“No geral, as relações entre pessoas da mesma raça é a tradição da formação das famílias no Brasil, mas quando se olha no espectro da ascensão social, em espaços de poder majoritariamente ocupados por brancos, há um estranhamento tanto pela presença das pessoas negras nesses ‘não lugares’, como pelo fato de que elas possam deliberadamente se escolher como opção de atratividade, admiração e encontro. É visto como se as relações afrocentradas fossem por si uma afronta a essa preferência naturalizada por pessoas brancas como busca de aceitação”, diz Túlio Custódio, sociólogo e curador de conhecimento que compõe com a esposa, a arquiteta e feminista negra Stephanie Ribeiro, um jovem casal influente entre intelectuais negros da atual geração.
A psicóloga Jesus Moura, mestre pela Universidade Federal de Pernambuco e especialista no atendimento de mulheres negras, contextualiza que, no Brasil, “foi enraizado um projeto genocida de embranquecimento da população, sendo a miscigenação uma forma contundente de apagamento das raízes negras, de dispersão da identidade. Para se ter uma ideia, por décadas, era como se os negros não existissem, nem no Censo, em que já foram identificadas mais de 130 autorreferências de cor/raça como chocolate, café com leite, trigueirinho etc., numa forma de aniquilamento da percepção da origem negra da maioria dos brasileiros. Quando o movimento negro, dos anos 1960 para cá, imprime de alguma forma a valorização das relações intrarraciais, inicia-se um estímulo à manutenção da própria história, um caminho de autopreservação, por uma busca de condições de igualdade na aproximação de pessoas que viveram dores semelhantes ou enxergam questões raciais por uma ótica similar”.
A exemplo disso, é emblemático o surgimento do Afrodengo, que reúne quase 50 mil pessoas de todo o país num grupo fechado do Facebook, e tem como critério ser um espaço de paquera exclusivo para pessoas negras. A iniciativa, que possibilitou a origem da primeira startup brasileira focada em relacionamentos afrocentrados, atua como uma espécie de “Tinder dos pretos”. A expressão nordestina dengo, que significa carinho, agrado, meiguice, vem da palavra ndéngo do dialeto africano quicongo. Assim, o Afrodengo tem o intuito de cumprir uma demanda por um espaço saudável e seguro para pretas e pretos se relacionarem.
A arquiteta e feminista Stephanie Ribeiro e o sociólogo e curador Túlio Custódio tornaram-se um casal influente entre intelectuais negros da atual geração. Foto: @SaoPauloFotografia/Divulgação
A idealizadora, a jornalista baiana Lorena Ifé, prepara-se para transformar o projeto numa marca-referência sobre afetividade negra através de ações políticas, de entretenimento e tecnologia como enfrentamento ao racismo. Ela está em busca de investimentos para materializar uma plataforma que reúna aplicativo de paquera, eventos e encontros presenciais, além de um site com conteúdo e biblioteca sobre relacionamentos e negritude.
“Cresci como todos nós, num contexto de limpeza social que a escravidão marca na nossa afetividade, nesse olhar de que o viável é buscar ‘limpar a família’, ‘ter a barriga limpa’, e no deslocamento do afeto como possibilidade. A gente sofre com essa dificuldade de demonstrar carinho, tido como fragilidade. O grupo foi criado como uma tentativa de aplacar minhas decepções pessoais em aplicativos de relacionamentos que não davam conta da diversidade, mesmo eu estando em Salvador, uma metrópole com 80% de negros. Em menos de uma semana, em janeiro de 2017, tomei um susto, pois já tinham 5 mil solicitações para participar. Hoje, o grupo tem pessoas de diversas partes do país e, em dois anos, colhemos inúmeras histórias de grupos de amigos, namoros, casamentos e até filhos oriundos dos encontros gerados pelo Afrodengo”, comenta a criadora.
A tônica das relações afrocentradas, não só afetivo-sexuais, mas também em rede, de amizades, de contatos profissionais, traduzem o desejo e o impulso que vem se espalhando na comunidade negra: a de se irmanar e se cercar de seus semelhantes, numa tentativa de dividir o fardo do combate ao racismo institucional e compartilhar espaços, demarcar territórios de conquistas como uma questão coletiva.
É consequência do aprofundamento do processo identitário que o Brasil vem passando, de um número maior de pessoas se identificando como negras, fazendo transição capilar, assumindo seus traços negroides e tudo que parte da percepção de um reconhecimento, próprio e do outro, pelo processo de resgate da autoestima negra e do desejo de pertencimento, o qual o movimento negro chama de aquilombamento.
Stephanie Ribeiro, que assina uma coluna sobre temáticas do feminismo negro na revista Marie Claire, já escreveu anteriormente na TPM sobre o peso solitário do “não lugar” de ser uma negra com privilégios ocupando espaços de classe média, marcadamente dominados por brancos. Ela sabe que a visibilidade do seu casamento com Túlio Custódio causa uma boa sensação de representatividade para famílias negras, mas pondera que – mais que simplesmente um posicionamento de militância – as relações entre pessoas negras devam ser decorrentes de processos naturais de escolhas e não necessariamente um esforço deliberado em preencher lacunas.
