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Resistência e representatividade

Indígenas e não índios que lutam pela causa desses povos criam narrativas que trazem a força da ação e o desejo de justiça

TEXTO Luciana Veras

01 de Abril de 2017

Na Bienal de SP 2016, Bené Fonteles montou a

Na Bienal de SP 2016, Bené Fonteles montou a "artivista" 'Ágora: Oca Tapera Terreiro'

Foto Fundação Bienal São Paulo/divulgação

[conteúdo vinculado ao especial da ed. 196 | abril 2017]

“A floresta está viva. Só vai morrer se os brancos insistirem em destruí-la. Se conseguirem, os rios vão desaparecer debaixo da terra, o chão vai se desfazer, as árvores vão murchar e as pedras vão rachar no calor (…) Todos os xamãs vão acabar morrendo. Quando não houver mais nenhum deles vivo para sustentar o céu, ele vai desabar”.
(Davi Kopenawa e Bruce Albert, A queda do céu – Palavras de um xamã Yanomami)

Em 2015, cinco anos após sua publicação na França, A queda do céu – Palavras de um xamã Yanomami chegava ao Brasil em edição da Companhia das Letras, numa poderosa coautoria entre um xamã yanomami e um etnólogo francês. Em suas mais de 700 páginas, o volume traz os registros de entrevistas e relatos concedidos por Davi Kopenawa a Bruce Albert entre 1989 e 2001; outorga, também, o valor simbólico e erudito de uma publicação à sabedoria do líder indígena, tornando-a perene e acessível aos que não tiveram, como Albert, a chance de desfrutar do seu convívio e sua inteligência – cuja acuidade seria descrita pelo antropólogo Eduardo Viveiros de Castro no prefácio como “um aviso, uma advertência, uma última palavra”.

No mesmo 2015, a exposição A queda do céu foi aberta no Paço das Artes, em São Paulo, reunindo 17 artistas, pela curadoria de Moacir dos Anjos, a fim de espelhar a cosmogonia de Kopenawa. Na exposição, obras de Cildo Meirelles, Claudia Andujar e Miguel Rio Branco, entre outros, representavam os índios na arte contemporânea. Um questionamento norteava a curadoria do pesquisador e crítico pernambucano. “Quase todos os artistas e pensadores são não indígenas falando pelos indígenas, em uma situação talvez ainda necessária nesse ambiente onde eles são praticamente impedidos de falar ou não têm sua voz escutada. São pouquíssimos, por exemplo, os indígenas a participar do campo institucional das artes visuais, que os exclui quase totalmente. Assim, como fazer uma seleção e montar uma exposição em que essas questões aparecessem de forma potente? A ideia foi dar visibilidade, mapeando artistas que tenham questionado a vulnerabilidade dos povos indígenas”, recorda Moacir dos Anjos.

Embora a mostra fosse “sabidamente limitada por não exibir a arte feita pelos indígenas”, segundo o curador, nela estavam evidentes a vulnerabilidade e a invisibilidade dos povos originários do Brasil. Em Zero real (2013), Cildo Meirelles atualizava um longevo projeto de circunscrição política em cédulas com a figura de um índio em uma nota fictícia. “O que vale mais?”, parecia inquirir a obra. Em Coleção produtos de genocídio (2015), Paulo Nazareth questionava a noção despudorada de apropriação – há times de futebol, por exemplo, chamados Tupi e Guarani. Em Dicionário Krenak/Português – Português/Krenak (2009-2010), Maria Thereza Alves, radicada na Alemanha, porém com foco contínuo no tratamento negligente que o Estado brasileiro reserva aos indígenas, traduzia um léxico originalmente composto em alemão, emoldurado de modo a não ser manuseado pelo observador.

