Na coletiva de imprensa, Kleber Mendonça Filho retomou o assunto: “O cinema brasileiro teve uma construção lenta. Vimos essa construção de políticas de financiamento nos últimos 15 anos. Temos cortes na Cultura e na Educação. Torna-se irônico porque há um sentimento de que o cinema brasileiro está sendo destruído por dentro, o que é triste. Esperamos poder negociar isso”.
O Brasil teve uma participação robusta, que incluiu também O traidor, coprodução com Itália, França e Alemanha dirigida por Marco Bellocchio e rodada parcialmente no Rio de Janeiro, e Sem seu sangue, longa de estreia de Alice Furtado.
Os filmes não poderiam ser mais diferentes entre si, o que é exemplar se considerarmos a diversidade e a solidez da cinematografia brasileira atual. Bacurau usa o cinema de gênero – western, terror, aventura, ficção científica – para contar uma história de resistência de um povoado no sertão de Pernambuco contra invasores que não se importam com os moradores. O traidor é um filme de tribunal sobre Tommaso Buscetta (Pierfrancesco Favino), mafioso que morou no Brasil e casou-se com uma brasileira (Maria Fernanda Cândido). Preso, torturado e extraditado para a Itália, decidiu delatar seus companheiros da Cosa Nostra, resultando na acusação de centenas de pessoas.
A vida invisível de Eurídice Gusmão, por sua vez, é a história de duas irmãs, Eurídice (Carol Duarte) e Guida (Julia Stockler), no Rio de Janeiro dos anos 1950. Karim Aïnouz baseou-se no livro homônimo de Martha Batalha para fazer um melodrama tropical cheio de suor, lágrimas e sangue, mostrando a situação de sufocamento das mulheres pré-revolução sexual. A extrovertida Guida apaixona-se, foge, volta grávida e é expulsa de casa pelo pai, que mente dizendo que Eurídice está estudando piano em Viena. A irmã mais nova, com Antenor (Gregorio Duvivier), pensa que Guida ainda está na Grécia. É forte, sensorial e um retrato da vida de nossas mães e avós.
Sem seu sangue fala do desejo feminino nos dias de hoje. Silvia (Luiza Kosovski) vê a vida com apatia até conhecer Artur (Juan Paiva), que, por ser hemofílico e necessitar de constante tratamento, tem apetite de viver. Um acidente, porém, coloca ponto final no romance, e Silvia tem dificuldades de lidar com a perda. Como outros filmes no Festival de Cannes, a obra de Alice Furtado incorpora elementos fantásticos e de terror para mostrar o luto.
PALMA DE OURO A disputa pela Palma de Ouro foi um reflexo do estado de caos do mundo. O vencedor do prêmio, o sul-coreano Parasite, de Bong Joon Ho, poderia se passar no Brasil, ou em praticamente qualquer outro país do mundo, pois fala de desigualdade social. Uma família formada por pai, mãe e filhos adultos está desempregada e mora num porão. O rapaz consegue emprego como professor particular de uma adolescente rica, e logo sua irmã se arruma como tutora do irmão mais novo. A partir daí, as coisas se desenrolam de maneira inesperada, numa mistura de comédia, drama, terror e ação.
Atlantique, de Mati Diop, primeira mulher negra a concorrer em Cannes, levou o Grande Prêmio do Júri com uma história que se relaciona, em alguma medida, com a de Sem seu sangue. No Senegal, o jovem Souleimane (Ibrahima Traore) não recebe há meses em seu trabalho numa grande construção. Apaixonado por Ada (Mame Bineta Sane), que está para se casar com outro, ele não vê saída, a não ser se lançar ao mar rumo à Europa. O filme, porém, fica com as mulheres deixadas para trás, tendo que lidar com a perda e incorporando elementos sobrenaturais.
Outro que poderia se passar no Brasil é Les misérables, do francês Ladj Ly, ambientado num subúrbio de Paris. O filme abre com os meninos de lá, filhos e netos de imigrantes, negros e pardos, pegando o trem para ir até a Torre Eiffel e ver a final da Copa do Mundo e torcer pela França, deixando clara a divisão – ainda mais irônica porque a maior parte da seleção de futebol é igualmente composta por filhos e netos de imigrantes. Um dos meninos rouba um filhote de leão no circo, aumentando a tensão com a polícia. Paris pode ser a Cidade-Luz, e a França, uma das potências do mundo, mas a divisão da sociedade entre os que têm e os que não têm é similar à de outras partes.
Em breve, alguns desses filmes estrearão nos cinemas do Brasil.
MARIANE MORISAWA é uma jornalista apaixonada por cinema. Vive a duas quadras do Chinese Theater em Hollywood e cobre festivais.