Reportagem

Por que se prende tanto? [Parte 2]

Mais de 773 mil pessoas estão encarceradas no Brasil e aquilo que se denomina “guerra às drogas” é um dos propulsores desse fenômeno em massa que revela um Estado classista e racista

TEXTO Luciana Veras

01 de Abril de 2020

Vista aérea da Casa de Detenção do Carandiru, em fevereiro de 2001. Em 2005, os pavilhões foram implodidos

Vista aérea da Casa de Detenção do Carandiru, em fevereiro de 2001. Em 2005, os pavilhões foram implodidos

Foto Folhapress

[continuação da reportagem Por que se prende tanto? | PARTE 2 | ed. 232 | abril de 2020]

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Fazer o balanço dos 30 anos da Constituição Cidadã, a partir das vozes violadas pela reduzida dimensão de cidadania com a qual a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 se acumpliciou, pode oferecer chaves de compreensão importantes sobre o modelo de sociedade que ela mantém e as estratégias de resistência que – dos processos de morte em vida mais extremos – insistem em se desenvolver. Durante sua vigência, houve um incremento de 707% de encarceramento, chegando em 2017 a abrigar a terceira maior população prisional do mundo
Thula Pires em Vozes do cárcere – Ecos de resistência (Kanubi, Literatura Negra, 2018).

Pernambuco tem uma população carcerária aproximada de 33,1 mil pessoas, em dados que a Secretaria Executiva de Ressocialização (Seres), vinculada à Secretaria de Justiça e Direitos Humanos, comunica à Continente, em 18 de março. São 31,7 mil homens e 1,4 mil mulheres, distribuídos em 23 unidades prisionais, cuja capacidade, em tese, seria para 13.722 pessoas. Uma fração de 40% é composta por presos provisórios. Solicito à assessoria de imprensa um recorte por raça. Na resposta, 19.911 são pardos ou morenos; 6.673 são negros; 4.559 são brancos; 20 indígenas; 1.813 de outras etnias e 124 detentos sem informação. Também requisito dados sobre o cotejo entre detentos, ou reeducandos, como se convenciona chamar, além de vagas. Sobre as unidades, “todas operam acima da capacidade, com exceção do Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico (HCTP) e Penitenciária de Tacaimbó (PTAC)”, retorna a assessoria da Seres.

Algumas outras informações demandadas à Seres me são fornecidas, no final, pelo Liberta Elas, um “coletivo de mulheres feministas, interseccional, antirracista, anti-punitivista e abolicionista penal” ancorado no Recife e formado por sete profissionais: as três irmãs Trevas – Juliana, advogada, Fernanda, psicóloga, e Clarissa, jornalista; Nathielly Darcy Ribeiro, professora e doutoranda em Sociologia; Thaise Bauer, advogada popular; Anicely Santos, integrante do Movimento Negro Evangélico; e Amanda Montenegro, militante do Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST). O coletivo começou sua atuação em 2019, nas colônias penais femininas do Bom Pastor, na Iputinga, zona oeste do Recife, e de Abreu e Lima, na Região Metropolitana do Recife.

Ei-las, as estatísticas, na voz de Juliana, também doutoranda em Sociologia pela UFPE e especialista em Women’s Studies da Columbia University, em Montreal, no Canadá. “Pernambuco é o primeiro lugar nacional no tempo que se aguarda entre a prisão e o julgamento, que é três vezes mais a média nacional, é a primeira população carcerária do Nordeste e a sétima do Brasil, tem 56% dos presos aguardando serem sentenciados, mais mulher provisória do que condenada e, das mulheres que estão presas, 88% são negras. Dados do Infopen”, informa ela. “E a prisão preventiva das mulheres aqui segue critérios muito abstratos, como atitude suspeita. O que é uma atitude suspeita? Outra coisa que queríamos saber é que sensação de segurança vai ser trazida para a população com a prisão de uma mãe?”, interroga Clarissa Trevas.

O Liberta Elas tem como foco a realização de oficinas nas prisões. No segundo semestre de 2019, o coletivo esteve mais de 30 vezes na Colônia Penal Feminina Bom Pastor e na CPFAL, como a colônia de Abreu e Lima é chamada, com o Clube do Livro, no qual privilegiam obra de autoras negras, muitas vezes surpreendendo as detentas, que nunca haviam tocado em um livro escrito por uma mulher de cor igual à sua.

