Michel Foucault em Vigiar e punir (1975)
Quero trabalhar, nem que seja vendendo pipoca no sinal, mas eu quero. Não dá para voltar para cá. Não dá. É muito ruim... a saudade dos filhos, além de conviver em um espaço onde muitas vezes nem quero olhar para as pessoas e onde sofro opressão.
Márcia Félix, detenta da Colônia Penal Feminina de Abreu e Lima
Março deste 2020 apocalíptico transcorria já sob o signo da anormalidade, por causa da pandemia do COVID-19, quando notícias de fugas em massa e rebeliões em presídios de São Paulo piscaram nas homes dos portais de notícias. Era a noite de segunda-feira, 16, e mais de 1,3 mil presos, segundo a polícia militar paulista, haviam escapado das unidades prisionais localizadas em Mongaguá, Mirandópolis e Taubaté. “Os motins seriam uma reação à decisão da Corregedoria Geral da Justiça (CGJ) de suspender a saída temporária de detentos em razão do avanço da pandemia do novo coronavírus”, dizia a matéria, assinada pelos repórteres Gabriel Oliveira, Luís Adorno e Marcelo Oliveira para o UOL. A população carcerária, pelo que se vira e ante as condições degradantes onde vive, em qualquer estado da República Federativa do Brasil, não desejava se tornar estatística. Com total razão.
Na manhã seguinte, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) divulgava a Recomendação de número 62, com cinco pontos principais: “Redução de fluxo de ingresso no sistema prisional e socioeducativo; medidas de prevenção na realização de audiências judiciais nos fóruns; suspensão excepcional de audiência de custódia, mantida a análise de todas as prisões em flagrante realizadas; ação conjunta com os Executivos locais na elaboração de planos de contingência; e suporte aos planos de contingência deliberados pelas administrações penitenciárias dos estados em relação às visitas”, como esmiuçava um texto no site do CNJ. Uma leitura mais acurada de toda a recomendação, no entanto, atraía a atenção para o artigo quarto, destinado “aos magistrados com competência para a fase de conhecimento criminal”, com vistas “à redução dos riscos epidemiológicos e em observância ao contexto local de disseminação do vírus”.
Os incisos seguintes detalhavam que os magistrados do primeiro grupo deveriam considerar “a reavaliação das prisões provisórias, nos termos do artigo 316, do Código de Processo Penal” e “prisões preventivas que tenham excedido o prazo de 90 (noventa) dias ou que estejam relacionadas a crimes praticados sem violência ou grave ameaça à pessoa”, enquanto os juízes de execução penal procederiam à “concessão de saída antecipada dos regimes fechado e semiaberto, nos termos das diretrizes fixadas pela Súmula do Supremo Tribunal Federal” e também à “concessão de prisão domiciliar em relação a todos as pessoas presas em cumprimento de pena em regime aberto e semiaberto, mediante condições a serem definidas pelo Juiz da execução”.
Em ambos os casos, seria acatada a seguinte ordem: “a) mulheres gestantes, lactantes, mães ou pessoas responsáveis por criança de até doze anos ou por pessoa com deficiência, assim como idosos, indígenas, pessoas com deficiência ou que se enquadrem no grupo de risco; b) pessoas presas em estabelecimentos penais que estejam com ocupação superior à capacidade, que não disponham de equipe de saúde lotada no estabelecimento, que estejam sob ordem de interdição, com medidas cautelares determinadas por órgão do sistema de jurisdição internacional, ou que disponham de instalações que favoreçam a propagação do novo coronavírus”.
É importante pormenorizar esses dois artigos específicos porque, ao serem redigidos e noticiados poucas horas depois das insurgências em São Paulo, interpunham-se como resposta aos atos dos fugitivos e como diligência no combate à transmissão de um agente infeccioso. Era como se o Judiciário estivesse a mostrar seu zelo para com os milhares de presos. Contudo, se olharmos com cuidado para as frases da recomendação do CNJ, veremos que são intrinsecamente paradoxais ou mesmo kafkianas, para citar o escritor tcheco Franz Kafka, que em O processo (publicado postumamente em 1925) faz de seu protagonista Joseph K. um cidadão aprisionado por um Estado policial sem ter a mínima ideia do porquê de sua condenação à morte. Pois conceder saída para “pessoas presas em estabelecimentos com ocupação superior à capacidade” ou “que disponham de instalações que favoreçam a propagação do novo coronavírus” significa, na acepção literal dessas formulações, libertar todos as 773.551 pessoas encarceradas no Brasil.
