Com termômetros oscilando entre 17 e 19 graus, a noite da segunda, 21 de outubro, estava gelada, mas, ao mesmo tempo, sedutora, de um jeito que talvez só São Paulo seja capaz de propiciar. Perto das 19h, no trânsito engavetado das cercanias do Parque Ibirapuera, era possível perceber dezenas, centenas até, de pessoas devidamente encasacadas, muitas de mochila nas costas, dirigindo-se à área externa do auditório, um dos espaços desenhados por Oscar Niemeyer para compor a cartografia daquele enclave verde e artístico no meio da maior cidade da América do Sul. Quem estava a mobilizar aquela multidão não era uma artista, cantora ou mesmo cineasta (são tempos de Mostra Internacional de Cinema de São Paulo), mas, sim, uma ativista, filósofa e escritora negra – muito embora seja de fato e também um ícone pop. Em sua primeira passagem pela metrópole paulistana, Angela Davis haveria de estar entre nós.
Uma multidão a esperava sentada diante de um palco com quatro poltronas e de uma projeção na fachada do edifício. Impressionante como a vontade de ver Angela falar fazia com que boa parte do público permanecesse animado, porém sentado, numa feliz partilha da ansiedade para ouvir uma das mais lúcidas vozes do feminismo negro, do movimento anticapitalista e da luta abolicionista penal. Às 19h30, Ivana Jinkings, diretora da Boitempo – editora que acaba de lançar Uma autobiografia no Brasil e que trouxe Angela com apoio da Fundação Rosa Luxemburgo – surgiu para anunciar o início da conferência aberta A liberdade é uma luta constante: “Só agora foi possível trazer essa intelectual marxista para cá. É com muita honra e emoção que estamos aqui”.
Ivana apresentou Christiane Gomes, diretora de projetos da Fundação Rosa Luxemburgo e colaboradora da Continente, que mediaria a noite com carinho e sagacidade, e as outras mulheres que participariam daquele encontro inédito e extremamente simbólico: a pesquisadora Raquel Barreto, que prefaciou Uma autobiografia (cuja versão para o mercado editorial brasileiro chega 45 anos após sua publicação nos Estados Unidos), e a escritora Bianca Santana, da Coalizão Negra por Direitos. “A obra de Angela Davis dialoga com Lélia Gonzales, com Luisa Barrios e Sueli Carneiro”, antecipava Christiane, citando autoras feministas negras brasileiras para aplausos dos milhares presentes (a organização cravava em 15 mil). Seu chamado para que a convidada de honra entrasse em cena não poderia ter sido mais apropriado: “É com alegria, honra, liberdade e amor que recebemos Angela Davis”.
Christiane Gomes, Angela Davis e a tradutora Raquel de Souza. Foto: Rogério Vieira/Divulgação
Alegria, honra, liberdade e amor: quatro palavras cujas possibilidades de variação semântica pareciam estar contidas ali, no Ibirapuera, onde jovens negras e negros sacavam seus telefones celulares com um gracioso sorriso no rosto para filmar as palavras de Angela. Ela agradeceu a entusiástica acolhida, se disse honrada por estar em São Paulo (já estivera no Brasil, mas nunca aqui), valorizou o trabalho que os brasileiros estão fazendo para “garantir um futuro para o país e para o mundo” e convocou: “Os movimentos contra o racismo, contra o capitalismo e contra o patriarcado hétero devem se unir aos povos indígenas para que juntos possamos salvar o planeta”.
Angela se comunicava de cima de uma estrutura que, pela configuração das poltronas, emulava uma sala de estar. Ela estava em pé, ladeada pela incrível tradutora Raquel Souza, mas, com sua imagem projetada na parede de fundo e uma voz de sonoridade incisiva, porém afetuosa, se agigantava como uma potência em discurso, sabedoria e atitude. “Estou impressionada com a vasta quantidade de gente que está aqui hoje. Eu gostaria imensamente de poder cumprimentar pessoalmente cada um de vocês, mas, ao mesmo tempo, sinto que todos nós estamos conectados e fazemos parte de algo muito maior. A presença de vocês aqui me remete à marcha das mulheres negras, de 2015, e aos protestos que se seguiram ao assassinato de Marielle Franco”, saudou.
Ao falar da vereadora negra carioca morta em março de 2018, em um crime até hoje não solucionado e com vínculos explícitos com as milícias do Rio de Janeiro e, por conseguinte, com a presidência da República, a ativista e filósofa norte-americana se impunha como um farol: “O espírito de Marielle instiga a todos nós. Nós somos o seu legado. E nós devemos a ela continuar lutando por justiça racial, ao lado da comunidade LGBTQ, do Movimento Sem-Terra e do Movimento Sem Teto e pela liberdade de Lula”. Por sobre os gritos à menção do nome do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, preso há um ano e meio, Angela Davis condensou em português: “Lula livre”.