Em março de 2020, reiniciou o clube e uma série de oficinas especiais na CPFAL e aguarda uma nova rodada de oficina de direito penal, em parceria com a Defensoria Pública de Pernambuco e com o grupo Robeyoncé de Estudos de Gênero da FDR. “Nessa oficina, damos uma introdução ao direito penal, explicando como é o processo penal para elas, o que acontece depois da audiência. Abrimos para que possam tirar dúvidas sobre o próprio processo e, acima de tudo, para que possam falar. É uma escuta livre, atenta, não moralizante, e o fato de elas falarem é um catalisador: é o momento em que se escutam, e muitas vezes, por exemplo, querem falar sobre o crime, e são acolhidas. E respeitadas em suas falas, o que acontece poucas vezes”, comenta Clarissa.

Ela ressalta que o punitivismo “é um problema de todos nós” e que o Liberta Elas “não acredita em prisões”. Porém, ao constatar, cada uma em um respectivo momento de sua vida, que o Estado se ausenta de suas responsabilidades dentro do cárcere e que a clivagem por gênero ratifica o massacre que é o aprisionamento em grande escala, as sete mulheres que compõem o coletivo optaram por agir. No ato realizado na segunda-feira, 9 de março, em comemoração ao #8M, o Dia Internacional da Mulher, duas delas estavam vestidas com a camisa do coletivo – cujo símbolo é o ouroboros, a cobra mordendo o próprio rabo, signo poético do infinito ou da repetição ad eternum dos mesmos ciclos (do grego “aquele que morde a própria cauda”) – e distribuindo panfletos onde se lia frases como “Toda prisão é política” e “Não estamos todas. Faltam as presas”.

“Na prisão, são as famílias que levam comidas, roupas, até água mineral de boa qualidade. É como se o Estado não quisesse nem saber o que acontece ali. Há o comércio de celulares, de drogas… Na maioria das prisões, tem uma cantina. Tudo é pago”, atesta Clarissa. Fico imaginando se, quando elas promovem encontros sobre o Liberta Elas, a fim de mobilizar outros grupos, quiçá furar as bolhas e atingir outras mulheres interessadas em ajudar, por exemplo, na compra dos “kits políticos de higiene”, que distribuem no Bom Pastor e na CPFAL, não ouvem comparações com Litchfield, a penitenciária para onde é mandada Piper, a protagonista branca vivida por Taylor Schilling, no seriado Orange is the new black, produção da Netflix, exibida entre 2013 e 2019. “É bem diferente”, responde Juliana.

Porque, na verdade, por mais que seja possível consumir essas imagens a ficcionalizar as dinâmicas entre as presidiárias, tingidas com as tintas do neoliberalismo americano em Orange (a prisão de Piper é privada e controlada por uma empresa não muito interessada no bem-estar das detentas, por exemplo) ou com os arquétipos do lesbianismo, como a presidiária sapatão Tonhão, personagem de Claudia Raia no programa humorístico TV Pirata, criada pelo diretor pernambucano Guel Arraes, no final dos anos 1980, para Rede Globo, é no “irremediável extenso da vida”, como diria Guimarães Rosa, que se impõe a dolorosa urgência de olhar para essas mulheres, falar delas, ajudá-las, abraçá-las e, se não literal, ao menos metaforicamente, libertá-las.

“A atuação do poder punitivista do Estado pode ser observada no encarceramento dos corpos das mulheres presas. A intensificação das políticas neoliberais tem como uma de suas consequências a consolidação de um Estado autoritário e, cada vez mais, punitivista. À medida que o neoliberalismo avança, o Estado passa a prender e a criminalizar mais as ‘classes perigosas’ – no Brasil, historicamente, a população jovem negra e os corpos femininos desviantes da lógica heteronormativa. Segurança é uma área importante, porque é onde o controle estatal é usado como um instrumento da direita. A esquerda também acaba se utilizando da lógica punitivista. Há, no nosso país, um entendimento de que as pessoas que cometem crimes devem, sim, ser presas e que as prisões podem ser centros de punição e ressocialização a funcionar de forma humanizada. Isso acontece? Não. As prisões não ressocializam. São como senzalas, cheias de pessoas negras e pobres”, vaticina Juliana.

Em Punir os pobres (Editora Revam, 2003), o sociólogo francês Loïc Wacquant, professor da Universidade de Berkeley, na Califórnia, pesquisador no Centro de Sociologia Europeia do Collège de France, discorre sobre “a nova gestão da miséria nos Estados Unidos”. Porém, sua argumentação reverbera no Brasil – nos anos 1990, ele pesquisou violência urbana e segurança pública como professor visitante no Rio de Janeiro.


A detenta Márcia Lapa Félix tem 29 anos e cumpre pena de 10 anos e seis meses por tráfico de drogas. Foto: Priscilla Buhr

No segundo capítulo desse livro, intitulado A prosperidade do Estado penal, a epígrafe pertence aos alemães Georg Rusche e Otto Kirchheimer: “O sistema penal de qualquer sociedade não é um fenômeno isolado obedecendo somente às suas próprias leis. É a justo título um elemento do sistema social em seu conjunto; ele partilha suas aspirações e defeitos”. Escritas em 1939, essas frases integram Punição e estrutura social, perenizada como a “primeira obra da Escola de Frankfurt editada pela Columbia University Press de Nova York”. Era o pensamento da criminologia marxista que os nazistas se esmerariam em enterrar com a sua ascensão, logo em seguida, mas que permanece atual à luz do contemporâneo.

