Entrevista

“Fiz o contrário do que se esperava”

O cineasta Kleber Mendonça Filho narra a ascensão de sua trajetória, que contribui para o cinema vencer preconceitos estéticos, fortalecer e descentralizar a produção audiovisual no Brasil

TEXTO DÉBORA NASCIMENTO E LUCIANA VERAS

02 de Setembro de 2019

O cineasta Kleber Mendonça Filho

O cineasta Kleber Mendonça Filho

Foto BRENO LAPROVITERA

[conteúdo na íntegra | PARTE 1 | ed. 225 | setembro de 2019]

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Kleber
Mendonça Filho é hoje o cineasta pernambucano de maior repercussão internacional. Dois de seus três longas de ficção, O som ao redor (2012) e Aquarius (2016), foram incluídos na lista dos 10 melhores filmes do ano pelo New York Times. Dois deles, Aquarius (2016) e Bacurau (2019), estrearam mundialmente no Festival de Cannes, concorrendo a mais renomada categoria da premiação, a Palma de Ouro. Saíram sem ela, mas Bacurau levou o importante Prêmio do Júri. A honraria vem se somar às 120 de premiações que o diretor acumula ao longo de mais de 20 anos como realizador, com 11 produções – sete curtas e quatro longas, incluindo o documentário Crítico (2008).

Esse último filme reúne depoimentos de vários críticos e diretores a respeito da importância da crítica de cinema, trabalho que Kleber cumpriu durante 13 anos no Recife, sendo um dos mais influentes do país. Em paralelo à função, também atuou como programador do Cinema da Fundação, prestigiada sala alternativa ao circuito comercial na capital pernambucana, contribuindo para a formação do olhar de, pelo menos, duas gerações de cinéfilos. A propósito, na Fundaj, foi responsável, em 2001, pelo curso de Olhar Crítico, do qual saíram nomes da nova leva de profissionais do audiovisual local, como Daniel Bandeira, Pedro Sotero e Juliano Dornelles, com quem o cineasta codirigiu Bacurau.

Em meio ao lançamento desse seu terceiro filme de ficção, Kleber Mendonça Filho concedeu uma longa entrevista à Continente, na qual resgatou o começo de sua paixão pelo cinema, desde os tempos em que era levado pela mãe, a historiadora Joselice Jucá, às antigas salas de exibição, passando pelo período em que morou na Inglaterra, até ao impacto da volta, quando percebeu que sua terra natal estava “enjaulada”.

Nesta conversa, o cineasta revela a fonte de suas inspirações, fala de seu novo projeto, analisa a mudança de temáticas no cinema brasileiro, critica o atual desmonte na área e comenta sobre a multa que está sendo obrigado a pagar ao Ministério da Cultura, entendida como retaliação e anunciada exatamente dois anos após a rumorosa denúncia do que estava por trás do impeachment de Dilma Rousseff, feita pelo diretor e equipe, no tapete vermelho da première de Aquarius em Cannes, em maio de 2016. “Vários jornalistas vieram me falar isso: ‘A gente não tinha noção do que estava acontecendo, agora a gente tem’. Tenho um orgulho enorme do protesto que a gente fez”.

CONTINENTE Como era a sua relação com imagem na infância? Quais são as primeiras lembranças de cinema e TV?
KLEBER MENDONÇA FILHO Desde muito cedo, eu tinha uma inclinação muito forte para o cinema, para a ideia de cinema. Não é uma coisa que eu descobri aos 11, 14 anos.


Foto: Breno Laprovitera

CONTINENTE Qual a lembrança mais remota de um filme?
KMF São duas: uma ida ao São Luiz com minha mãe para ver uma maratona Tom & Jerry, que tinha muito naquela época. Você via mais de uma hora de desenho animado. E a outra é de um filme chamado A ilha no topo do mundo, que passou no Boa Vista. E eu era tão criança que, quando a gente saiu e estava na frente do cinema, vi o cartaz e reagi com muito espanto: “Olha o cartaz do filme que a gente viu!” Isso foi em 1973, eu tinha cinco anos. Éramos eu e meu irmão. Naturalmente minha mãe levava os dois ao cinema. Uma coisa em que eu penso muito é que a minha geração é a última que teve acesso às grandes salas funcionando normalmente. O normal era você ir ao São Luiz, ao Moderno, Art Palácio. Eu tive isso ainda como jovem adulto. Mas aí eles acabaram. Cada cinema tinha uma personalidade forte, não só arquitetonicamente, mas a programação de cada um tinha uma personalidade forte. O Moderno era o cinema pancadão, os filmes mais hards, de cabra macho. O Veneza eram as grandes produções, os blockbusters. O São Luiz era muito popular. Pernambuco teve muita sorte de ter essas salas, construindo uma ideia de cinema em cada um.