Era esperado que ela falasse em Marielle e em Lula, figuras fundamentais para qualquer tentativa de apreensão do que é o nosso país de 2019. No entanto, miss Davis foi além e mostrou por que é quem é. Ao longo de mais de uma hora, ela alinhavou temas essenciais em sua trajetória de ativismo e produção intelectual (“não sou a favor da reforma do sistema carcerário, e sim da abolição desse mesmo sistema”, em opinião abalizada pelo fato de ter sido presa por dois anos na década de 1970) a observações argutas sobre o Brasil e as implicações para o mundo. “Gostaria de iniciar essa noite com uma questão que trouxe o foco do mundo para o país: os incêndios que estão queimando a Amazônia, que foram provocados para expandir o espaço do cultivo da soja e para a criação do gado, de forma a garantir ainda mais lucro para o capitalismo”, pontuou.
Citando o cacique Raoni, ela evocou a necessidade de defender a Amazônia como uma missão coletiva – “ele diz que as pessoas querem matar o planeta e ele está certo: se não fizermos nada, logo vai ser muito tarde para mudar” – e comentou sobre o vazamento do “óleo misterioso” a atingir a costa do Nordeste. “Nesse exato momento, o óleo está poluindo as praias da Bahia e da região nordestina. Mais de 150 praias estão sendo afetadas por esse petróleo misterioso. Eu amo o Brasil, mas odeio o fato de que seus atuais governantes têm usado o capitalismo para privilegiar o lucro em detrimento das pessoas”, situou.
Ponto para reflexão: quase dois meses após o aparecimento das primeiras manchas de óleo no litoral do Nordeste, uma mulher negra de 75 anos nascida no Alabama, a milhares de quilômetros da Praia dos Carneiros ou Enseada dos Corais, em Pernambuco, vaticinou que o desastre é de relevância para o mundo e precisa ser encarado como a devastadora tragédia ambiental que é. Se somos, como Angela diz, parte de uma mesma energia, então o planeta inteiro demanda nossa atenção. O ministro do meio ambiente e o presidente da República Federativa do Brasil, entretanto, devem pensar de modo distinto, posto que até agora sobre isso não se pronunciaram.
E pausa para o bom humor e para ironia, ferramentas cruciais para a experiência atribulada que é estar no mundo: “Nos Estados Unidos, não costumo evocar o nome do atual presidente. Prefiro chamá-lo como o atual ocupante do cargo. O ocupante. Hoje, não quero perder tempo evocando o nome do presidente do Brasil, mas entendo que alguns de vocês se referem a ele como ‘o Coiso’”. Gargalhadas, braços para cima, gritos de #EleNão e assim ela colocou, no seu devido lugar, o símbolo do patriarcado hétero, do racismo e capitalismo contra o qual todos devem se insurgir.
Em seguida, Angela Davis voltou ao cerne de suas reflexões. “Tenho falado muito sobre a justiça do meio ambiente, mas ela está intrinsecamente ligada à justiça em prol da vida humana. E no centro da luta pela humanidade, está a nossa busca para defender as vidas negras. Black lives matter!”, exclamou. Vidas negras importam. Ela falou em Atatiana Jefferson, morta por um policial branco dentro do seu quarto, enquanto jogava videogame com o sobrinho; falou ainda em Eric Garner e em Mike Brown até capturar o olhar de todos para fatos contra os quais não existem argumentos. “O racismo da violência policial é ainda mais comum no Brasil. Vocês sabem disso melhor do que nós. O nome da criança de oito anos de idade que foi assassinada por tiros que vieram da arma de policiais do Rio de Janeiro deveria reverberar pelo mundo afora: Ágatha Sales Felix.
Por que uma linda garota negra deveria ser forçada a sucumbir sua própria vida só porque a polícia tem uma política de atirar primeiro?”, questionou.
Com a lembrança de Ágatha, assassinada com um tiro de fuzil no início de outubro, o genocídio da população negra ganhou nome e sobrenome. “A violência policial pode devastar nossas comunidades. Tive acesso a estatísticas recentes do Brasil que são assustadoras: uma em cada 10 mortes violentas é cometida por policiais. E essa é uma violência racista, na medida em que a pessoa que está na presidência disse que a polícia deve atirar para matar e que essa mesma polícia, ao mirar para um jovem negro, se não atirar nele, vai atirar em outro. Se não puder prendê-lo, vai prender outro negro”, observou. Sob o pretexto da guerra às drogas, Angela prosseguiu, tanto nos Estados Unidos como no Brasil são essas vidas – negras, periféricas – que se desperdiçam.
Foto: Luciana Veras
Ela contou, como se estivesse conversando na intimidade de sua casa e não diante de uma numerosa plateia, que no dia anterior havia visitado a Escola Nacional Florestan Fernandes, do MST, e lá tinha conhecido Preta Ferreira, filha de Carmen Silva, liderança da Frente de Luta pela Moradia – FLM e do MSTC – Movimento dos Sem-Teto do Centro. Preta acaba de ser solta após meses na prisão. “Um governo que criminaliza os movimentos sociais e a luta pela moradia deve ser combatido, enquanto devemos celebrar todos os que estão nessa batalha para que qualquer um possa ter uma casa. Não podemos pensar a democracia sem a participação ativa das mulheres negras. Quando as mulheres negras se insurgem, a luta contra o racismo e o capitalismo se torna global. Temos que libertar todas as Pretas Ferreiras”, afirmou.