Assim como permanecem atuais e universais, embora originalmente destinadas aos EUA, as palavras de Wacquant, em O “grande confinamento” do fim do século: “A destruição deliberada do Estado social e a hipertrofia súbita do Estado penal transatlântico no curso do último quarto de século são dois desenvolvimentos concomitantes e complementares. Cada um deles, eles respondem, por um lado, ao abandono do contrato salarial fordista e do compromisso keynesiano em meados dos anos 1970, e, por outro lado, à crise do gueto como instrumento de confinamento dos negros em seguida à revolução dos direitos civis e aos grandes confrontos urbanos da década de 1960. Juntos, eles participam do estabelecimento de um ‘novo governo da miséria’, no seio do qual a prisão ocupa uma posição central e que se traduz pela colocação sob tutela severa e minuciosa dos grupos relegados às regiões inferiores do espaço social estadunidense. Desenha-se assim a figura de uma formação política de um tipo novo, espécie de ‘Estado centauro’, cabeça liberal sobre corpo autoritário, que aplica à doutrina do ‘laissez faire, laissez passer’ (deixar fazer, deixar passar) ao tratar das causas das desigualdades sociais, mas que se revela brutalmente paternalista e punitivo quando se trata de assumir as consequências”.

Não por acaso, a professora da Unicap Marília Montenegro revela que Loïc Wacquant, quando se refere à desumanização do cárcere em sua pátria, fala em uma “brasilianização do sistema prisional francês”: “O modo violento como tratamos nossos presos e presas virou um xingamento”. E Petra Silvia Pfaller, alemã nascida perto de Munique, decerto sabe disso melhor do que muitos e muitas de nós. Advogada de formação, freira das Irmãs Missionárias de Cristo, ela é conhecida como Irmã Petra, a atual diretora da Pastoral Carcerária, cujo lema é “estive preso e vieste me visitar”. No site da entidade, um breve resumo: “Uma ação pastoral da Igreja Católica Romana no Brasil, vinculada à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, que tem como objetivo a evangelização das pessoas privadas de liberdade, bem como zelar pelos direitos humanos e pela dignidade humana no sistema prisional”.

Faz 25 anos que ela atua na Pastoral Carcerária. Antes radicada em Goiânia, há um ano assumiu a coordenação geral e foi para São Paulo. Entrevisto irmã Petra por telefone no início de uma tarde de março e o tópico de abertura da conversa são suas percepções sobre as diferenças no sistema carcerário brasileiro de quando ela chegou ao Brasil, em 1991, para cá. “A coisa só piorou”, resume, ainda com forte sotaque germânico. “A Pastoral Carcerária trabalha com duas balizas, a evangelização e os direitos humanos, a promoção da dignidade humana. É objetivo da Igreja Católica estar presente no cárcere dando escuta, já que os presos não podem ir até nós. No entanto, a gente percebe que, de dois anos para cá, aumentaram as dificuldades para ter um encontro com a pessoa presa. Existem mais restrições às visitas religiosas”, emenda.

Seria uma característica da gestão do atual presidente da República, Jair Bolsonaro? “Não, todos os governos, de 15, 10 anos para cá, alegam sempre as mesmas coisas: falta de agente penitenciário e de segurança. Independentemente de governo, as restrições têm aumentado bastante. Porque a Pastoral é uma das poucas igrejas que fazem denúncia. Lançamos uma pesquisa no nosso site há um ano e meio, você pode ir lá ver. Isso incomoda bastante e talvez aumentem as restrições aos nossos agentes”, responde irmã Petra, aludindo ao relatório Tortura em tempos de encarceramento em massa: 2018.

A Pastoral Carcerária atua em todos os estados do país, “em quase todas as cadeias”. Seus membros são voluntários e passam por capacitações para ir semanalmente aos presídios, podendo estender sua atuação para fora da circunscrição do confinamento. “Visitamos familiares também e, se têm uma demanda, procuramos o juiz ou a defensoria pública, pois o acesso à justiça, a remédios e medicamentos, por exemplo, faz parte da promoção da dignidade humana”, descerra a freira alemã.