Esse número ultrapassa, por exemplo, a população de Aracaju (pelo censo de 2019 do IBGE, lá residem 657 mil pessoas) e, aliás, já deve estar em outro patamar; são de junho de 2019 os dados mais atualizados do InfoPen – o levantamento nacional de informações penitenciárias, a plataforma estatística do sistema penitenciário brasileiro, em vigor desde 2004 no Departamento Penitenciário Nacional (Depen), por sua vez um departamento com status de secretaria nacional ligado ao Ministério da Justiça e da Segurança. Ou seja, de lá para cá, mais que nove meses, uma gestação, o que é muito, a julgar pela sanha punitivista de um país cuja população carcerária pulou de 232,7 mil, em 2000, para cerca de 773 mil, no primeiro semestre do ano passado, em um aumento de 232% em menos de duas décadas. No mesmo intervalo, o déficit de vagas nas unidades carcerárias nacionais pulou de 97 mil para 312,1 mil, em um escalonamento de 222%. Outro dado alarmante: 253.963, ou seja, 33,47% dos prisioneiros brasileiros, estão detidos de modo provisório.
O fato é que o nosso gigante pela própria natureza é o terceiro país em população carcerária no mundo, atrás apenas dos Estados Unidos e da China, respectivamente em primeiro e em segundo lugares. E se o Brasil possui 773 mil detentos, em um universo de 211,23 milhões de habitantes, a aritmética nos responde que 0,35% dos filhos e filhas desta “mãe gentil” atualmente vivencia o cotidiano atrás de grades. Precisamos falar sobre o encarceramento em massa, não apenas em tempos de pandemia, e fazer dessa realidade uma discussão permanente, não só lembrando a existência desse imenso contingente quando os telejornais exacerbam a semiótica do amotinamento. Ou mesmo talvez nos inquirir por que é mais fácil consumir imagens estrangeiras produzidas com o intuito de gerar reflexão acerca do tema. Por exemplo, sobre a massa encarcerada nos EUA, quem não viu o documentário A 13ª emenda (2016), da realizadora negra Ava DuVernay, disponível na plataforma de streaming Netflix? Aprendemos que, tão logo a escravidão se findou naquele país, ao término da Guerra Civil, no século XIX, um adendo à constituição norte-americana instituiu que nenhum homem poderia ser escravizado – a não ser que fosse considerado um criminoso.
Aí estava o loophole – palavra repetida ad nauseam no começo de A 13ª emenda para traduzir “uma ambiguidade no texto através da qual é possível se evadir da intenção daquele estatuto, contrato ou obrigação”, na descrição do dicionário Merriam Webster. Essa brecha atribuía aos cumpridores da lei nos EUA a prerrogativa de criminalizar qualquer um – de pele preta, de preferência – e submetê-lo ao desumano modus vivendi da escravidão. Assim, os cerca de quatro milhões de negros, agora livres, passaram a ser enquadrados em crimes como vadiagem. Com milhares presos, e outros a prender, forjou-se o mito do “violent coloured man”, o homem de cor violento capaz de saquear casas e estuprar moçoilas loiras com ferocidade.
A consequência dessa fabricação mítica de um bandido ideal se espelha na fala do então presidente Barack Obama no início do longa-metragem: os Estados Unidos representam 5% da população mundial, mas respondem por 25% da população carcerária do planeta. Desses, boa parte, como Duvernay sublinha, são afro-americanos, como ela, ou imigrantes de origem hispânica. Em suma, são corpos opostos à normatividade branca os que ainda hoje estão presos por lá – como de resto, por aqui também, como se viu nos vídeos que vazaram da fuga ocorrida na noite de 16 de março, em Monguagá, no litoral de São Paulo.