E de volta a Marielle Franco, cujo nome estampa placas de rua em Paris e Lisboa, Angela Yvonne Davis ratificou: “Nossas lutas estão profundamente conectadas. Os governos nacionais e locais no Brasil têm uma conexão profunda e direta com as forças militares e de segurança dentro do regime de Israel e eles importam essas tecnologias, a fim de utilizar nossos corpos como campo para testes, de forma a reprimir os movimentos sociais brasileiros e assassinar pessoas negras e pobres. Continuaremos a internalizar nossa resistência popular e a conectar nossa luta para encerrar a militarização e opressão racista, das favelas do Rio de Janeiro até a Palestina. Juntos nos comprometeremos a dar continuidade à luta que Marielle visualizou para o mundo, uma luta para que liberdade, justiça e igualdade beneficiem todas”. Por fim, em português, bradou: “Marielle presente”.
Com seu olhar generoso a nos mirar, Angela lembrava que nós temos muito a celebrar. Propôs uma inversão de fluxo intelectual, por assim dizer, ao elogiar as autoras feministas negras brasileiras – em especial prestando uma reverência à antropóloga e escritora Lélia Gonzales, uma das fundadoras do Movimento Negro Unificado – MNU, falecida em 1994: “Vocês já buscaram muito as autoras feministas negras dos Estados Unidos, mas agora é hora de nós virmos até vocês”. Falou em Margareth Menezes e em Elza Soares, nas violências inenarráveis da escravidão e na importância das pessoas negras sobreviverem para escrever suas próprias narrativas.
Antes de o relógio atingir 21h30, o frio aumentava e algumas pessoas já se deslocavam pelo parque enquanto quatro mulheres negras seguiam a debater com alegria, honra, liberdade e amor. Com lágrimas também, como as que Raquel Barreto, talvez a maior especialista na obra de Angela Davis no país, não escondeu ao evocar as ancestrais e o Quilombo de Palmares: “Talvez Palmares tenha sido a nossa primeira experiência de democracia racial. Sua resistência até hoje nos move”. E com inspiração. Bianca Santana, da Coalizão Negra por Direitos, alertou para o projeto de instalar uma base norte-americana em Alcântara (MA) como se as vidas quilombolas não fossem relevantes: “Essas vidas não podem ser decididas pelo governo dos Estados Unidos. Precisamos nos aquilombar. Sugiro a criação de uma coalizão diaspórica internacional”.
Atenta, Angela tomava notas. Sábia, parecia nos dizer: é sempre tempo de aprender. Seja com a luta dos curdos na Síria (“eles defendem um tipo de democracia radical e imaginativa que nos impele a essa constante batalha por liberdade”), seja com o vislumbre de um fórum para se falar das diásporas negras (“as mudanças sempre foram e hão de ser ditadas não por indivíduos, mas pelo movimento das massas”), ou ainda com sua própria trajetória. “Houve um tempo em que três dos homens mais poderosos do meu país, e do mundo, queriam me condenar à morte. Richard Nixon, Ronald Reagan e J. Edgar Hoover pediram a pena máxima. Mas pessoas em todo o mundo se uniram e protestaram contra a minha condenação. Nós vencemos”, lembrou.
“E nós venceremos outra vez”.
Contra o racismo, contra o capitalismo, contra o machismo, contra o genocídio da população negra, contra muito do que está enraizado e cristalizado e precisa ser espatifado com alegria, honra, liberdade e amor. Com integridade, respeito e muita força, Angela Davis nos exortou a endurecer sem perder a ternura jamais: “No processo de luta, precisamos sempre manter a capacidade de criar alegria, de produzir prazer, de encontrar beleza. Na luta, podemos ensinar às pessoas a ter uma experiência coletiva de alegria. Isso nos permite vivenciar tudo o que o futuro pode nos trazer”.
Na multidão que saía, eu, Camila, Leo, Tatiana, Tom, Olívia, Heitor, Isabela, Guida, Marina, Alice e tantos outros parecíamos não acreditar. É possível, sim, pensar um futuro de igualdade racial, contudo isso nos exige o confronto com nossas próprias práticas e valores e é um dever coletivo estar à altura desse desafio. Se a esperança reside e resiste em instantes de partilha como este que o Ibirapuera sediou, é nessas brechas para repensar o modo como vivemos em sociedade que precisamos acolher a brutal necessidade de nos permitir afetar pela política do cotidiano. Não se pode ficar parado. “Quem não luta tá morto”, é o grito do MSTC, e a liberdade é uma luta constante. Angela Davis está viva e pede que não deixemos de lutar, pelos negros e por todos nós, pela comunidade LGBTQ, pelos pobres, pelos indígenas e por quem vive à margem, sempre com gana, alegria e amor. Ter estado em sua companhia, numa gélida noite de outubro em São Paulo, pertence ao que escapa, ao que não se encomenda e aos mistérios da vida, nada estanque.