Promover a dignidade humana não é linear em um país onde aumenta “a porcentagem do encarceramento”, como ela diz, e a “seletividade é muito grande”. “É visível e descarada a criminalização do jovem, negro e pobre. Acredito que hoje a lei dá toda a condição para diminuir o encarceramento, com a questão das mulheres grávidas ou mães, que têm direito a medidas cautelares ou prisões domiciliares, mas isso não acontece porque, a meu ver, os juízes que têm esse poder na mão para assinar são altamente repressores e machistas.”

A CPFAL fica à Rua Rinaldo Pinho Alves, 50, no bairro de Caetés II, em Abreu e Lima. É vizinha do famoso Cotel. De carro, do centro do Recife, dá meia hora, pouco mais ou pouco menos, via perimetral de Olinda. Quando a Continente visita a penitenciária, quem nos recebe é a policial penal Karine de Freitas, gestora interina da unidade durante as férias da gestora Rita de Cássia Souto. Karine, concursada em atividade há oito anos lá, me conta que agora os agentes penitenciários são chamados de “policiais penais”. A emenda constitucional 104, de 2019, adicionou “polícias penais federal, estaduais e distrital” no artigo 144, que diz que “a segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio”, e lista os órgãos gabaritados para tal – polícias federal, rodoviária federal, ferroviária federal, civis, militares e corpos de bombeiros militares e os penais.

São 572 PPLs, “pessoas privadas de liberdade”, elucida Karine, como as reeducandas ou detentas são chamadas, muito embora presas seja vocábulo recorrente – 410 estão na penitenciária, o restante na colônia, “a porta de entrada”, onde, em tese, fica somente quem ainda aguarda julgamento. No pavilhão A, estão as que já progrediram para o regime semiaberto; no pavilhão B, quem está no fechado. O uso de espaços comuns, como quadras poliesportivas, é alternado, mas todas obedecem ao mesmo cronograma.

“Elas acordam cedo, às 6h pagam boia, a gíria para liberar alimentação, e às 7h30, quem estuda, já vai para a escola Irmã Dulce, mantida pela Secretaria de Educação, que funciona de manhã, de tarde e de noite. Às 11h30, é servido o almoço, às 17h30, é servido o jantar e, depois, elas entram para a cela”, explica a gestora interina. As visitas familiares ocorrem aos domingos, das 7h às 16h, com um cadastramento prévio (feito somente às terças-feiras), e os encontros conjugais se dão às terças, quintas e aos sábados e, aos domingos, uma vez a cada 15 dias. “Existem suítes em um espaço que é fora dos pavilhões, exclusivo para a visita íntima”, detalha Karine.


Isadora Marco Domingues atua na cozinha e participa da remição de
pena – para cada três dias trabalhados, um a menos na cadeia. 
Foto: Priscilla Buhr

Há uma média de 160 visitantes a cada domingo. Mas não era domingo, e, sim, terça, quando entramos na CPFAL para conhecer Márcia Lapa Félix e Isadora Marco Domingues. Márcia, negra, e Isadora, branca, assemelham-se na convergência das estatísticas: têm 29 anos, são reincidentes e estão cumprindo pena por crimes vinculados à Lei de Drogas, com rígidas sentenças: Márcia a 10 anos e 6 meses, por tráfico, e Isadora a 25 anos, por tráfico e operação. Como a pena de Márcia previa o cumprimento em “dois quintos”, e ela está há mais de quatro anos encarcerada, está perto de sair. “Tenho muita fé que, quando sair, vou participar do Liberta Elas. Conheci na oficina dos livros e gostei muito delas.”

O depoimento de Márcia ilustra muito do que essas páginas trouxeram e outros inúmeros aspectos do que ouvi das diversas fontes consultadas para esta reportagem. Tem lucidez, consciência, articulação. Verdade: “Fui presa com nove bigs, balinhas com maconha, que eu realmente estava vendendo. Eu estava na favela do Caic, nos Milagres, quando a polícia me abordou, sendo que não acharam comigo na hora, porque estava escondido. Me agrediram. Era uma quantidade pequena, não deu nem 13 gramas, mas, porque eu era reincidente, aí junta tudo (nessa hora, eu pergunto a ela se tinha sido presa já). Sim, já. Eu tinha saído e tinha seis meses que estava na rua. Nessa queda, faz quatro anos e meio que estou aqui. Tirei um ano na colônia e três anos aqui. A minha outra queda foi em 2014, por tráfico também. Fui pega com oito quilos de maconha, passei um ano e cinco meses presa e fui embora. Na colônia. Cheguei a ser sentenciada, sim, mas caí como mula e isso dá uma pena menor”.

Intrigada pela soma das penas, indaguei o óbvio: como assim, oito quilos dão uma pena de um ano e cinco meses e 13 gramas geram mais de 10 anos? “Dá uma pena menor, se a pessoa for enquadrada de outro jeito. Mas eu não entendo isso, com oito quilos eu passei um ano e cinco meses, com nove bigs, que é tão pouco, estou aqui há quatro anos já”, retruca Márcia, também refém da mesma incompreensão que me tomava.