Em outubro de 2019, quando esteve na capital paulista para proferir a conferência aberta A liberdade é uma luta constante, diante de uma plateia de 15 mil pessoas em uma gélida noite no Parque Ibirapuera, a ativista, filósofa e escritora negra norte-americana Angela Davis, ela mesma sobrevivente de uma temporada no cárcere e de uma condenação à pena capital, concatenou os pontos: “O Brasil deveria aprender com os Estados Unidos que, quando a guerra às drogas é constantemente evocada como um motivo para o aumento da violência policial racista, está servindo, na verdade, como pretexto para matar pessoas pretas. Foi a guerra às drogas que acelerou o processo de encarceramento em massa nos EUA e acredito que seja parcialmente responsável pelo aumento exponencial do número de pessoas encarceradas no Brasil”.
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Pausa para um breve retorno às estatísticas: conforme os dados do InfoPen, 304 mil cidadãos e cidadãs brasileiras cumprem pena por tráfico de entorpecentes e delitos adjacentes, como associação, operação e indução ao uso de drogas – 39,4% do total da nossa população carcerária. Outros 284 mil – 36,7% – estão aprisionados por crimes contra o patrimônio, como roubo e furto. Rupturas mais severas do direito penal, como homicídio, feminicídio e violência doméstica, são responsáveis pelo encarceramento de 88 mil pessoas, 11,3% dos que vivem em privação de liberdade. Tais percentuais tendem a aumentar se usarmos como baliza os dados do Banco Nacional de Monitoramento de Prisões do CNJ, que, em julho de 2019, vaticinou: a população carcerária brasileira já é de 812,5 mil.
“A guerra às drogas foi comprada pelo Brasil já na década de 1990. Se você acompanha os gráficos do sistema penitenciário do perfil da massa carcerária antes dessa década, percebe que a quantidade maior era de crimes patrimoniais, como roubo e furto. A partir dos anos 1990, há uma virada e o tráfico de drogas passa a ser um dos principais tipos penais que encarcera no país. É essa polícia punitivista da guerra às drogas que tem provocado o hiperencarceramento no Brasil. Na sua origem, nos Estados Unidos, quando se resolve punir de forma mais grave os crimes de tráfico, as drogas envolvidas nessa ‘guerra’ eram todas relacionadas à importação e exportação voltada na América Latina, ou seja, operadas por negros e latinos. Cria-se uma política para punir esses grupos nos EUA e aqui no Brasil a guerra às drogas vai atingir sobretudo as pessoas que moram na periferia, sobretudo os corpos negros”, contextualiza o defensor público André Carneiro Leão, atual defensor regional para os direitos humanos da Defensoria Pública da União (DPU) em Pernambuco.
O fenômeno do aumento maciço das prisões por tráfico de drogas se deve à lei 11. 343 de 2006, promulgada no primeiro mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. André explica que se trata de uma “lei extravagante” por ser fora do Código Penal Brasileiro – redigido em 1940 e reformado em 1984. Ele tinha 23 anos quando fez o concurso para a DPU, em 2008, já sabendo que sua área de atuação seriam os crimes praticados contra a União – “tudo que envolve a polícia federal, crimes ambientais, roubo aos Correios, fraudes previdenciárias” – mas sem desconfiar do que lhe adviria.
As prisões contemporâneas são comparadas aos navios
negreiros, pelo encarceramento majoritário de homens
negros. Na foto, datada em 1863, homem escravizado do
Mississipi (EUA) tem suas costas marcadas pelos açoites.
Foto: Wikipedia/Reprodução
“Minha lotação inicial foi em Guarulhos e comecei a atuar em uma situação de injustiça muito grande dentro da justiça criminal: os migrantes que eram presos no aeroporto acusados de tráfico de drogas internacional. Aquilo me chocou, pois eram pessoas que, depois de sentenciadas, passavam cinco, seis, até sete anos sem ver ninguém da família. Naquela época, para as prisões em flagrante, havia o entendimento de que até o cumprimento definitivo da pena não podiam sequer progredir de regime, que era fechado por todo tempo. Uma situação que me tocou muito pessoalmente foi a minha primeira audiência de tráfico internacional de drogas, com um casal, ela boliviana, ele argentino; ela, presa em uma penitenciária em Guarulhos, ele, em uma videoconferência numa prisão a 300km de São Paulo”, recorda.