“Percebemos o estranhamento, na nossa vizinhança de Higienópolis (bairro nobre de São Paulo), quando a gente passeia com o nosso cachorro”, comenta Stephanie. “Algo que é tão trivial para a classe média parece exótico conosco, nesse mundo que não sabe lidar com nossa presença. Raça não é o principal motivo por estarmos juntos, não de uma maneira simplista. A gente se une porque compartilha afinidades, inclusive nossa perspectiva racial, mas existe, além disso, um projeto de legado, de construir e criar patrimônios, não só materiais, mas sociais e afetivos, que impacte na vida de pessoas iguais a nós ao nosso redor. Entretanto, é preciso pensar que, nesses círculos de zona de conforto das pessoas brancas, a gente acaba convivendo mais com eles, nos nossos trabalhos, nos lugares que frequentamos, nos amigos com quem trocamos. Talvez o afroncentrismo seja a potencialidade de se circundar de semelhantes sem ter que obrigatoriamente tratar da pauta da negritude todo tempo, como se a gente só pudesse se reunir com negros para debater racismo. É importante pensar esses laços na leveza, também, pelo direito à simplicidade cotidiana, de conversar besteira, de falar de filme, teatro, decoração sem estar visitando dores. Também queremos poder ser o casal que pode olhar para a própria vida.”
Túlio, 34 anos, conheceu Stephanie, 26 anos, há quatro anos, quando ela participava de um encontro que colocaria seu nome entre as principais vozes de debate racial no Brasil. Era o Arte e debate: a representação do Negro, promovido pelo Itaú Cultural num gerenciamento de crise, pois teve que cancelar temporada de um espetáculo teatral em que atores brancos atuavam em papéis negros utilizando a pejorativa blackface. “Uma amiga em comum comentou que a gente devia se conhecer, começamos a trocar umas mensagens online e, depois do debate, fomos jantar com uma turma”, conta o sociólogo.
“Eu poderia ter ficado desde ali, mas o Túlio diz que não era a pretensão do momento”, relembra ela, rindo. “Começamos a namorar, eu ainda morava em Campinas, foram uns dois anos. Quando a gente adotou nosso cãozinho Basquiat e decidiu morar juntos, criar e construir uma casa nossa, fez sentido a gente casar, pensar como duas pessoas que vão fortalecer a trajetória um do outro. Quando Beyoncé e Jay-Z estão atuando juntos é muito mais que um casal negro posando no showbusiness, é ressignificar a estrutura da indústria que vai impactar a vida de gerações de meninos e meninas negras pelo que estão plantando agora”, conta a arquiteta. Eles estão casados desde junho.
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL
De acordo com a filósofa norte-americana Angela Davis, no livro Mulheres, raça e classe, no período colonial, homens e mulheres negros eram igualmente massacrados pela objetificação e animalização da escravidão. Usados apenas como peças para dar lucro, e desumanizados em suas emoções, mantinham na relação entre iguais uma espécie de horizontalidade da vida doméstica. O senso solidário africano ameaçava a ordem patriarcal do sistema colonizador e, por esse motivo, as famílias negras eram violentadas com o intuito de humilhação e desmobilização de seus agrupamentos.
Mães, pais e seus filhos ou esposas e seus maridos pretos eram recorrentemente afastados, comercializados a diferentes destinos de seus entes próximos, sem nenhum direito de conexão familiar. Havia uma deliberada fragmentação dos laços como estratégia, inclusive a proibição de registro de paternidade de pessoas escravizadas como direito das crianças negras, muitas delas geradas por estupros dos senhores brancos. A base cultural de sociedades provindas da colonização é de famílias negras fragmentadas e disfuncionais e famílias brancas tradicionalmente estruturadas em valores conservadores a serem preservados e protegidos.
Apesar de não termos vivido no Brasil o rigor separatista promovido pelo apartheid, instituído como lei e política nos Estados Unidos – até 1967, em alguns estados norte-americanos, era crime brancos terem relações sexuais ou se casarem com negros – e na África do Sul (até 1994), as discrepâncias raciais se perpetuam de forma semelhante no país desde o tempo da Colônia.
O pianista Amaro Freitas e a poeta e performer Luna Vitrolira.
Foto: Rennan Peixe
A história brasileira forjada pela narrativa das classes dominantes reforçou no imaginário popular a teoria conveniente de uma convivência pacífica entre os povos, dispondo a miscigenação entre brancos, indígenas e negros como fruto de uma democracia racial à brasileira. A partir da obra de Gilberto Freyre, Casa-grande & senzala (1933), os efeitos da escravidão na construção racial do Brasil e as consequências das relações de poder entre as raças foram minimizados. Nesse sentido, o racismo passa a ser considerado “brando” no Brasil, sublimando-se raça dos fatores que impõem desigualdade, concentração de renda e falta de mobilidade social como se a injustiça social fosse apenas uma questão de classe.
A argumentação freyriana também embasa mitos como a hipersexualização das pessoas negras e relativiza a exploração do português na formação do Brasil. Essa falsa “pacificação” dos conflitos resulta na naturalização de distopias raciais como a ausência de pessoas negras na mídia, na política, nas lideranças econômicas. Para o racismo de fato existir no imaginário brasileiro, a negritude teria que ser reconhecida primeiro, mas o processo de apagamento foi eficaz no sentido de fazer com que a maioria das pessoas negras não se reconhecesse como tal.
