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Depoimento: Naine Terena

TEXTO Naine Terena

01 de Abril de 2017

Naiane Terena

Naiane Terena

Foto Téo de Miranda/Editora Sustentável

[conteúdo vinculado ao especial da ed.196 | abril 2017]

Penso que a questão é como “ser” em 2017. Estamos todos pautados em um pertencer a um sistema maior, quase unificador de pensamentos e ações. Esse sistema diz quem devemos ser e tenta enquadrar todos nós. Isso tem sufocado cada dia mais as pessoas. Ser indígena (indígena é o termo adequado, pois somos indígenas, povos indígenas; “índio” resume demais os 305 povos existentes no país), nesse contexto, baseia-se em manter vivos outros sistemas que contêm outros conhecimentos, conhecimentos esses que sobrevivem ao longo desses 516 anos: estruturas de pensamentos, de ações, de conhecimentos, de vida. E isso é um problema, principalmente porque essa estrutura de pensamento teima em se propagar e defender o vínculo que se tem com a terra onde os antepassados viveram e as comunidades pretendem continuar vivendo. Imagine, em pleno século XXI, viver em comunidade? (Mas, veja, essa parece ser uma “novidade” que vem surgindo, não? Vemos cada vez mais as ecovilas se espalhando.) A lógica da coisa não seria essa. Deveríamos todos esquecer esse modelo e abrir espaço para os megaempreendimentos, para o agronegócio, para as hidrelétricas.

O poder da resistência indígena está justamente em ser! Eu moro e sempre morei na cidade. Porém, nunca deixei de ir à aldeia dos meus avós, porque minha mãe nunca se  esqueceu de onde veio. O código dela para manter a identidade é a fala. Ela repassa seu conhecimento, faz as comparações. Meu pai era indigenista. Daqueles que enfrentavam fazendeiro, político, autoridades. Como não militar, quando se tem duas figuras dessas dentro de casa? Como não manter viva uma história tão bonita como essa? De geração para geração, assim é que acontece. Parece que muitas pessoas no mundo não índio não têm memória. A nuclearidade familiar anula os que se foram. O que se foi. O futuro domina a todo instante o pensamento, fazendo as pessoas esquecerem os caminhos pelos quais chegaram até aqui.

Costumo dizer o seguinte: Manuela Carneiro da Cunha, lá pela década de 1980, falou de alguns momentos dos povos indígenas: um que se pensou em exterminar física e culturalmente; outro tentou fazer o indígena se envergonhar de ser indígena. Todo mundo deveria ser caboclo, bugre e esquecer essa história de “índio”. Depois, houve um levante, de onde os povos emergiram com cantos, rituais, conhecimentos para defender sua vida e a terra. Eu digo que estamos no quarto momento: muito além do levante, os indígenas têm sede de se apropriar de tudo que antes lhe foi oferecido visando à destruição cultural, mas, agora, aprendem a dominar (inclusive as TIC) e utilizam em prol da militância e direitos. Considero isso espetacular. Por isso temos tantos indígenas nas universidades. Tantos indígenas atuando em diferentes áreas de conhecimento. E quem não gostar vai ter que se acostumar. Porque tem indígenas na internet, nas redes sociais, no escritório de advocacia, no serviço público. Sem deixar de ser.

Acredito que o Terena é um dos povos com maior número de mestres e doutores. Chegar até esse percentual não é fácil. Exige muito sacrifício. Exige articulação. Penso que, por isso, continuo a vida acadêmica. Penso o quanto é interessante dominar outros códigos e dizer através deles o que se precisa dizer.

Quando decidi ser pesquisadora, já tinha em mente que não seria fácil. O que é pesquisa no Brasil, não é mesmo? Sempre tive forte apreço pelas artes e pela comunicação. Cada vez mais as integro, quando preciso falar algo. Fiz o mestrado em Artes porque queria muito voltar a fazer teatro (fiz teatro por muitos anos, antes da graduação). Mas tudo sempre caminhava para o contexto indígena. E na pesquisa foquei uma dança Terena. Uma dança com quase 13 movimentos. Quase uma encenação. E aí eu parei para pensar: não preciso estudar as artes ocidentais, quando tenho lá, no nosso povo, uma dança que tem movimentos que levam o corpo ao esgotamento físico, com movimentos que envolvem todo o corpo, produz sons que englobam os instrumentos musicais, instrumentos da dança e o próprio dançarino. A poesia do corpo está ali. E, a partir daí, comecei a produzir minhas obras. Agora tenho focado mais: arte-educação, literatura, artes visuais, audiovisual. Organizo eventos, faço assessoria de imprensa, pesquiso, dou aula. Fiz trabalhos com economia criativa e povos indígenas. Tem muito a se explorar ainda nesse campo. Os povos indígenas estão aí, se virando para sobreviver a partir de sua própria cultura. O que a experiência que tenho tido me permite dizer é que não estou apenas no campo de atuação profissional indígena, e isso é muito bom. Porque um estigma comum de se ver é que parece que o indígena só pode (ou deve) trabalhar com a temática indígena. No meu caso, procuro sempre me envolver em trabalhos artísticos. Já teve casos de eu ir para algum evento e as pessoas pensarem que a ‘Naine’ era outra pessoa, e não eu, porque não imaginavam que eu poderia falar de determinado tema que não o indígena.

A arte é um instrumento forte de socialização. Nos últimos anos, tenho mapeado o audiovisual indígena, o impacto dele nas comunidades e no público. Como tudo, tem pontos positivos e negativos. Mas quando vemos o As hipermulheres, um filme Xinguano no catálogo do Netflix, já é um pontinho a mais para o audiovisual indígena. Tenho uma página que anda meio parada no Facebook. Chama-se Notícias indígenas. Tenho fiéis acessos, principalmente de comunicadores. Muitas postagens dali já viraram pautas. Pessoas, personagens. Mantenho a página como um clipping e, quando tenho tempo, produzo meu material. Essa página me diz sempre: alguém quer saber o que você quer falar. A repercussão dos vídeos indígenas nos diz: alguém quer saber o que os indígenas querem falar. As hipermulheres no Netflix diz: alguém acha interessante o que os Xinguanos estão falando. Daí a gente percebe que nem tudo está perdido. 

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