Questiono a André Carneiro Leão se ele lembra a quantidade de drogas apreendida com esse casal sul-americano. “Normalmente, nesses casos, a quantidade é pequena. O que agrava é ser internacional e a droga ser cocaína ou a pasta base da cocaína”, responde. Pergunto então o que aconteceria se um casal desses, ou mesmo qualquer outro preso por tráfico, tivesse sido flagrado com meia tonelada dessa mesma pasta-base em um helicóptero. Ele sorri. Penso na obra 3 e 3-1 crimes, assinada pelo artista visual pernambucano Lourival Cuquinha, pela cineasta Mariana Lacerda, pela designer Joana Amador e pela jornalista Mariana Sgarioni, cujo título remetia à conceituação filosófica de Uma e três cadeiras, obra do norte-americano Joseph Kosuth. Nela, uma definição para o verbete helicoca, prateleiras com um helicóptero de madeira pequeno e frascos pequeninos, cobertos e preenchidos de pó branco, e com uma garrafa de Pinho Sol e outra de água sanitária.
“Nessa obra, temos não só o que se escreve no Código Penal sobre o porte de substâncias, mas também sobre quem as está portando”, descreviam os artistas. O verbete estava assim exposto: “Helicoca: s.m. de helicóptero e cocaína. aparelho de aviação de propriedade do senador e deputado federal, pai e filho, Zezé e Gustavo Perrella, empresários em Minas Gerais; o helicóptero foi apreendido em novembro de 2013 com 445kg de pasta base de cocaína, na cidade de Afonso Cláudio, no Espírito Santo; antes, o helicóptero fez uma escala para abastecimento em Minas Geras, em uma pista de pouso e decolagem, construída durante o governo Aécio Neves em terreno que pertenceu à fazenda do seu tio-avô”.
A obra havia sido pensada para auxiliar o custeio das despesas de Rafael Braga, o catador de papelão negro que havia sido preso após uma manifestação em 2013, com duas garrafas de plástico na mochila; uma, de desinfetante, outra, de água sanitária. Foi acusado de portar ingredientes para fabricar bomba, julgado e condenado a cinco anos de prisão em menos de seis meses. “Em janeiro de 2016, após ter a pena convertida de regime fechado para aberto, voltou a morar com a família na Vila Cruzeiro, no Complexo da Penha, e foi novamente acusado por policiais militares, dessa vez de carregar cocaína e maconha. Resultado: ganhou nova pena por tráfico, acrescentando seis anos à sentença original. Atualmente, Rafael está em prisão domiciliar para se tratar de uma tuberculose contraída durante o confinamento”, escrevi na Continente #210, edição que circulou em junho de 2018.
Em março de 2020, Rafael segue em prisão domiciliar. A família Perrella nunca respondeu a acusação alguma sobre tráfico de drogas. Existe seletividade penal na Justiça brasileira, cuja mira parece incidir, com severidade absurda, sobre aqueles corpos parecidos com os de Rafael – pretos, pobres, periféricos. Eles são o símbolo da falência do Estado. “Quando se tem um Estado com proteção social mínima, em que existe um padrão de seletividade penal, em que o perfil dos presos é justamente o negro pobre da periferia, ou quando 70% das mulheres encarceradas responde por tráfico, e não tenha dúvida de que 90% dessas mulheres são negras, a repressão do Estado policial vem a todo vapor, em carga máxima, justamente para se manter essa estrutura”, aponta a socióloga carioca Julita Lemgruber, coordenadora do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC) da Universidade Cândido Mendes, no Rio de Janeiro.
No dia em que a socióloga falou por telefone à Continente, fazia menos de 24h que chegara de uma viagem ao exterior. “Acabei de receber uma piada de um amigo no WhatsApp, é uma piada bem carioca, até, mas quem me mandou foi um paulista, dizendo que não precisamos ter medo de morrer por causa do coronavírus, pois a polícia no Brasil mata muito mais do qualquer vírus. Só no Rio de Janeiro, a polícia militar mata cinco pessoas por dia. Você acha que esses corpos têm que cor?”, me interpela. Ela tem conhecimento de causa: entre 1991 e 1994, foi diretora do Departamento do Sistema Penitenciário do Rio de Janeiro e ouvidora da polícia fluminense, entre 1999 e 2000. Muito antes disso, em 1983, publicou Cemitério dos vivos? Uma análise sociológica de uma prisão de mulheres, resultado de sua dissertação de mestrado no Instituto Universitário de Pesquisa do Rio de Janeiro. “Já faz mais de 30 anos que lancei um livro sobre o encarceramento feminino e a sociedade ainda exacerba no machismo e na misoginia ao condenar essas mulheres. É como se elas infringissem duplamente: a lei penal e a lei da família”, analisa.