CONTINENTE Essa era a sua maior diversão na infância?
KMF Era uma infância normal, de ter os amigos na escola, de ir pra casas de amigos, jogar bola…, mas ir ao cinema era extremamente importante para mim. Lembro-me de digitar numa máquina de escrever pedidos pra minha mãe me levar pra ver tal filme da programação. Ela sempre estimulou muito.

CONTINENTE Nessa época, qual era o gênero de que você mais gostava?
KMF Mas isso é outra coisa. Era uma época muito… Agora, você tem grandes filmes, mas, naquela época, você tinha grandes filmes populares. Hoje, é mais difícil você ver um grande filme popular. Mas, naquela época, você via grandes filmes, terça à tarde, no Art Palácio. Acho que tive muita sorte de crescer nessa época. Atualmente, os filmes que eu via passam em cinemateca e festivais de cinema em cópias restauradas para os jovens redescobrirem. E você ia numa terça à tarde ao Art Palácio. Ou Moderno, ou Veneza.

CONTINENTE Você tinha uma sala preferida?
KMF Estou fazendo um próximo filme que é um ensaio sobre arqueologia, a partir do centro do Recife. A partir das salas extintas. Venho trabalhando nisso há alguns anos. Filmei em VHS, um pouco super-8 e um pouco de U-Matic, da Center. A propósito, o Genivaldo (di Pace), da (produtora) Center, merece alguma coisa muito importante sobre ele. Ele está em toda produção pernambucana dos anos 1990, de Fernando Spencer a Paulo Caldas, Lírio Ferreira, Cláudio Assis. Ele ajudou todo mundo. Enjaulado foi todo feito com a Center. Única sala que sobreviveu, o São Luiz é a nossa unanimidade, o cinema que nós amamos. Mas, se for realmente conversar com as pessoas, o cinema que está instalado no coração delas é o Veneza. Uma vez, postei no Instagram uma foto do Veneza, como ele era e na visita a que eu fui recentemente. Foram 300 comentários. Não são comentários bobos, mas de coração. Isso me fascina, porque é o impacto que uma construção tem. Alguém fez aquilo com tijolo, com cimento e com decoração, e teve um impacto nas pessoas. Imagina se fecha o Multiplex Tacaruna, eu não sei se alguém vai dizer “Aquela sala 4 era tão linda…”. Porque é tudo padrão de caixa de sapato, que tem que ser prático.

CONTINENTE O Veneza tinha muito essa coisa de ser ponto de encontro. Era um local de convivência.
KMF Por ser centro da cidade. Na última sexta-feira, aconteceu uma coisa linda. A gente saiu da casa de uns amigos, veio pela Rua do Hospício de carro e passou na frente do Veneza, e pensei: “Quarenta e cinco anos atrás, teria uma fila aqui para a sessão das 10. Ah, que pena!”. Mas, chega na esquina da Conde da Boa Vista, tem um grupo maravilhoso de 60 jovens, de todo tipo. Aí fiquei assim: “Que negócio massa!”. Ou seja, a cidade muda, mas continua viva. Agora o Veneza está numa metamorfose quase orgânica, biológica, transformando-se num shopping de baixa renda. Eles estão construindo quase como se fosse uma obra de Escher. A parte de cima, onde era o balcão, está totalmente intacta porque não sabem o que fazer. A parte de baixo, onde era a plateia, virou um monte de cubos, corredores, boxes. Isso fala muito de como a cidade vai virando outra coisa. Você vai a um lugar, passa o dedo em uma parede, e já vê o passado daquele lugar embaixo da tinta.