Recentemente, a militância dos movimentos negros vem pautando a onda de desconstrução desses paradigmas como as “raízes do Brasil”. Por isso, somente agora temos a sensação de que o racismo é pungente. Na verdade, só estamos falando mais a respeito do que sempre foi silenciado.
“De repente, você desperta de um sonho em que o doparam e colocaram pra dormir. Tem que ser muito resistente, pra despertar e entender que a gente precisa se amar mais. Eu cresci cheio de preconceitos. Escutei um lado da história que não me representa; nos foi negado contar nossa perspectiva. Estava vendo uma matéria sobre a autobiografia de (Mahommah Gardo) Baquaqua, um dos únicos negros que conseguiu deixar um registro sobre ser escravizado no Brasil, e me dei conta de que, naquele período, 0,007% das pessoas negras tinham acesso à alfabetização. Eu acho que a gente está vivendo o momento de resolver isso tudo, o tema está invadindo as redes sociais, a mente das pessoas. A troca é muito grande e a energia tem gerado um movimento de aproximação, aquilombamento, afeto e entendimento. Esse movimento é político e precisa ser político. Ele precisa estar presente, ser pautado e levado de uma forma mais séria e consistente. Sinto isso na pele com Luna, ao ver que cada post, cada gesto e cada ação influenciam na vida das pessoas. É possível se dar conta disso quando se está nessa posição também de artista”, pontua o pianista pernambucano Amaro Freitas, companheiro da poeta Luna Vitrolira.
“Estamos cada vez mais buscando nos aproximar de nossos semelhantes, porque fomos de fato distanciados pela colonização do olhar, pelo mito da mestiçagem, de termos historicamente procurado clarear as famílias, e isso afetou a nossa construção afetiva e amorosa entre as pessoas da mesma raça. A colonização nos impediu de amar os nossos, nossos familiares. Isso é muito problemático, fomos proibidos, manipulados. A gente está buscando refazer o caminho desse amor que nos foi negado e que hoje se afirma nesse querer”, diz Luna.
Aos 27 anos, Amaro é reconhecido internacionalmente entre os novos talentos instrumentistas. Luna estreia na Festa Literária de Parati com seu primeiro livro Aquenda, o amor às vezes é isso. Eles têm percebido a potência de estarem juntos, ao transitarem em castas artísticas tão restritas a pretos e pretas: a europeizada música instrumental e a canônica literatura brasileira, que até hoje nega a democratização dos espaços ao recusar, apesar do apoio popular, a candidatura de Conceição Evaristo à cadeira da Academia Brasileira de Letras.
“Quando se vê um casal de artistas negros no Recife, percebe-se o quanto isso é forte em termos de representatividade. Existe mesmo uma dificuldade de se ver, nos espaços ou nas mídias, casais que possibilitem às pessoas negras se reconhecerem e desejarem também esse lugar de se relacionar com alguém da mesma cor. E que isso provavelmente não vai te colocar num lugar de subalternidade estética, nem te aprisionar em padrões, você vai poder enxergar seu valor”, afirma entusiasmada Luna. Ela conheceu Amaro quando trabalhava na equipe do Paço do Frevo. Ele foi visitar uma amiga em comum, que acabou estimulando-os para que se aproximassem. Estão juntos há dois anos.
SOLIDÃO, CELIBATO, NEGROFOBIA
Majoritariamente, os brasileiros elegem cônjuges de mesma raça, mas o grupo que menos casa é o de negros. O Censo Demográfico de 2010 – Nupcialidade, fecundidade e migração, do IBGE, relatou que 73,7% dos homens brancos e 73,7% das mulheres brancas casam-se entre si. O comportamento se apresenta em menor escala entre pardos, 68,1%, e negros, 50,3%, com parceiros de mesma cor. A maioria (52%) das mulheres negras está solteira e entre as mais velhas (acima de 50 anos) estão as que mais sofrem do celibato definitivo (jamais ter uma união estável em toda vida). Será que isso acontece por escolha? Não é o que concluem estudos relevantes sobre a solidão da mulher negra, como os livros Mulher negra: afetividade e solidão (Edufba), da socióloga Ana Cláudia Lemos Pacheco, e Virou regra? (Scortecci, 2010), da cientista social Claudete Alves.
Pensar a tendência atual de comportamento de casais negros empoderados é um reflexo da ampliação do debate sobre o direito ao amor, numa perspectiva de ativismo e reação política para injustiças raciais, e também de gênero, que acabam impondo lacunas afetivas (mais agravadas em grupos determinados como mulheres negras e LGBTs) aos vistos socialmente como menores na elegibilidade da construção de um imaginário de família, que ainda persiste no modelo eurocêntrico e patriarcal. A situação posta perpetua-se no inconsciente, reforçada por uma onda conservadora, a projeção de amor romântico branco e heteronormativo, sendo todas as outras possibilidades inferiores ou insuficientes.
