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Uma mulher, suas memórias e o dever de resistir

Com Sônia Braga na pele da protagonista Clara, longa-metragem do diretor pernambucano Kleber Mendonça Filho chega ao Brasil após repercussão em Cannes

TEXTO Luciana Veras

01 de Agosto de 2016

Dividida em três capítulos, narrativa do filme convida o espectador a mergulhar na jornada de Clara

Dividida em três capítulos, narrativa do filme convida o espectador a mergulhar na jornada de Clara

Foto Victor Jucá/divulgação

[conteúdo da ed. 188 | agosto de 2016]

“Aquarius é um filme sobre memória e sobre história, que não são muito valorizadas na nossa cultura”, define o realizador pernambucano Kleber Mendonça Filho. É, portanto, do acúmulo e da ação do tempo e das camadas de significados das lembranças – de uma mulher e seus objetos, de um apartamento, de uma cidade – que se erige seu segundo longa-metragem de ficção, que abre hors concours o 44º Festival de Gramado no dia 26 e estreia em todo país em 1° de setembro. Versos como os de Hoje, de Taiguara (1945-1996), uma das canções tocadas na íntegra no filme, operam como esteio e motor da jornada da protagonista Clara, vivida por Sônia Braga: “hoje, trago em meu corpo as marcas do meu tempo/ meu desespero, a vida num momento/ a fossa, a fome, a flor, o fim do mundo”.

A personagem traz no seu corpo as marcas do tempo – a cicatriz de uma mastectomia, as rugas que não esconde, o cabelo grande que não apara. Sua casa, o único apartamento ocupado do edifício Aquarius, situado na orla de Boa Viagem, zona sul do Recife, carrega suas próprias marcas – móveis que lá estão há décadas, centenas de discos de vinil, livros, obras de arte. Antes do anúncio da seleção do longa para o Festival de Cannes, a sinopse que circulava era: aos 65 anos, Clara é uma crítica de música aposentada com a habilidade de viajar no tempo. Com a confirmação da participação em Cannes, veio o resumo retificado – Clara é uma crítica de música aposentada que mora em um apartamento em um edifício antigo cobiçado por uma construtora, que vislumbra a demolição. Todos os outros moradores venderam suas casas, ela não.

Para Kleber Mendonça Filho, a descrição inicial não deixa de ser acurada. “Não tem um DeLorean estacionado do lado de fora do prédio, mas Aquarius é uma viagem no tempo”, comenta, referindo-se ao automóvel da trilogia De volta para o futuro. “A própria Clara é uma viagem no tempo. O filme traz essa viagem de uma maneira não científica, ao mesmo tempo em que é um filme de gênero, porque ameaça ser um suspense mas não é um suspense mesmo, embora tenha sequências bem tensas. Parece com um filme italiano dos anos 1960, estrelado por Anna Magnani. Clara não deixa de ser uma heroína bem clássica”, observa o cineasta, que escreveu o roteiro em 2012, depois de O som ao redor iniciar carreira em festivais internacionais.

Em O som ao redor, o urbanismo predatório e seu impacto na capital pernambucana já eram problematizados na narrativa – assim como as relações entre a urbe e os que nela vivem, também presentes em outros trabalhos do diretor, a exemplo dos curtas Eletrodoméstica (2005) e Recife frio (2009). Aquarius concilia esse olhar para aspectos sociopolíticos com o convite para acompanhar Clara. Questionado pela Continente se a gênese era o desejo de falar de uma mulher que esbanja vitalidade e coragem na flor da idade, ou a vontade de mirar a cidade e suas contradições, o diretor indica a convergência: “Tudo veio junto, mas desde o início entendi que o protagonista nunca seria um homem. A cena em que Clara está dormindo na rede e se levanta para abrir a porta e ter dois homens indo falar com ela nunca seria interessante do ponto de vista dramático se ela fosse um homem. A mulher enfrenta mais obstáculos numa sociedade machista”.

Essa cena-chave é apresentada na metade do primeiro dos três capítulos de Aquarius – O cabelo de Clara, O amor de Clara e O câncer de Clara. “As pessoas amam a sequência de abertura, mas muitas ficam intrigadas e vêm me perguntar – ‘mas por que você colocou no filme aquelas cenas de 1980?’. Acham que ‘demora demais’. Para mim, talvez seja uma maneira tradicional de contar a história, já que eu poderia começar direto com Sônia, hoje, com 65 anos. Tem filme hoje em dia que, com 40 segundos, já acontece o primeiro drama. Acho que é sempre preciso um investimento de paciência para ir construindo as peças. Em 1980, vemos o prédio, a fachada, a garagem, quando vai para hoje em dia, o prédio está diferente, sem ninguém, vazio. Pode parecer bobo, mas é preciso localizar o espaço”, observa o diretor.