CONTINENTE Vamos retomar essa lembrança da sua infância e adolescência. Teve um período em que você foi para a Inglaterra, não é? Como foi?
KMF Minha mãe foi fazer o doutorado em História na Inglaterra e levou os filhos. E a gente ficou de 1982 até o final de 1986. Foi um período muito bom. De adolescência, de 14 a 18 anos. A gente morou em Colchester, em Essex, cidade do Blur. Meus pais já tinham se separado. Meu pai ficou no Brasil. Ficamos quatro anos sem vir ao Brasil, porque a viagem de avião era uma coisa mais difícil do que é hoje.

CONTINENTE Qual a importância desse período para a sua formação cultural?
KMF Acho que é gigantesca. Mas, ao mesmo tempo, essa pergunta cai um pouco feito aquela pergunta do “Você acha que ter sido crítico lhe ajudou?” Não sei, mas talvez sim. Não dá pra quantificar. Morar na Inglaterra me deu uma língua, que eu domino muito bem. Isso é muito importante. Hoje, muito mais gente fala inglês do que se falava naquela época. Quando eu voltei, era uma coisa mais inacessível. Por causa da internet, o inglês é mais presente. Mas ele foi muito importante, pra ler, pra fazer amigos.


Os diretores Juliano Dornelles e Kleber Mendonça Filho com a produtora
Emilie Lesclaux no set de
Bacurau. Foto: Victor Jucá/Divulgação

CONTINENTE A experiência de ser espectador de cinema na Inglaterra era diferente de ser espectador no Brasil?
KMF Na verdade, no Recife eu tive acesso a tudo a que o mundo e os ingleses tiveram nos anos 1970. De Palma, Spielberg, Superman, tudo passou aqui. Eu cresci vendo isso. Tive a sorte de ver o bom momento do cinema americano popular. Na verdade, aprendi, já ali, que é possível ser popular e bom. Você não precisa ser popular e ruim. Autoral e inacessível, que eu acho que é uma distorção que existe no cinema brasileiro. Existe sempre o abismo entre filme popular e filme autoral, que é exatamente a junção que tento fazer nos meus filmes. O que aconteceu na Inglaterra é que, de uma maneira natural, eu saí da dieta americana, porque, se você deixar correr solto, é o que vai formar todo mundo.

CONTINENTE Era o que a gente tinha com mais assiduidade aqui e mais acesso.
KMF Por sorte, nos anos 1970, vi filmes incríveis que até hoje são muito bons. São filmes que entraram na história do cinema e eram americanos. Só que, ao chegar à Inglaterra, por causa do Channel 4, BBC, dos cineclubes, comecei a ter acesso a uma outra dieta – sem desmerecer a dieta americana, de que continuo gostando. Mas aí tem os filmes desses caras chamados Herzog, Fassbinder…

CONTINENTE Você lembra se viu alguma coisa de Truffaut na Inglaterra?
KMF A primeira vez que vi Truffaut foi no Channel 4. E é interessante porque eu vi sem ter noção da importância dele. Eu simplesmente amei o filme. Era Os incompreendidos. E, anos depois, no primeiro semestre na UFPE, começou uma discussão do professor, que falou desse filme e mostrou uma foto. Eu: “Eu vi esse filme. Esse filme é muito bom!”. Aí comecei a entender a importância dele. Outro momento importante foi a estreia, na TV inglesa, de Fitzcarraldo, do Herzog. Ele teve algum dinheiro do Channel 4, estreou na TV inglesa um mês depois do cinema. Não passou na minha cidadezinha, passou em Londres. Íamos a Londres todo mês. Era religioso. Minha mãe levava pra cinema, exposição, concerto e sempre acabava com filme no Leicester Square. Às vezes, íamos no sábado e dormíamos lá. Geralmente, chegava cedo e voltava à noite.

CONTINENTE E, na volta ao Brasil, você teve um choque?
KMF Não tive um choque indo, nem tive um choque voltando. Eu estava muito interessado pela Inglaterra indo e muito interessado pelo Brasil voltando. Voltei em 1986, a cidade estava coberta de cartazes de Arraes. Meu tio foi pegar a gente no aeroporto e o carro dele estava coberto de papel de Arraes, colado na lataria, com os dizeres: “Vai voltar pela porta que saiu”.