Para Julita Lemgruber, o Brasil precisa debater encarceramento em massa, porque não é possível antever futuro justo algum para o país do jeito em que tudo – cadeias, fóruns, favelas, batalhões da PM – está. “Não acredito em privação de liberdade como punição em um país como o nosso. Não é possível você treinar alguém para uma maratona sem botar essa pessoa para correr. É o mesmo que se dá com a prisão: como você vai treinar alguém para viver em liberdade, privando-a dela? A prisão no Brasil é um instrumento danoso, vexatório e imoral, até. Não regenera nem ressocializa. Não tenho como não ser pessimista diante do que vejo”, lamenta. Ela vai além: o punitivismo não é exclusividade dos conservadores, dos políticos de extrema direita ou dos retrógrados que sonham com a pena capital: “A esquerda brasileira é extremamente punitivista”.
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Em uma das conversas que integra o livro 30 entrevistas da revista Continente (Cepe, 2019), a pesquisadora, atriz e advogada negra Dina Alves foi incisiva: “Olha, esquerda branca, vocês não se preocupam com o desencarceramento porque as prisões são navios negreiros e vocês são racistas. A esquerda que não adere à pauta pelo desencarceramento é incoerente consigo mesma. Se defendem a vida, os direitos humanos, os direitos dos animais, das florestas, rios e a biodiversidade, por que mantêm enclausuradas pessoas oriundas de um determinado grupo social? Aí está o fetiche da prisão para eles, ou seja, é a representação simbólica do cativeiro, numa sociedade atrasada, colonial, que reproduz teorias e práticas coloniais de um regime de poder que naturaliza o território da prisão como lugar demarcado para os pretos, pobres, favelados”.
Na entrevista que concedera ao jornalista Mateus Araújo, originalmente publicada em janeiro de 2019, na edição 217 da Continente, a propósito da montagem de Rés, espetáculo da Corpórea Companhia de Corpos calcado na sua dissertação de mestrado Rés negras, judiciário brancos: uma análise da interseccionalidade de gênero, raça e classe na produção da punição em uma prisão paulistana, a coordenadora do Departamento de Justiça e Segurança Pública do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM) também questionou as escolhas da esquerda a partir da campanha #LulaLivre. “O debate em torno da prisão do Lula não foi capaz de jogar luz para o debate mais amplo sobre a geografia prisional e tudo o que compõe esse território. Impressiona a forma como as pessoas se mobilizaram para gritar ‘Lula Livre’, mas não foram as mesmas que fortaleceram a campanha ‘Libertem Rafael Braga’ ou ‘Liberdade para Babiy Querino’. Parece que há uma parede de vidro entre um pedido de liberdade e outro. As pautas deveriam ser as mesmas: Lula livre e mais 40% dos presos provisórios, que são torturados e têm negados os direitos elementares, como tomar banho, alimentar-se, ter medicação adequada para dor de dentes e tuberculose, por exemplo. A prisão de Lula foi emblemática para demonstrar de forma ampliada a setores da esquerda as violações legais, a seletividade penal, a politização do poder Judiciário e a criminalização de determinados grupos sociais”, apregoou.
Bárbara “Babiy” Querino é uma modelo negra que foi presa em São Paulo em janeiro de 2018, sob acusação de ser cúmplice em um assalto. Ela foi reconhecida por testemunhas pela cor de pele e pelos cachos no cabelo. Babiy saiu da prisão em setembro de 2019 e, no mês seguinte, antes de participar de uma audiência sobre sua situação penal, deu a seguinte declaração para a agência Ponte: “O Judiciário branco te condena sem olhar nos seus olhos. Temos que entender que não é só por mim, tem muito mais gente lá dentro, são muitos casos que eu posso falar que eu conheci. Pessoas que estão lá há três, quatro anos por crimes que não cometeram. O negro, não vou nem falar bandido, o negro para eles é negro morto ou negro preso. A minha audiência não seria necessária se o sistema trabalhasse de forma coerente e se não fosse racista”.