No livro Pele negra, máscaras brancas, Frantz Fanon, autor negro martinicano e um dos maiores pensadores sobre a importância da descolonização do pensamento, diz o seguinte: “O negro vive uma ambiguidade extraordinariamente neurótica. Reconheceu-se como preto, mas, por uma derrapagem ética, percebeu (inconsciente coletivo) que era preto apenas na medida em que era ruim, indolente, malvado, instintivo. Tudo o que se opunha a esse modo de ser preto, era branco. Deve-se ver nisso a origem da negrofobia. No inconsciente coletivo, negro = feio, pecado, trevas, imoral. Dito de outra maneira: preto é aquele que é imoral. Se, na minha vida, me comporto como um homem moral, não sou preto. Daí se origina o hábito de se dizer do branco que não presta, que ele tem uma alma de preto. A cor não é nada, nem mesmo a vejo, só reconheço uma coisa, a pureza da minha consciência e a brancura da minha alma”.
O racismo estigmatiza e menospreza pessoas negras, que carregam em suas personalidades as marcas e traumas desse tratamento negativo. Os corpos ou são rejeitados ou hipersexualizados, a fragilidade e a vulnerabilidade emocional suprimidas, sua dor descredibilizada e até suas mortes ignoradas pela comoção coletiva.
Para a psicóloga Jesus Moura, o marcador do racismo atravessa de todas as formas os afro-brasileiros. E a afetividade e autoestima também são transpassadas pelas violências sistêmicas: “Como gostar de mim e esperar que alguém olhe pra mim, se me foi incutido um lugar de menos-valia, de não beleza, sensualidade ou inteligência? As inseguranças por sempre ter se sentido menos capaz de atrair, de se relacionar são consequências da ordem profunda emocional, as desconfianças sobre quem somos nós e nosso próprio valor estão sempre presentes”.
“Raça não é simplesmente uma questão de gosto pessoal. Nossos gostos são moldados pela construção social. A gente é ensinada culturalmente a diferenciar entre feio ou belo, o que é bom ou ruim. Um corpo gordo numa sociedade gordofóbica ou um corpo preto em uma sociedade racista é associado ao feio. E as pessoas vão reproduzindo isso. Eu acredito que o relacionamento amoroso deva ser desenvolvido para além da raça. É possível de fato se apaixonar por alguém que não tem uma vivência racial igual à sua. Mas a gente precisa entender que muitas vezes isso pode estabelecer uma relação direta com a solidão de determinados grupos que são vistos como fora do padrão”, reflete Maíra Azevedo, a humorista e influenciadora conhecida como Tia Má.
Aos 38 anos, a comunicadora baiana – que participa do programa Encontro de Fátima Bernardes, dando conselhos amorosos e debatendo interseccionalidades de gênero e raça na internet – revela que nunca teve um relacionamento com homens brancos. Sempre sentiu que as investidas tinham apenas conotação sexual e que diversas vezes fora fetichizada, nunca assumida publicamente em um relacionamento inter-racial. “Nunca tive um homem branco que topou me assumir como companheira. Eles queriam transar comigo para confirmar a fantasia de saber ‘o é que a negona tem’, saber se a mulher preta de fato é mais quente e mais fogosa na cama. É isso que acontece com a maioria de nós.”
A história da mulher negra invisibilizada se repetiu ao longo da vida da poeta e performer pernambucana Luna Vitrolira. Somente com seu atual companheiro, Amaro Freitas, viveu seu primeiro relacionamento sério. “Comecei a me envolver com pessoas muito tardiamente, quase aos 20 anos de idade, já estava na faculdade. Nunca tinha ficado com ninguém, então foi algo problemático também pela vergonha e falta de experiência. Minha vida afetiva começou aos poucos, mas, ainda assim, muito dispersa. Ficava com muitas pessoas, brancas e negras, mas também não conseguia emplacar um relacionamento. Hoje, quando paro para analisar como foram construídas essas relações e como eu era tratada, consigo entender algumas diferenças. Brancos me tratavam como casual mesmo, mas negros também me escondiam. Então, eu nunca era assumida, não ficava com ninguém em festas, em praças, em rodas de amigos. Era sempre discreto, entre quatro paredes, ninguém sabe, ninguém viu. Era muito esse lugar.”
“Eu e Stephanie temos trajetórias diferentes e, no meu contexto classe média, não me parecia um conflito conviver mais com pessoas brancas ou me relacionar com elas. Meus pais, negros, estão juntos até hoje, criaram três filhos hoje formados, lutaram por um patrimônio. Então, historicamente, minha família toda é estruturada no modelo de casais longevos criando seus descendentes, o que já não é mais comum para famílias negras. Somente ao conhecê-la pude entender melhor as questões da solidão da mulher negra. A família dela tem diversas histórias de mães solos sobrecarregadas, e como isso é mais um elemento da estrutura racista em que a gente vive. Percebi que muitas vezes o incômodo que o relacionamento afrocentrado gera nos outros surge do questionamento de como, num determinado ponto de ascensão social, a gente se escolhe, se elege como parceria, em vez de preferir pessoas brancas. É ainda muito associada a ideia da união de pessoas negras ao fracasso, à decadência, como se, num universo de prosperidade, a gente não pudesse estar ao lado de alguém como nós”, analisa Túlio Custódio.