Há tempo na narrativa para o espectador se ambientar com Clara, seu apartamento e suas memórias, assim como houve tempo para Kleber repassar as cenas com o elenco, em um prédio também em Boa Viagem, antes de filmar no Oceania, na beira-mar – onde, por sua vez, a equipe da arte, comandada por Juliano Dornelles e Thales Junqueira, passou 20 dias a preparar o lar de Clara. A organicidade nas relações entre os personagens e aquele ambiente é notável – talvez fruto das quatro semanas de ensaio, talvez porque o filme de fato engendra uma feliz confluência entre texto, som, imagem e linguagem corporal.

O elenco é irrepreensível; há o núcleo dos atores profissionais, todos à vontade em seus papéis, a exemplo dos pernambucanos Irandhir Santos, Zoraide Coleto e Paula de Renor; dos paraibanos Buda Lira e Fernando Teixeira; dos cariocas Carla Ribas e Humberto Carrão; da mineira Bárbara Colen; e do trio Maeve Jinkings, Daniel Porpino e Germano Melo, na pele dos filhos de Clara. E há, também, achados como Pedro Queiroz, que vive Tomás, o sobrinho da protagonista. “É tudo intuição e, claro, ter sorte na intuição e sensibilidade. Pedro, por exemplo, era estagiário do Cinema da Fundação. Perguntei se não queria fazer um teste e ele topou. Maeve era a escolha para fazer Clara jovem, mas na época estava fazendo uma novela com um aplique bizarro no cabelo. Descobrimos Barbara Colen em Minas e ela faz um trabalho maravilhoso. Paula de Renor é uma grande atriz, assim como Zoraide, que eu não conhecia. Houve um trabalho incrível de Marcelo Caetano na produção do elenco. Foi ele que me mostrou diversas fotos para o papel de Diego. Quando vi a de Humberto, eu disse ‘esse é Diego’”, rememora o cineasta.

Em 2013, O som ao redor fez mais de 100 mil espectadores. Para Aquarius, uma coprodução franco-brasileira – com Emilie Lesclaux, mulher e parceira de Kleber, pela CinemaScópio Produções, e a SBS, Videofilmes e Globo Filmes nos créditos e distribuição da Vitrine Filmes – o diretor pernambucano não faz planos, porém reconhece o alcance maior pós-Cannes: “O filme já foi vendido para mais de 40 países, o que é muito mais do que O som ao redor. Depois de Cannes, fomos para Sidney, Munique e Nantes. Já fiquei feliz com a repercussão em cada lugar por onde o filme passou. E, mesmo com a carga forte do protesto, também recebemos muito apoio”. Em 17 de maio deste ano, na sessão oficial de Cannes, ele e a equipe fizeram a caminhada do tapete vermelho portando cartazes bastante explícitos – “Um golpe aconteceu no Brasil”, “O mundo não pode aceitar esse governo ilegítimo” e “O Brasil está vivendo um golpe de estado”.

 À Continente, o realizador revela que muitos espectadores têm lhe procurado por considerar o longa-metragem premonitório em relação aos rumos políticos do Brasil. “As pessoas chegam para mim e perguntam se Clara foi inspirada em Dilma Rousseff. O personagem não tem absolutamente nada a ver com Dilma, o filme foi pensado e feito antes de tudo isso, mas eu acredito que filmes, assim como livros, músicas e obras de arte, captam as coisas no ar”, aponta Kleber Mendonça Filho.

Assim, Aquarius traduz a ideia de zeitgeist enunciada pelo filósofo alemão Georg Hegel (1770-1831), o espírito do tempo que a arte apreende e, ao mesmo tempo, pressiona para ir além. Em outros versos de Hoje, Taiguara canta e Clara dubla: “Eu não queria a juventude assim perdida/ eu não queria andar morrendo pela vida”. Para ela, não andar morrendo pela vida é recordar e ter o direito de sorver suas lembranças – e relembrar é se contrapor ao capitalismo vigente. No Brasil de 2016, preservar a memória – de si mesma, da sua casa, da sua cidade – é um ato de valentia. 

 

 

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