“Às vezes, quase sempre, somos culpadas pelo fato de ser mulher e negra, muitas vezes caímos como cúmplices ou culpadas como traficantes. Trafiquei? Trafiquei, sim, para sustentar meu filho, porque eu estava chegando ao ponto de ter que levar ele para casa de uma amiga para ele poder comer, para ele poder ter uma refeição diária. Minha mãe me ajudou na primeira vez, mas, depois, cada um segue para seu lado, vai viver sua história. Aí apareceu um comparsa e disse ‘toma, vai lá fazer uma feira para tu’ e, já no segundo tempo, quando as coisas estavam acabando e eu sem ter o que fazer, eu já tinha distribuído currículo nas lojas da cidade e tudo, mas não fui chamada, porque eu era ex-presidiária, creio. Então, levei meu filho para a casa da minha amiga, eles me deram dinheiro primeiro, mas quem dá com uma mão quer com a outra. Então, da segunda vez, já tive que fazer alguma coisa para poder merecer esse dinheiro. Parti para traficar, para poder tirar meu filho daquela situação.”

Márcia é de Águas Compridas, em Olinda, mas atualmente está no Ibura. O pai, Marcos, é usuário de drogas, a mãe, Joselma, não lhe visita mais, e, embora ela se refira sempre ao seu filho, tem dois meninos, Cauã, 13, e William, 8, que não vê desde janeiro. “Os dois filhos não são do mesmo pai e agora eu estou com uma companheira, Talita”, revela. Seu braço esquerdo carrega uma tatuagem com o nome de uma outra namorada, que ela quer apagar quando “chegar na rua”, e também algumas cicatrizes – “revoltas, cada corte desse é uma história”. Quando pergunto o que ela pensa em fazer ao ganhar sua liberdade, é enfática: “Eu quero trabalhar, nem que seja vendendo pipoca no sinal, pois não dá para voltar para cá. É muito ruim. Estou ficando velha já, tenho 29 anos, acabando minha vida aqui dentro”.

Sorrio e brinco com ela, dizendo que tenho 40 anos já e não me sinto velha. No entanto, depois reflito sobre algo que não tenho propriedade tampouco experiência para abordar: a passagem do tempo na prisão há de obedecer a alguma regra que não se enquadra no modo cartesiano de encarar a vida. A própria ideia de vida, aliás, não pode ser aplicada a mim e a Márcia de maneira igual. Nem a Isadora, que chega para conversar comigo com uma farda azul, usada pelas reeducandas que atuam na cozinha. Quem trabalha, aliás, entra no esquema da remição de pena – para cada três dias trabalhados, um a menos na cadeia. “Elas recebem 75% do salário-mínimo e, desse montante, 25% é retido como pecúlio e só vai ser liberado quando elas saírem. Está na Lei de Execução Penal”, ensina Karine de Freitas.

Márcia trabalhava no comércio informal, fazendo faxina da sua cela e recebendo em “dinheiro, lanche, cigarro, material de limpeza”. Isadora dá expediente no administrativo da cozinha e, por isso, folga apenas aos sábados e tem o benefício de estar na mesma cela da sua companheira, Renata. “Eu moro na cela com as outras concessionadas. Fui pro pavilhão B, mas me chamaram para trabalhar e, graças a Deus, vim para o A. Renata mora comigo e faz toda a diferença. Não é cama de casal, mas a gente dá um jeito”. Isadora tem uma filha, Melyssa Ester, 9 anos, e entrou na “vida do crime”, como rotula, por causa do ex-marido, o pai de Melyssa, que chegou a ser preso. E ela tem uma convicção: “Acho muito mais fácil um homem sair da cadeia do que uma mulher”.

No seu relato, que me dá com firmeza, encontro pontos de convergência com a trajetória de Márcia. “Vim pra cá por tráfico e operação. Eu tinha um processo de 2009, que saí de liberdade provisória, mas nunca procurei saber dessa minha sentença. Agora estou presa há quatro anos e três meses. Fui sentenciada na minha operação e no meu tráfico e, no total, deu 25 anos. Porque operação é você ter alguma associação ao tráfico. Caí com escuta, só que, nessa operação, eu caí com droga. Então, tenho dois processos diferentes. Em 2009, fui tráfico também, eu estava em casa, me pegaram, rodaram eu e mais quatro caras. Caí com um quilo de maconha do meu irmão. Eu não vendia maconha, vendia outra coisa. Mas, hoje, ele mora em Piedade, eu estou aqui. Tinha fiança para ele, não tinha para mim, a PM já estava atrás de mim. Então, para ele não ir ao Cotel, acabei assumindo. Tinha 19 anos, se tivesse a cabeça que tenho agora, não tinha feito nada do que fiz”, narra Isadora.