PERPETUAR TRADIÇÕES?
Sorriso largo, visual étnico, além de uma personalidade expansiva e cativante. Essa é a síntese da imagem de Carmem Virginia, 43 anos, chef de cozinha que comanda o restaurante Altar Cozinha Ancestral, no Recife, e é uma das juradas do programa Cozinheiros em Ação, do canal GNT. A memória afetiva da cozinha e sua conexão com as religiões de matrizes africanas permeia sua admirável trajetória profissional, muitas vezes interpretada numa visão utilitarista como uma história meritocrática, um exemplo de superação.
Carmem Virginia é empresária, famosa e influente, com dois filhos bem-criados, João (14) e Giulia (19), unida ao seu melhor amigo e companheiro Everaldo Alves (54 anos), o Vevé, com quem partilha os negócios e a liderança do Terreiro Ilê Axé Ogbon Obá, em Água Fria (periferia do Recife), em que atuam como babalorixá e iabassê. Ao primeiro olhar, parece o conto de fadas da família negra tradicional brasileira, ou, neste caso, uma lenda iorubá.
Mas Dona Carmem, como é conhecida, apesar da fama, continua a ser uma mulher negra, nordestina, periférica, gorda, mãe. É, nesses cruzamentos de interseccionalidades, também um retrato de cada uma de nós e nossa bagagem afetiva – atravessada pelo racismo e pelo machismo continuamente, carregando os estigmas do preterimento, da rejeição, da baixa autoestima, da vulnerabilidade para situações de violência, pois as mulheres negras são as principais vítimas de assassinatos, cerca de 66%, segundo o Atlas da Violência 2019. Em 10 anos (2007-2017), a morte violenta de mulheres negras cresceu mais de 60%, enquanto para mulheres não negras esse aumento foi de 1,7%.
A chef Carmem Virgínia optou pou um relacionamentos afrocentrado com Vevé.
Foto: Isabela Lucena/Divulgação
Carmem passou 15 anos em um relacionamento abusivo com o pai dos seus filhos, um homem negro machista, violento, possessivo. “Fui criada pela minha avó e educar meus filhos sem o pai por perto me parecia uma ideia assustadora. Eu me sustentava nas crias como desculpa para seguir aprisionada no relacionamento. Ter aquele marido era um símbolo, um troféu por ter cumprido o sonho de ter uma família. Mas, na verdade, ele não era um companheiro, era apenas um homem. Levei quase três anos pra conseguir me separar, me livrar da dependência sexual dele, estava ainda convencida de que sem ele eu ia ficar sozinha para sempre. Mas fui me reconstruindo com a ajuda da minha filha, que começava a me questionar sobre como eu aguentava aquela situação. Fui me empoderando pelo trabalho e pelos estudos e consegui romper o ciclo”, conta a cozinheira.
Sobre isso, diria a feminista e escritora negra Bell Hooks, no clássico artigo Vivendo de amor: “Numa sociedade onde prevalece a supremacia dos brancos, a vida dos negros é permeada por questões políticas que explicam a interiorização do racismo e de um sentimento de inferioridade. Esses sistemas de dominação são mais eficazes quando alteram nossa habilidade de querer e amar. Nós, negros, temos sido profundamente feridos, como a gente diz, ‘feridos até o coração’, e essa ferida emocional que carregamos afeta nossa capacidade de sentir e consequentemente, de amar. Somos um povo ferido. Feridos naquele lugar que poderia conhecer o amor, que estaria amando. A vontade de amar tem representado um ato de resistência para os afrodescendentes. Mas, ao fazer essa escolha, muitos de nós descobrimos nossa incapacidade de dar e receber amor”.
“É importante repensar a ideia de amor que a gente absorveu, reconstruí-la, para não gerarmos também incoerência entre discurso e prática nas relações entre pessoas negras”, pontua a poeta Luna Vitrolira. “Porque ainda existe muita violência, agressão, manipulação, dentro da ideia de amor como posse, de ciúme como prova de amor, que também coloca a mulher num lugar de subserviência e inferioridade, na tentativa de fazê-la permanecer no âmbito doméstico. Ainda é muito forte e pesada a herança da mulher negra a serviço da casa-grande, e o homem negro também acaba reproduzindo e colocando essa mulher nesse mesmo lugar de servir a ele, na cama, na mesa, no banho, no lar. São questões que a gente também está lutando contra, nos feminismos, no nosso caso interseccionado.”
No caso de Carmem Virginia, foi a juventude consciente e questionadora da filha Giulia, na época com 14 anos, que a estimulou a ressignificar sua perspectiva de gênero e de raça e resgatar seu brilho pessoal. Desse modo, ela se sentiu emocionalmente disponível e reencontrou romanticamente o amigo Vevé, com quem já tinha tido um namoro rápido 23 anos antes. Vevé sempre fora próximo da família, amigo também do ex-marido e uma presença afetiva para as crianças. Era com ele que Carmem contava, compartilhando os momentos difíceis. O relacionamento de casal surgiu da intimidade e da confiança já estabelecidas entre os amigos.