CONTINENTE Você já tinha uma ideia de política na época?
KMF O Brasil, muito bagunçado, dava pra ver na cidade. Claro, quatro anos, como adolescente na Inglaterra, você volta para o Brasil com a coisa da inflação, o país recém-saído do Plano Cruzado, a morte de Tancredo. Mas do que eu senti muita falta era da música. Eu tinha me apaixonado por música pop. E, quando voltei para o Brasil, não tinha. Eu ia para a banca da Rua Sete de Setembro comprar a New Music Express, a Rolling Stone de três meses atrás. O RPM era um fenômeno, aí todo mundo falava que era incrível. Fui ouvir e achei muito ruim. Nessa época, eu já tinha ouvido The Cure, Eurythmics, Tears for Fears, Queen, Prince, que eu vi duas vezes antes de voltar. Mas o que me manteve feliz é que eu voltei e continuava tendo grandes salas de cinema, vendo filmes fodas, com qualidade excelente. Continuei indo para o Veneza, vi Veludo azul e A mosca no São Luiz. É como se eu tivesse saído da Inglaterra – e o cinema fez essa ponte.

CONTINENTE Você não sentiu no cinema a mesma interrupção na música.
KMF Eu senti falta de ver mais filmes fora do esquemão, mas aí já tinha VHS. Voltamos para o apartamento original, em Setúbal. Isso foi um pouco um choque, porque foi aí que começou toda essa observação que está nos filmes. A gente voltou para Setúbal e eu percebi duas coisas. A casa onde meu pai morava na Rua Oliveira Lima, na Boa Vista, quando a gente era criança, andava-se na calçada e entrava na área do prédio, que era superlinda, com um jardim e para um elevador. Quando a gente voltou, tinha uma grade. E, alguns anos depois, fizeram uma guarita parecida com a de uma penitenciária. E, em Setúbal, era a mesma coisa. Você entrava pela rua e ia andando até a porta do nosso apartamento. Só que começaram a colocar barreiras. Um dia, fui sair de casa de manhã para a universidade e tinha um cara dormindo na porta do nosso apartamento. Aí eu percebi que estava todo mundo se fechando. Só que ninguém percebia isso. Eu tinha morado quase cinco anos na Inglaterra com a janela aberta, sem grade. E a minha janela, quando abri no Recife, tinha uma grade. Quando fiz Enjaulado, uma mulher disse que aquilo era produção do filme. No filme veem, mas na vida real não veem.

CONTINENTE Como foi que o jornalismo surgiu para você?
KMF Surgiu porque era a coisa mais próxima do cinema que existia na época. Acho que, quando criança, nunca falei: “Quero ser cineasta”. Mas eu queria trabalhar com cinema. E como o Recife, 40 anos atrás, era muito distante de tudo, muito mais do que hoje, então acho que eu não tinha uma possibilidade de pensar isso. Mas eu sempre era estimulado pela minha mãe a pensar nesse sentido. Teve até um incidente, numa sala de aula, em que eu falei que queria ser crítico de cinema. Isso foi antes de ir para a Inglaterra, em 1981 ou 1982. E o professor me deu um “Cala a boca, menino”. Contei pra minha mãe e, no outro dia, ela foi à escola, chamou o cara e deu um baile: “Nunca mais você fale com meu filho desse jeito. Você não tem a menor ideia do que passa na cabeça dele”. Era a Escola Dourado, no fim de Setúbal. Mas eu não quero que esse professor apareça na história como vilão. Ele já morreu, era um grande professor de português. E me incentivou muito na escrita.

CONTINENTE Mas, e o jornalismo, como veio?
KMF Eu tinha uma visão romântica do jornalismo, pra mim era o escritor que relatava, eu pensava em Hemingway. Essa visão era alimentada por livros e filmes. E era tida como uma ideia de que eu escrevia bem. E aí era péssimo em matemática. Considerei por alguns meses Arquitetura. Mas entendi que não ia dar certo pra mim. Então, fiz Jornalismo. E, ao entrar no curso, a melhor coisa aconteceu, encontrei muita gente que pensava mais ou menos como eu, que estava gravitando em torno da ideia de fazer cinema, que, na época, era algo inexistente. Em 1981, fui com minha mãe ao Veneza ver Caçadores da Arca Perdida, entramos no meio e ficamos para ver a outra sessão. Foi incrível. Mas, pensando bem, ele nunca me deu vontade de fazer cinema, porque era muito espetacular, muito grandioso, tipo “Isso aqui não é pra mim”. Mas, quando descobri, em VHS, Halloween, Assalto à 13ª DP e Fuga de Nova York, pensei “Isso é muito bom! Talvez eu possa fazer algo assim”. Porque eles eram pequena escalada. Eu não sei se alguma criança vê Star wars e diz “Eu quero ser cineasta”. Outra coisa é que minha geração não cresceu vendo o que hoje nós respeitamos muito do cinema brasileiro. Não tive oportunidade de ver Glauber Rocha no São Luiz, no Veneza, no Parque.