As prisões são como navios negreiros. Ao longo da apuração para esta reportagem, essa foi uma analogia que ouvi com recorrência: o cárcere como a reedição contemporânea das embarcações que traziam os africanos para o Brasil. Quantos eram arrancados à força de seus reinos? Quantos feneciam no caminho? Quantos apodreciam, vitimados por doenças e saudade, e chegavam apenas pele e osso? Ao desembarcarem, deixavam os navios negreiros para erigir seus espaços de convivência nas senzalas. “O nosso cárcere tem a lógica de um país com todos os ranços do processo de escravidão”, define a professora Marília Montenegro, que dá aulas de direito penal, criminologia e gênero na graduação e na pós na Faculdade de Direito do Recife, da UFPE, e na Unicap. “Na América Latina, na criminologia, falamos na ‘instituição de sequestro’. O nosso continente vai matar o povo originário, ou colocá-lo em condição de subalterno, sequestrar o povo da África e receber uma minoria que chega aqui e passa a controlar todos os corpos”, observa.
A questão crucial, no olhar de Marília, é que nós, a sociedade brasileira, desconhecemos a nossa História e adotamos a lógica excludente do sistema capitalista branco (muitas vezes sendo engolida por suas engrenagens). Por isso, essa nação não se identifica com os corpos negros – não “somos” eles, “eles” não são a nação, logo, em caso de erro, eles devem ser punidos com uma agressividade que a essa mesma nação não caberia. “Em tese, quando piora o sistema carcerário, estamos punindo a nós mesmos. Eu sou aquela pessoa que está ali encarcerada. No Brasil, não: é alguém externo ao que é nosso. Por isso, vamos prender pessoas específicas, os corpos em que essas penas todas fazem sentido. Quando olhamos para esse corpo negro que está lá, encarcerado, não nos identificamos por ele ser um jovem negro, de baixa escolaridade, ou pelo bairro onde mora ou o crime que cometeu. O cárcere repete a estrutura da sociedade. Entro na sala de aula da universidade, por exemplo, vejo 20 alunos de óculos, sem contar os que estão usando lentes. No sistema prisional, quantos podem usar óculos? Nunca puderam ir a um oculista. Esse é um dado de classe e nos mostra que esse processo de desumanização não começa no cárcere”, condensa.
O racismo é alicerce ontológico do Brasil e, por conseguinte, lastreia a existência e a convivência na prisão. “Desde sempre, fomos doutrinados a não reconhecer aquele corpo negro como humano. Mas como posso ser humano, se não estendo meu olhar de humanidade para todos os outros? Durante a escravidão, pelo código penal do Império, a pessoa negra podia cometer homicídio, mas não podia ser vítima. Porque, se alguém matasse o escravo, era um crime contra o senhor de engenho. Ele era objeto, era patrimônio e, como tal, nunca poderia ser vítima, porque não era considerado uma pessoa. Em tempos históricos, isso foi ontem. E, quando as cidades passaram pelo período de urbanização, a ideia da polícia como conhecemos hoje, no final do século XIX, surge como a figura da lei. Se, antes, na lógica da capitania hereditária, cada senhor de engenho cuidava do que era seu, agora, na cidade, aquele negro que já não era mais escravo tinha que saber que estava sendo controlado. Repetia-se a mesma lógica do período escravocrata, e aí se viam as estratégias para acabar o movimento cultural e as religiões de matrizes africanas. Ou seja, tudo isso é uma construção muito recente. A desumanização do negro foi e é uma constante, e é muito fácil voltarmos, inconscientemente, a essa senzala, no cárcere e fora dele”, lastima a professora Marília Montenegro.
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Pense no Haiti, reze pelo Haiti, o Haiti é aqui, o Haiti não é aqui... Nos versos de Caetano Veloso e Gilberto Gil, em Haiti, do álbum Tropicália 2 (1993), os compositores e cantores baianos nos lançam ao paradoxo de imaginar que somos – ou não? – o minúsculo país da América Central. A canção Haiti foi criada como resposta à chacina – como descrever melhor? – ocorrida em 2 de outubro de 1992, no pavilhão 9 da Casa de Detenção de São Paulo, talvez uma das máximas expressões do cárcere como senzala contemporânea. Era uma sexta-feira e, a partir de uma briga entre detentos irrompida durante uma partida de futebol, a Polícia Militar de São Paulo, comandada pelo coronel Ubiratan Guimarães, foi chamada pela direção da unidade prisional do Carandiru para manter a ordem.