“Na primeira vez, em 2009, fiquei presa sete meses e saí em 2010. Trabalhei, tive minha filha, o pai dela se envolveu de novo com tráfico e voltei pra cá em 2015, quando rodei na operação. Fui pega com um quilo de maconha e 10 pedras de crack. Que era meu, mas eu nunca usei, era para vender. Como minha irmã é advogada, minha advogada deu aval para ela poder mexer no meu processo. Eu recorri à minha sentença, mas não tem muito o que fazer. Acredito que está com Orleide”, prossegue. Orleide Rosélia do Nascimento Silva é a juíza titular da 1ª Vara de Execução Penal, na comarca do Recife.

Isadora nasceu em São Paulo, de pais “gringos”, uma espanhola e um venezuelano, que hoje moram, respectivamente, na França e na Espanha: “Me mantenho aqui porque minha mãe mora longe, meu irmão trabalha, não tenho visitas frequentemente. Minha filha, eu vi no domingo, fazia dois meses que não vinha, minha irmã foi quem trouxe”. Ela não me conta dos planos que acalenta para o dia em que não mais precisar acordar às 5h para despachar na cozinha da CPFAL. Mas ao se despedir de mim e da fotógrafa Priscilla Buhr, entre abraços e beijos, me garante: “Até a próxima vez, a gente vai ser ver na rua”.

Se, algum dia, a juíza da Vara de Execução Penal lhe conceder progressão de pena e Isadora puder sair, por exemplo, para trabalhar fora, talvez tenha que custear a própria tornozeleira eletrônica. Uma semana depois da visita ao CPFAL, já quando o Recife estava quarentenado por causa do COVID-19, o gabinete das Juntas me avisa que o PL 394/2019 e 439/2019, uma coligação de dois projetos de lei distintos, concebidos, respectivamente, pelos deputados Gustavo Gouveia (DEM) e Delegado Erick Lessa (PP), entrara na ordem do dia. Seria a votação em segunda discussão – fora aprovado na primeira, mesmo sendo reprovado na Comissão de Cidadania (apesar de ser ratificado pela, ironia?, Comissão de Justiça). O substantivo, o instrumento jurídico criado para compilar os dois projetos, indica: “Os apenados devem ressarcir o Estado das despesas realizadas com a utilização e manutenção do equipamento de rastreamento eletrônico. Caso não tenham esses recursos, o ressarcimento poderia vir em forma trabalho, conforme prevê o artigo 29 da Lei de Execuções Penais”.

“Temos poucos aliados no campo progressista”, diz Carol Vergolino, codeputada da mandata (assim, no gênero feminino) da Juntas. Elas são cinco – no site da Assembleia Legislativa do Estado de Pernambuco (Alepe), vê-se a foto e uma biografia de Jô Cavalcanti, ambulante e coordenadora nacional do MTST, mas a mandata é exercida coletivamente por ela, Carol, pela militante feminista Joelma Carla, pela professora Kátia Cunha e pela bacharel em Direito Robeyoncé Lima, a primeira advogada trans de Pernambuco. “Mas vamos continuar lutando nisso, porque é inconstitucional essa ideia. É rasgar a Constituição. Se passar na segunda discussão, vamos montar estratégias para chegar ao governador”, garante Carol, jornalista de formação, produtora audiovisual por opção e, agora, codeputada.

“Imagine o que vai acontecer com quem não consegue ser julgado. Ou com o menino que está preso e a mãe vai arranjar o dinheiro, nos mundos e fundos, para pagar a tornozeleira. Se o racismo desumaniza, se o machismo desumaniza, se o capitalismo desumaniza, o cárcere é tudo isso junto”, situava. A Juntas preside a comissão de Direitos Humanos da Alepe desde o início da atual legislatura e até o fim deste ano e, como tal, esforça-se para pensar em alternativas antipunitivistas. “Nossa mandata é uma ‘ponte’, é participativa. Estamos trabalhando juntas com os movimentos, sempre. Criamos o grupo de trabalho Desencarcera para discutir tudo isso”, pontua Carol. Do Desencarcera fazem parte, por exemplo, a DPU, o Liberta Elas e a Marcha da Maconha; já houve oito reuniões entre 2019 e 2020.