Gustavo Jahn, ator que interpreta João, protagonista de O som ao redor (2012). Foto: Cinemascópio/Divulgação

CONTINENTE Glauber, você viu quando?
KMF O primeiro Glauber que eu vi foi no Channel 4, na Inglaterra, O dragão da maldade contra o santo guerreiro. Fiquei orgulhoso de ser brasileiro. A mesma coisa com Pixote. Fiquei orgulhoso e, ao mesmo tempo, triste, de saber que aquilo era o Brasil. Eu não sabia que o Brasil era tão horrível.

CONTINENTE Quando voltou da Inglaterra, você constatou que tinha crescido sem ver os filmes brasileiros?
KMF Mais ou menos. Mas aí tinha outro problema, que anulou esse que você está falando. Quando entrei na universidade, e até 2002, com Cidade de Deus, o cinema brasileiro era medido e pesado por tudo que foi feito no Cinema Novo. Esperava-se que eu, um jovem que não sabia de nada, fizesse um filme do Cinema Novo, porque, se eu não fizesse, ia ser tachado, ia ser cobrado, e o que eu fizesse não ia ter valor. Quando fiz Enjaulado, que estreou no Cine Ceará em 1997, a primeira crítica que saiu foi de um cara dizendo que era um absurdo um realizador do Nordeste, “uma região tão forte em folclore”, fazer um filme de paulista, dentro de um apartamento. Ou seja, isso era o Cinema Novo ensinando a esse cara a como reagir a um filme brasileiro. Então, é muito curioso que, nesses 20 anos, eu só fiz o contrário do que se esperava na época. E aí esse contrário virou, aos poucos, a norma. Hoje, você vê Divino amor, Permanência, País do desejo, Febre do rato. Nenhum problema em ser da cidade. Isso acabou. É muito curioso ver que o início da grande produção pernambucana era, de certa forma, inovadora e refrescante, mas ainda obedecia às obrigações do cinema brasileiro da época. Baile perfumado (1996), Sertão e cangaço. Cinema, aspirinas e urubus (2005), Sertão e cangaço. São filmes muito bons, mas ainda obedeciam a isso. Aos poucos, a produção foi mudando. E quando a produção mudou, o que a gente faz? Faz Bacurau, que é um filme no Sertão e com cangaço.

CONTINENTE Você pode falar da importância da UFPE na sua formação cultural, daquele ambiente? Porque hoje estamos vendo um desmonte nas universidades públicas.
KMF Era um ambiente muito fértil, tinha gente de Arquitetura, Artes Cênicas, Plásticas, Radialismo, era uma vibe boa no Centro de Artes e Comunicação. Eu tive uma professora memorável, Nelly Carvalho. Inês Amorim também, que encontrei em Portugal, em Vila do Conde. Ela foi ver Bacurau do meu lado. E, claro, você faz muitas amizades, troca muitas ideias, sonha muito nesses quatro anos. A universidade é formadora não somente do ponto de vista acadêmico, mas do humano. Você constrói laços e de graça. Eu levei pau na Católica e passei em terceiro lugar na Federal.

CONTINENTE Como foi que você começou na crítica?
KMF Fui para o Jornalismo quase por acidente. Passei um ano sem trabalhar na área, depois que me formei. Ensinava na Cultura Inglesa. Ou seja, não estava usando o talento desenvolvido na Federal. Até que, um dia, fiz um curso com Alexandre Figueirôa, em 1991 ou 1992. Era um curso que teve na Fundação Joaquim Nabuco, com Ana Catarina Galvão. Ele gostou de mim e me chamou de fazer um teste no Jornal do Commercio. E eu escolhi escrever sobre o fim da Rádio Rock, que passou um ano no Recife e depois acabou. Foi marcante. E aí a galera me chamou pra ser do Caderno C. Comecei a escrever, e escrever sobre cinema era algo natural para mim. Eu vinha muito influenciado pelos críticos da Inglaterra na época. Ainda não lia o francês e, na Inglaterra, a crítica é muito pragmática. Acho que meu estilo, no começo, era muito pragmático, muito seco. Até um pouco cruel, admito. Coisas da juventude. E chamou muito a atenção, de certa forma. Aí, fui ganhando uma ressonância.