Vista aérea da Casa de Detenção do Carandiru, em fevereiro de 2001. Em 2005, os pavilhões foram implodidos. Foto: Folhapress
Muito se escreveu – Estação Carandiru (1999), de Drauzio Varella – ou se filmou – a ficção Carandiru (2003), de Hector Babenco, ou Prisioneiro da grade de ferro (Autorretratos), documentário de Paulo Sacramento (2003) – na tentativa de dar visibilidade ao acontecimento e mitigar ou representar o horror vivido naquela sexta-feira, quando 111 presos morreram e nenhum policial pereceu no conflito. Talvez os versos de Haiti, entretanto, sejam mais agudos por serem mais cortantes, rompendo a nossa passividade como uma quilha a cortar as ondas:
E ao ouvir o silêncio sorridente de São Paulo
Diante da chacina
111 presos indefesos
Mas presos são quase todos pretos
Ou quase pretos
Ou quase brancos quase pretos de tão pobres
E pobres são como podres
E todos sabem como se tratam os pretos
Coronel Ubiratan foi julgado e, em junho de 2001, condenado a 632 anos de prisão. No ano seguinte, porém, numa das jogadas do destino tão brasileiras, candidatou-se e foi eleito deputado estadual por São Paulo. Em 2006, o Tribunal de Justiça paulistano entendeu que havia um equívoco na sua sentença. Ubiratan foi absolvido, mas no mesmo ano foi assassinado, com um tiro. Quem se recorda? Poucos. Quase três décadas depois da tragédia, o Complexo do Carandiru já nem mais existe, talvez alguns se lembrem do nome do coronel que deu ordem para a PM usar força letal, mas o cotidiano de terror no cárcere permanece. Com seus mesmos recortes de raça e classe – afinal, “presos são quase todos pretos de tão pobres e pobres são como podres”.
“É a guerra aos pobres. Aos pobres negros. São as pessoas com esse perfil racial que estão sendo presas e encarceradas. E, como boa parte dessas pessoas não têm acesso à defesa, cria-se uma situação catastrófica”, situa o professor e pesquisador José Luiz Ratton. “O aumento do encarceramento vem com a incapacidade do Brasil de encarcerar as pessoas de uma forma minimamente civilizada. Temos as piores condições do mundo. É uma situação de brutalização, de-civilizatória. E boa parte das pessoas é presa sem registro criminal anterior, muitas vezes com pequenas quantidades de drogas, e é colocada em unidades prisionais comandadas por grupos e facções, onde termina virando mão de obra, devendo favores em troca de proteção. Quando essas pessoas saem, não existem políticas de reinserção social. Não há criação de oportunidades, acompanhamento psicológico ou familiar ou formas de produção de emprego e renda. Nada é oferecido a essas pessoas e elas tendem a continuar dentro desse círculo, podendo voltar para a prisão. É o reflexo da criminalização da pobreza e da racionalização da utilização de medidas de encarceramento em uma sociedade racista e profundamente injusta e desigual”, acrescenta Ratton, que coordena o Núcleo de Estudos e Pesquisas em Políticas da Segurança (Neps), no Departamento de Sociologia da UFPE.
Foi a respeito de uma visita a um presídio do Recife que o juiz João Marcos Buch, da Vara de Execução Penal de Joinville, escreveu essa passagem em Juiz de si, juiz do mundo (Giostri, 2017): “É muito difícil ter consciência de que neste século ainda tratamos seres humanos como subumanos. Acho que toda pessoa que prega que ‘bandido bom é bandido morto’ precisaria passar um dia num lugar como aquele que eu pisava para ter noção do que é o óbito social”. Consigo falar com ele por telefone na noite da mesma segunda-feira em que centenas de presos escapavam em São Paulo, e a primeira pergunta que lhe faço é por que precisamos falar sobre encarceramento em massa.