Carol Vergolino entende que “a guerra é longa”, mas que é preciso resiliência para combater nas “várias batalhas”. “Acredito que estamos ganhando musculatura para continuar debatendo essas questões sobre por que se prende tanto e quem se prende no Brasil. Vivemos todos os reflexos da escravidão e nossa classe média gosta do discurso de que bandido bom é bandido morto. Mas esse bandido tem cor, tem gênero também. Fora que as mulheres são presas em suas casas, muitas vezes por atitudes suspeitas, os policiais chegam sem mandado, agredindo, e prendem sem saber do que está nas leis. Se ela tem filho de até 12 anos, se ela está grávida, não pode estar presa. Está no Código Penal. Mas elas estão. Quem é que vai pagar os três anos em que seu filho aprendeu a falar? Quem vai devotar o tempo para a mãe ver o menino andar?”, interroga a codeputada. Sua voz embarga, ela chora. “Não consigo não chorar”, me revela Carol.

***

As técnicas de policiamento e disciplina, além da escolha entre obediência e simulação que caracterizou o potentado colonial e pós-colonial, estão gradualmente sendo substituídas por uma alternativa mais trágica, dado o seu extremismo. Tecnologias de destruição tornaram-se mais táteis, mais anatômicas e sensoriais, dentro de um contexto no qual a escolha se dá entre a vida e a morte.
Achille Mbembe em Necropolítica (2003).

O termo necropolítica, título do ensaio escrito por um filósofo, historiador e professor camaronês, ainda no início dos anos 2000, foi utilizado várias vezes pelas pessoas que se dispuseram a dividir com a Continente suas pesquisas e sagacidades acerca da luta contra o encarceramento em massa. Ouvi a expressão várias vezes, assim como “senzala” e “enxugar gelo” – essa, por sua vez, aplicada ao modus operandi da Justiça criminal. Na necropolítica é como se, para aquela vala da “tranca”, fossem atirados os corpos que o Estado não consegue matar diariamente, mas que deseja relegar à margem. “Estou há 12 anos na mesma vara e tive pouquíssimos presos de classe média. Quando era preso, em algum caso extremo, quase sempre um tribunal concedia um habeas corpus. É um caso para outros 100 mil de pessoas pobres encarceradas”, revela Pierre Souto Maior, juiz da 2a Vara Criminal de Caruaru.

Ele recorda um caso de 2004, pelo qual ganhou até uma certa notoriedade. “Prenderam um sujeito por furtar uma lata de aguardente, que custava R$ 1,50. Considerei o crime insignificante e mandei soltar. A decisão tinha sido de um colega meu; mas, para mim, não era uma lesão suficiente para incidir no direito penal. Talvez na área cível, se fosse o caso. Soltei e absolvi. Sofri muitas críticas. Esse caso saiu num site e alguns dos comentários diziam algo como ‘vamos roubar a bebida que tem na casa do juiz’”, conta Pierre. Ele e a paulista Fernanda Menna são integrantes da Associação Juízes para a Democracia (AJD), magistrados progressistas em meio a centenas, milhares de outros, que, com austeridade extrema para cumprir a lei, fortalecem a mão punitivista – racista e classista – do Estado brasileiro.

“A impressão que tenho é que assisto à história do Brasil desfilando na minha frente todo dia: negros pobres e periféricos, sem o nome do pai na certidão de nascimento, muitas vezes tendo estudado até o quinto, sexto ano, a maioria presa por causa de tráfico. Quando você solta, é mal vista pelos pares e pelos policiais. ‘Vai soltar quantos hoje, doutora?’ é uma pergunta que ouço com recorrência”, testemunha Fernanda, que nos últimos cinco anos foi juíza auxiliar na comarca de São Vicente, próximo a Santos, no litoral paulista. Ela é cética quanto ao pacote de medidas proposto pelo atual ministro da Justiça e Segurança Pública, Sérgio Moro: “É dar um aval para a polícia que mais mata no mundo continuar matando. De dois anos para cá, houve um aumento considerável de mortes na favela por policiais. Esses policiais são treinados para ir para uma guerra. Contra quem? O povo. A própria existência da polícia militar é uma aberração”.

Em Necropolítica, publicado no Brasil em 2018 pela n-1 edições, Achille Mbembe conceitua: “Se o poder ainda depende de um controle estreito sobre os corpos (ou de sua concentração em campos), as novas tecnologias de destruição estão menos preocupadas com inscrição de corpos em aparatos disciplinares do que em inscrevê-los, no momento oportuno, na ordem da economia máxima, agora representada pelo ‘massacre’”.

João (nome fictício) foi espectador e agente do massacre diário que ocorre nas unidades prisionais. Durante pouco mais de quatro anos, cumpriu pena por tráfico de drogas no Presídio Agente Marcelo Francisco de Araújo (Pamfa), um dos três vértices do que outrora era o Aníbal Bruno, no Curado, zona oeste do Recife. Os outros são o Presídio Frei Damião Bozado (PFDB) e o Presídio Juiz Antônio Luiz Lins de Barros (PJALLB).