“Vevé tem um senso de empatia, de cuidado com os outros, de encarar a vida pelas oportunidades e não pela limitação, mesmo sendo ele cego. Com ele eu encontrei um amor sem barreiras, sem preconceitos e de muita cumplicidade. Quando nos conhecemos, eu, muito jovem, tive resistência de seguir adiante, por causa da bissexualidade dele. Mas ainda bem que o mundo deu essa volta pra gente se reencontrar, em nossas afinidades, na religião, na carreira, para nos apoiarmos mutuamente. Não me apaixonei por ele ser negro, a questão física nem deve ser determinante na troca de conhecer o outro, mas duvido muito que se ele não fosse negro seria a pessoa que é, com essa maneira de entender a vida e as pessoas”, elogia Dona Carmem o marido, com quem está há cinco anos.
Para Maíra Azevedo, Tia Má, há dois anos namorando Marcus Rodrigues (40 anos), gestor em plataforma petrolífera, o relacionamento afrocentrado facilita o entendimento e a empatia somente quando as duas pessoas estão disponíveis a compartilhar e lidar juntas com as questões raciais, não pela questão da cor da pele simplesmente. “Porque nem todo relacionamento entre negros é afrocentrado. Marcus ainda não tinha tanta consciência sobre esse processo. Eu venho do movimento negro e ele não. Mas temos que compreender que podemos construir o debate racial juntos, cada um com seu olhar, mesmo que eu tenha um arcabouço literário maior, uma vivência maior e uma discussão maior, ele traz o olhar de homem negro, que é submetido a determinadas perversidades que eu, enquanto mulher, não passo. O terror do genocídio da juventude negra afeta muito mais os homens, a perversidade do estereótipo de bandido também”, pontua.
Giulia Batista, a filha de Carmem Virginia, que é símbolo de negritude e cultura ancestral em Pernambuco, também teve que se aperceber e sentir segurança na própria negritude para reconhecer a própria beleza e despertar para o desejo da conexão afetiva com pessoas também negras. “Somos de uma realidade de periferia, a maioria das minhas amizades cresceram comigo e, apesar de agora fazer faculdade e acompanhar minha mãe em ambientes elitizados, cheios de pessoas brancas, sempre me senti mais confortável entre as pessoas como eu. Mesmo assim, também cresci projetando ideais de embranquecimento, principalmente na cultura pop. Eu era muito fã de K-pop, mas, quando eu passei pelo processo de transição capilar, aquelas referências pararam de fazer sentido pra mim”, observa.
“Quando eu namorava com pessoas brancas, inclusive com meninas, eu sentia diferenças, a dificuldade de empatia e até abusividade. Decidi investir mais nos negros, pelo Tinder, mas não é tão simples assim essa troca. Muitos caras negros não estão olhando e nem se cuidando, muitos têm depressão, instabilidade emocional, não se sentem bem consigo e ficam tentando se autoafirmar nos discursos descolados sobre ser preto, gíria de hip hop, para se rodear e atrair meninas brancas e padrão, descartando as minas negras. Até que conheci o Renato, que tem outro jeito, e também já sofreu por se sentir diminuído”, conta Giulia, que é estudante de Direito.
A filha de Carmem Virgínia, Giulia, também vive um relacionamento afrocentrado ao lado de Renato. Foto: Rennan Peixe
Renato Duarte, 22 anos, namora com Giulia há três meses, e diz que é muito mais leve e tranquilo estar numa paixão em que os dois se sentem da mesma forma. Em um relacionamento anterior de vários anos, com uma garota branca, chegou a ser agredido pelo pai da namorada, que o mandou “voltar para África”, deixando sua filha em paz para conhecer alguém melhor, branco, rico. “E eu continuei, mesmo sendo tóxico. Mesmo que eu fosse, no máximo, apenas tolerado naquele ambiente. Além do fato de a gente se gostar, existe também uma sensação de ser mais reconhecido, as pessoas admiram a conquista do tipo de mulher que todos desejam, mas, no fundo, é exaustivo ter que provar esse poder, que você é o cara, todo tempo.”
QUANTO AOS HOMENS
Em outro trecho de Vivendo de amor, Bell Hooks afirma que “precisamos reconhecer que a opressão e a exploração distorcem e impedem nossa capacidade de amar. (…) A prática de se reprimir os sentimentos como estratégia de sobrevivência continuou a ser um aspecto da vida dos negros, mesmo depois da escravidão. Como o racismo e a supremacia dos brancos não foram eliminados com a abolição da escravatura, os negros tiveram que manter certas barreiras emocionais. E, de uma maneira geral, muitos negros passaram a acreditar que a capacidade de se conter emoções era uma característica positiva. No decorrer dos anos, a habilidade de esconder e mascarar os sentimentos passou a ser considerada como sinal de uma personalidade forte. Mostrar os sentimentos era uma bobagem”.
Em quase todas as histórias, o que se percebe é que homens e mulheres negros são indubitavelmente afetados pela estrutura racista em suas relações, absorvendo traumas e dores por tantas vezes serem brutalizados, fetichizados ou invisibilizados em suas experiências amorosas. Mas isso não quer dizer que há uma completa simetria desses impactos. Os papéis de gênero passam por especificidades geralmente distintas.