“Porque, infelizmente, vivemos em uma sociedade egoísta, educada para competir e não para compartilhar ou cooperar, que não olha para o outro, muito menos para quem está encarcerado. Quanto mais pudermos falar a respeito e apontarmos o dedo na ferida, estaremos mostrando à sociedade a situação grave e caótica. Recentemente, fiz uma inspeção em um presídio de 600 vagas, com 1,3 mil pessoas já dentro. Fui a uma cela com 28 pessoas onde cabem oito, algumas com sarna, furúnculos, tuberculose. Cheguei a verificar pessoas estigmatizadas e ainda mais doentes, como as que vivem com HIV. E essa realidade não é apenas em Joinville. O sistema prisional brasileiro só muda o CEP: é muito difícil em todos os lugares. Mas precisamos lembrar que são seres humanos dentro das prisões. Talvez, assim, as pessoas se conscientizem mais e comecem a demandar do Estado atitudes concretas. A mudança nunca virá de dentro do sistema, e, sim, da sociedade”, responde João Marcos Buch, desde 2012 como juiz da Vara de Execução Penal.
Buch explica o funcionamento dos ritos processuais penais que decretam a ida de qualquer cidadã ou cidadão à prisão. Por exemplo, se for o caso de mais um a aumentar o percentual de 39,4% encarcerados por tráfico de drogas, suponhamos que a pessoa seja presa com 50 gramas de maconha, levada para o flagrante, em seguida, para a audiência de custódia no plantão da Justiça Criminal e, de lá, mandada para uma unidade prisional, onde aguardará a sentença – em Pernambuco, no Centro de Observação e Triagem Everardo Luna – Cotel, em Abreu e Lima. “Se a pessoa for acusada pelo Ministério Público, então, vai responder a um processo, terá uma audiência para oitiva de testemunhas com o promotor do Ministério Público, será interrogada pelo juiz criminal e, se condenada, é esse juiz quem determina sua pena privativa de liberdade. A partir daí, o processo vai para o juiz de execução penal, que vai executar aquela pena e decidir quanto tempo para progredir de regime, quanto tempo para concessão de livramento condicional, para saída temporária ou para prisão domiciliar”, detalha.
João Marcos Buch se descreve como “juiz constitucionalista, que procura garantir a Constituição Federal” e, nesse sentido, não poderia ser abolicionista e pregar a extinção do cárcere. “Sei que a prisão nunca será algo construtivo, será sempre um instrumento de neutralização dos seres humanos. Mas se a Constituição prevê penas privativas de liberdade, tenho que fazer tudo para cumpri-las”, sintetiza. Isso não impede que ele se pronuncie contra “o estado de coisas inconstitucional”, como, em 2015, o Supremo Tribunal Federal – STF avaliou que estava em vigor no sistema prisional brasileiro, a partir de uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) número 347. Ou talvez seja justamente seu apreço pelo que está disposto na Constituição que o guie numa postura humanitária, em uma jornada para assegurar que os detentos tenham acesso à leitura e a cuidados médicos e possam trabalhar e estudar, por exemplo.
“Não acredito na pena como algo que possa contribuir para a harmonia social, mas penso que atuo de forma a reduzir danos; esses danos que a prisão possa causar em uma pessoa e numa sociedade. Se existe uma lei antidrogas e o tráfico resulta numa sanção, ela precisa ser aplicada. Mas eu percebo, teórica e empiricamente, que só vamos superar o encarceramento em massa e toda essa violência urbana com a regulamentação e a descriminalização das drogas. Se fossem descriminalizadas, como a bebida alcóolica e a nicotina, quem estaria atrás das drogas não seriam os pretos que vêm de ambientes vulneráveis. Hoje, é o rapaz da esquina, pego com 10 pedras de crack, que é jogado no sistema e cooptado por facções criminosas, não o dono da cobertura de R$ 5 milhões à beira-mar, que é o líder do tráfico e que comprou aquela cobertura em cash, e também não aquelas pessoas que comandam as grandes operações do tráfico que vão para o cárcere”, pontua.
Antes de nos despedirmos, indago a João Marcos Buch se ele vislumbra um Brasil sem o peso do cárcere e suas ramificações de raça, classe e impacto na estratificação da nossa sociedade. “Não sei se é possível, não sei se algum dia conseguiremos. Qual seria a alternativa?”
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