Viveu em um barraco dentro de uma cela, pago por sua mãe ao detento que era dono daquela estrutura – algo como uma cama de concreto onde é possível instalar uma televisão, por exemplo. Esse barraco custou R$ 3,5 mil. Quando ele progrediu para o semiaberto e foi para a Penitenciária Agroindustrial São João, em Itamaracá, sua mãe Maria (nome fictício) gastou outros R$ 1,5 mil. Ao todo, ela dispendeu “o dinheiro para comprar um carro” para garantir a segurança do filho; pelas suas contas, foram R$ 35 mil.


Foto: Priscilla Buhr

João descreve: “Quem manda ali dentro são os presos. Tem mais arma – faca, fuzil, revólver – com os presos do que com os agentes. Se quiserem tomar aquilo ali, tomam. Cada pavilhão tem seu chaveiro e eles é que ficam com a chave, que mandam em tudo. Ele é escolhido e a ideia dele vale para tudinho. Se não tiver um, pior, vira bagunça, todo mundo se mata. Os agentes é tudo comprado. Um dia eu briguei com um cara lá e fui para o castigo. Meu chaveiro foi me buscar. Tem gente que não merece estar tirando a cadeia. Um cara que rouba um celular e está tirando quatro, cinco anos… O cara apanhando todo dia, vendo matança, gente morrendo com facada e tijolada, que é o que tem na mão. O cara volta doido. Ali dentro, o governo sustenta os bandidos. Porque todo mundo passa o tempo inteiro dizendo que vai voltar a traficar, vai tomar aquela boca, vai matar. Ninguém vai para prisão porque quer, vai porque precisa ganhar dinheiro, não vai roubar o que é dos outros e, se não tem oportunidade de emprego, pega droga e começa a traficar. Tinha um cara lá pagando três anos por roubar um saco de leite. Um cara desse não era nem para entrar. Ali só tem leão: traficante, assaltante, latrocida, homicida, estelionatário. Tem gente que matou três pessoas e saiu com dois meses, e aquele cara lá? Não existe justiça. Isso é fantasia que o país cria para iludir quem é idiota e acredita. Ali todo mundo é bicho. Ninguém sai bom”.

A cadeia “é o último grau do purgatório”, segundo João, que foi interceptado por policiais ao comprar maconha em um bairro da zona norte no Recife. Apanhou no camburão, apanhou antes de chegar ao Instituto Médico Legal para fazer o exame de corpo de delito, apanhou até chegar à central de flagrantes. Seu corpo branco ostentou, durante muito tempo, as marcas da violência, segundo Maria, sua mãe, que, entre outubro de 2015 e 2019, reservou todos os domingos para visitá-lo. Foi ela quem lhe sustentou, afetiva e financeiramente. Quem lhe amparou. Não o Estado. Agora, em liberdade condicional, ele não sabe se conseguirá emprego, mas tem ciência de que não quer voltar. E a sociedade, estará pronta para recebê-lo?

“Todas as vezes que entro em uma unidade prisional me lembro do escritor Primo Levi: como pode a sociedade conviver tão harmonicamente com tanta violação?”, indaga Maria Lygia Koike, perita do Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura (MEPCT), instituído pela lei 14.863, de 7 de dezembro de 2012. O MEPCT-PE começou a atuar em 2013, a partir de uma recomendação da Organização das Nações Unidas (ONU) para os países onde se constavam práticas de tortura contra quem vivia em locais de privação de liberdade.

“Não somos um órgão de denúncia, e, sim, de inspeção. Ao visitar os locais de privação de liberdade, produzimos um relatório. Já fizemos mais de 300 relatórios”, conta Maria Lygia, formada em Direito e atualmente doutoranda na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, com a tese intitulada O sistema carcerário, tortura e Direitos Humanos: uma análise do Complexo Prisional do Curado à luz do supercaso da Corte Interagir de Direitos Humanos. “É uma pesquisa que vê o resultado imediato da política do superencarceramento: a tortura e os tratamentos cruéis, desumanos e degradantes”, resume.

Primo Levi foi um escritor italiano judeu e prisioneiro em Auschwitz-Birkenau. Um campo de concentração na II Guerra Mundial é semelhante a uma prisão brasileira? Quantas vítimas do Holocausto morreram vítimas de maus-tratos? Era um outro contexto, alguém pode dizer, mas não se trata da mesma desumanização? Na noite do domingo, 22 de março, um programa de variedades exibido pela emissora de maior audiência no país levou ao ar uma reportagem sobre os presídios e a ameaça do coronavírus. Quantos assistiram? A pergunta a descerrar esta reportagem só pode ser: pelos encarcerados e encarceradas, hoje e para além da pandemia, para além desta edição ou da reportagem na TV, o que vamos fazer?

LUCIANA VERAS, jornalista, crítica de cinema e repórter especial da Continente.

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