CONTINENTE Quais os críticos brasileiros que eram referências para você?
KMF Quando voltei da Inglaterra, eu lia muito a Set, que era a revista de cinema que tinha no Brasil, e Cinemin, uma revista carioca. Na verdade, minhas referências desde criança eram Celso Marconi e Fernando Spencer, porque eu ia comprar o jornal para ver a página de cinema, mas não via só os textos, via também os anúncios dos cinemas. Aquilo estimulava muito a imaginação, tinha os cartazes, dizia a censura, sessões. Mas eles eram referências. A questão é que cada um escrevia em um jornal. Naturalmente, desde criança, eu queria conhecer essas pessoas. E é bonito ver a trajetória de Celso, Fernando, Ivan Soares e de Alex, que faleceu alguns anos atrás. É basicamente a mesma coisa que aconteceu comigo: começa a escrever, depois vai programar uma sala; no caso de Fernando Spencer, foi fazer filme. É como se fosse um ciclo que se repete e sempre em torno da cidade.

CONTINENTE Quanto tempo você passou como crítico do Jornal do Commercio?
KMF Uns 13 anos. Eu sentia que tinha alguma ressonância, era interessante. Mas aí foi junto com o trabalho na Fundação, que começou em 1998. Ou seja, era uma imersão completa em cinema. Era uma coisa meio obsessiva. Eu escrevia, então isso me deixava numa posição de estar sempre alertando e anunciando o cinema. Comecei a ir pra Cannes em 1999 e lá via qualquer coisa entre 38 e 44 filmes. Ou seja, você ficava alimentado para o resto do ano. Então, o Cinema de Fundação já tinha todo o plano. Às vezes, eu ligava seis meses antes do lançamento pra dizer que queria exibir um filme.

CONTINENTE Nesse momento, sua mãe já tinha morrido? Ela viu Enjaulado?
KMF Não. Ela faleceu em 1995. Ela viu algumas fagulhas interessantes. Antes da morte dela, quando Pulp fiction saiu, naquela época estava saindo também A fraternidade é vermelha. E aí tem uma cena em Pulp fiction que eu achei a melhor de um filme de Tarantino e que não foi escrita por ele. Foi escrita por Roger Avary, que fez Killing Zoe. A cena em que Bruce Willis e Ving Rhames, inimigos mortais, estão se matando e vão parar numa loja. E aparece um maluco, muito mais maluco que eles, pega os dois e os leva para um porão. Um dos dois é estuprado. E aí esses inimigos agora precisam se unir para sair daquela situação. E eu escrevi sobre A fraternidade é vermelha e essa cena especificamente – lembro que minha mãe escreveu uma carta para mim, para que eu lesse quando eu acordasse.

CONTINENTE Tem muita coisa dela nos seus filmes?
KMF Demais. Na verdade, eu deveria dedicar todos os filmes a ela. Dediquei O som ao redor, por toda a questão histórica. Crescendo, ela explicava as questões de racismo, de diferenças sociais. Tudo isso desde cedo era muito explicado pra mim e pra meu irmão, de maneira que eu acho que em outras famílias era tipo “Ah, mas é normal a empregada fazer isso”. Então, dediquei O som ao redor a ela. Aí vou fazer Aquarius, que, na realidade, é ela. Aquela mulher é ela. Claro que, por um verniz de cinema, mas a Clara é ela. No final, Clara é ela e Sonia Braga, num Frankenstein estranho, mas é Sonia Braga também. Sonia Braga é uma mulher extremamente interessante, forte, e é ela. Mas minha mãe também. Aí tem Bacurau, que também tem um monte de coisa. Mas eu não posso dedicar todo filme “para minha mãe”. Ela sabe que é pra ela.

Continua: 
PARTE 2

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