e ensolarado Parque Santana – onde a lembrança do festival anual de jazz que reúne milhares de pessoas (e onde conheci pessoalmente o gênio Hermeto Pascoal) parece uma imagem muito contrastante e agora surreal –, ainda estou com a música dos Chi-Lites e (e também Holiday) na cabeça. Obrigada ao Cantor Anônimo do Parque e a Maria Solange, a Mulher que Dançava Sozinha num Bar em Manaus, por relembrar, com seus gestos incomuns, que estar acompanhado da arte é a melhor forma de sobrevivência.

“Sem música, a vida seria um erro”
Nietzsche

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*As opiniões expressas pelos autores não representam
necessariamente a opinião da revista Continente.

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