Há diversos homens negros com práticas machistas, reproduzindo violências ou buscando na figura da mulher branca a redenção para a ascensão social e o reconhecimento. Não são coincidência os inúmeros casos de jogadores de futebol, artistas de periferia do pagode, funk ou rap que, ao atingir o sucesso, constituem família com mulheres brancas, principalmente loiras. Fanon trata em Peles negras, máscaras brancas a respeito desse fenômeno de busca por uma masculinidade que se aproxime do homem branco, o ideal humano universal no pensamento colonial.
“Sempre me relacionei com homens negros, e vivi duas experiências abusivas. Acho que isso é consequência da minha criação, vinda de uma família desestruturada, com um pai até presente, mas alcoólatra, e uma mãe que luta muito. Desde criança, vivenciei um ambiente de violência verbal, e isso acaba formando a minha visão de mundo e de relacionamento. Não foram namoros fáceis, considerando que esses homens também vieram de famílias desestruturadas, mas não buscaram se trabalhar, sequer questionar e analisar seus traumas”, descreve Bárbara Oliveira, arquiteta pernambucana que está há seis meses namorando o estudante de Arquitetura Taian Paim.
A jornalista baiana Lorena Ifé criou o Afrodengo, grupo fechado no Facebook que reúne quase 50 mil pessoas de todo o país e tem como critério ser um espaço de paquera exclusivo para pessoas negras. Fotos: Céu Albuquerque/Divulgação
A profusão do feminismo negro e a diversidade de autoras negras ampliaram o debate sobre afetividade e negritude. Alguns negros homens, pautados por essas discussões, estão começando a fomentar mais diálogos sobre os desafios da masculinidade negra como estratégia de descolonização da figura tóxica do homem negro forte, “o negão marrento”.
Com um perfil no Instagram com mais de 100 mil seguidores, o @afro.estima que aborda reflexões sobre as fragilidades de autoestima e questões comportamentais para preto e pretas, o administrador mineiro Mauro Baracho levou para a academia seus questionamentos sobre o papel desse novo homem negro. No mestrado de Antropologia da UFMG, ele está desenvolvendo a pesquisa A construção da masculinidade negra: sua subjetividade e relações afetivas dentro de seu grupo étnico na cidade de Belo Horizonte.
“Percebo nesses grupos que, na tentativa de se construir outras referências do que é ser um homem negro, muitos deles não tinham referências próximas de homens pretos em que se espelhar, num histórico de pais endurecidos ou ausentes, que não demonstravam afeto. Existe uma demanda por um espaço para a sensibilidade, bondade e fragilidade desse homem que, no geral, vivencia uma masculinidade marginalizada, associada à violência, força e hipersexualização”, comenta Baracho.
Uma das principais formas de afirmar a masculinidade da força é ter como contraponto o subterfúgio do “sexo frágil”, simbolizado pela feminilidade dócil e delicada associada à mulher branca. Sem se perceber, as escolhas afetivas apontam esse ideal de mulher. “Muitos dos que se relacionam somente com pessoas de outra raça acreditam que a cor não pauta seus afetos. E, mesmo a despeito das problemáticas de gênero, percebo a possibilidade de o homem negro ser oprimido por uma mulher branca. Vemos diversos casos de negros famosos com companheiras brancas – esses homens têm uma tolerância maior com mulheres brancas, inclusive com humilhações em meio a famílias racistas, em comparação com o que aceitariam da mulher negra”, avalia o pesquisador.
Para Mauro Baracho, ainda, homens negros que não estão totalmente resolvidos com sua autoestima e identidade replicam a desumanização da infância e adolescência: “Para estes, estar num relacionamento afrocentrado é mais difícil por ser obrigado a se mirar no espelho, passar pelas mesmas questões, como olhares tortos juntos num passeio num shopping ou apoiar a transição capilar da sua companheira. Existe um medo de perder esse ‘cartão de acesso’ à aceitação”, conclui.
Assim se estabelece o fenômeno problematizado como palmitagem, que define a preferência por pessoas brancas nas escolhas afetivas pela comunidade negra. “A palmitagem é um problema estrutural do racismo, queiramos ou não. Antes de ser uma escolha, a negação de afeto de pessoas pretas é construção, e valida o racismo que segue matando de formas letais e simbólicas. Tudo é parte do mesmo projeto. Tanto é que a maioria das pessoas brancas irá se opor às pessoas pretas que defendem seus direitos à relação, mas não se incomodam com o impacto do racismo na construção afetiva dessas pessoas. Seja qual termo usar, qualquer pessoa negra que se lançar para discutir os impactos do racismo na formação afetiva de pessoas pretas será deslocada para o lugar da inveja, do ressentimento, como estratégia de apagamento do debate”, comentou sobre o tema, em seu perfil no Instagram, o fotógrafo Roger Cipó.
“Cresci numa realidade privilegiada, de bairros e escolas, de conviver mais intensamente com pessoas brancas, e, quando se está nesse contexto, não parece problemático estar recorrentemente em relações inter-raciais. Mas muitas vezes eu me senti objetificado, hipersexualizado nesses namoros, que não estão muito interessados nas minhas subjetividades, mas no símbolo estereotipado do homem negro viril”, reflete o soteropolitano Taian Paim, neto do conhecido sambista Riachão. Para ele, o processo de amadurecimento dos homens negros na percepção de seu papel vai permitir relações afrocentradas mais equilibradas e saudáveis.
Bárbara e Taian, juntos há seis meses, veem como a principal conquista do encontro o olhar humanizado entre si. Foto: Márcio Lima
No ponto de vista de Bárbara, esses embates são despertados pelo acesso à informação e ao conhecimento e mais propícios no campo da intelectualidade negra. “Quando esse homem negro acessa a universidade, ele começa a ter que abrir a cabeça, a mudar sua visão de mundo”, observa. Foram a arquitetura e os projetos sobre raça nessa profissão, ainda tão enbranquecida no Brasil, que despertaram as afinidades entre ela e Taian. Juntos, desde o dia em que a recifense se mudou para Salvador para cursar o mestrado em Arquitetura da UFBA, Bárbara e Taian veem como a principal conquista do encontro o olhar humanizado entre si.
MIRAGEM DA IGUALDADE
Olhar com profundidade para questões identitárias de raça e gênero foi o ponto de partida do documentário Hixikanwe – Estamos juntas. O filme da realizadora pernambucana Débora Britto, que está na etapa de pós-produção e foi gravado em Moçambique, traça um percurso biográfico em que a diretora reencontra mulheres africanas que a fizeram se perceber, durante um intercâmbio em 2014, como uma mulher negra. Nesse processo de investigação pessoal, além das cenas gravadas, o filme lhe traz como legado o encontro amoroso com a assistente de direção e também cineasta Mayara Santana, sua namorada há um ano.
“Antes do filme, começamos a nos aproximar partindo dessa troca de negritude. Eram os nossos primeiros assuntos e acho que a intimidade começou a se construir a partir disso”, relembra Mayara, que tem buscado se relacionar com negras desde que encerrou um relacionamento com uma mulher branca. “Sinto-me bem mais confortável depois de um relacionamento com mulher negra, mas isso é uma vírgula perto das coisas que precisam ser construídas. Acho que eu conseguiria estabelecer um relacionamento com uma mulher branca, se ela fizesse o esforço de construir uma consciência de classe e raça”, avalia.
“No início, esse não foi o objetivo de me relacionar com Mayara, mas somos duas mulheres negras conscientes disso. A gente pensa sobre estruturas e práticas que nos foram impostas e nos deparamos com as fragilidades da nossa afetividade diante do racismo, como ele afeta nossa construção sentimental, nossa disposição emocional para estarmos abertas. Enfim, os traumas que a gente traz para o relacionamento, tendo que lidar com o que o racismo fez com a gente”, coloca Débora Britto.
Também em processo de reavaliação pessoal e das memórias afetivas, Mayara está publicando o documentário Rebu – A egolombra de uma sapatão quase arrependida, no formato de pílulas de vídeo, publicadas no canal do Instagram @rebu.doc. Entre os capítulos, repensa suas relações. “Tenho percebido como construí minha personagem sapatão que reproduz práticas machistas, me afirmando em ser conquistadora, paqueradora, para afirmar o quanto posso ser boa, inteligente, bonita, e quantas vezes ultrapassei meus limites para provar isso”, analisa.
“Quando se namora uma pessoa que você sabe mais ou menos de onde vem algumas dores dela, cria-se outro nível de empatia e compreensão. Acho que, por estar com uma mulher negra, eu consigo minimamente me esforçar nesse processo. Mas isso não quer dizer que o relacionamento afrocentrado resolve tudo, não é um passaporte para Wakanda. Tão difícil como ser uma mulher negra é estar com uma mulher negra no relacionamento. É complexo se sentir amada como também amar e deixar a pessoa se sentir amada. Acho que, no fim, o caminho é terapia e autoamor, porque outra pessoa não vai ser capaz de fazer você se amar nem de superar seus traumas, no máximo vai ser uma ótima companhia.”
Relações afrocentradas reverberam processos de autoafirmação da identidade cultural negra. Olhar-se com reconhecimento da própria beleza e do próprio valor em uma sociedade que os nega é um ato de resistência, até de manutenção do próprio povo, como acontece em comunidades indígenas. É o momento de construir novas referências de famílias negras, inclusive na representatividade midiática.
Mas não existe, dentro e fora desse enlace, uma bolha de uma mítica África capaz de proteger plenamente a saúde mental e a carga afetiva das pessoas ali envolvidas que por toda sua vida são atravessadas pelo racismo em suas histórias. “É importante esse processo de resgate de autoestima, voltar-se para si, e perceber a semelhança como possibilidade, mas num lugar livre de amarras, não por um investimento fantasioso com outro. Ao entender as consequências do racismo e se fortalecer internamente, é possível ser livre nas escolhas, tanto para o que se parece consigo como até para se permitir relacionamentos inter-raciais, mas num outro lugar, sem subalternidade, isso é empoderamento”, pondera a terapeuta Jesus Moura.
GEISA AGRICIO, jornalista e ativista de questões de raça e gênero.