Tal obra foi idealizada para ser distribuída apenas entre os Krenak, propositalmente vedada ao “povo da mercadoria”, como Davi Kopenawa descreve os “homens brancos”. Nasceu do encontro entre a artista e dois irmãos da etnia, como revela à Continente a escritora e professora Shirley Krenak (leia depoimento dela na página 41). De uma certa forma, a postura de Maria Thereza Alves espelha a conduta de muitos artistas presentes em A queda do céu e em Adornos do Brasil indígena – Resistências contemporâneas, outra exposição com curadoria de Moacir dos Anjos, montada no Sesc Pinheiros em 2016 – dessa vez, propondo um diálogo entre obras de artistas como Carlos Vergara, Lygia Pape e Thiago Martins de Melo e utensílios fabricados por dezenas de povos autóctones. “Aquelas obras resvalavam entre si e criavam formas diferentes de ativar o imaginário indígena, com ênfase na resistência, não no deslumbrante. Nosso olhar é treinado esteticamente para reconhecer o belo nos adornos feitos pelos índios, mas todos os artefatos tinham uma função de luta, de resistência – para resistir, em última instância, à queda do céu”, observa Moacir.

ANTIGAMENTE FOMOS MUITOS
O vislumbre de resiliência já assumira contornos míticos em Ymá Nhandehetama, vídeo do artista paraense Armando Queiroz exibido na 31ª Bienal de São Paulo, em 2014. Nele, um indígena da etnia Guarani, Almires Martins, discorria sobre a Amazônia à medida que escurecia sua face. “Sonhei com a imagem de um rosto que desaparecia na escuridão. Quando conversei com Almires, ele me disse que, na cultura dele, apagar o rosto é sinal de luto. Foi um encontro de sensibilidades. Jamais utilizaria apenas um ‘rosto’ indígena; a questão era arregimentar possibilidades de sua fala sem me prevalecer, ou seja, lidar com a invisibilidade do outro sem me aproveitar dela”, pondera o artista, que investiga os processos colonizatórios da Amazônia desde os anos 2000.

Ymá Nhandehetama – “antigamente fomos muitos”, em Guarani – foi gravado de uma só vez; o texto é invenção de Almires, num jogo entre ficção e registro documental. “Ele foi boia-fria no Mato Grosso do Sul, filho de uma liderança indígena assassinada, tem as marcas da brutalidade no corpo. Tudo isso ativou sua lembrança e reativou a história das ocupações das Américas. Por ser um militante da causa indígena, com voz garantida dentro do círculo em que atua, ele compreendeu que poderia alcançar outras sensibilidades. É aí que vejo a potência do simbólico e a força do encontro como possibilidade de levar a questão indígena a lugares onde não é discutida”, acrescenta Queiroz.

Sob o mote Incerteza viva, a 32ª Bienal de São Paulo ocupou o pavilhão do Ibirapuera em 2016 e recebeu este debate. A obra Uma possível reversão de oportunidades perdidas, de Maria Thereza Alves, era composta de cartazes de conferências fictícias ministradas por especialistas e acadêmicos indígenas que, na realidade, nunca são protagonistas. Ao lado da Ágora: OcaTaperaTerreiro, de Bené Fonteles, denotava um posicionamento “artivista”, para usar o termo defendido por ele, autor da antológica performance/protesto de colocar, em 1996, um cocar na estátua da Justiça na Praça dos Três Poderes, em Brasília. Não era sua estreia na luta indígena. Em Armadilhas indígenas (1989/1990), a partir de ardis colocados pelos índios contra os invasores na Reserva do Vale do Guapoé (RO), Fonteles conclamou artistas, entre eles Iberê Camargo, Tomie Ohtake e Siron Franco, a conceber suas próprias emboscadas, expostas no Masp.

Paraense radicado em Brasília, o escritor, poeta e compositor busca ampliar a representatividade indígena. “Há uma carência que vem do próprio poder, sempre querendo manipular pessoas e situações consideradas frágeis. A obra de arte é livre, mas o cidadão/artista não pode se omitir ao que acontece no nível politico. O ‘artivismo’ que comecei nos anos 1980 não podia me deixar omisso. Não podemos esquecer que, na palavra poética, assim como em estética, está embutida a força ética. Política, poética e ética são as armas brancas do artista/poeta”, explica Fonteles. Ele concebeu encontros na Ágora, erigida em taipa e palha no térreo do Pavilhão da Bienal em contraste com a arquitetura de Oscar Niemeyer.

“Quis comer antropofagicamente o projeto modernista de Niemeyer. Era um espaço para as etnias culturais de indígenas, negros, mulatos, enfim, toda nossa mestiçagem, e para a memória cultural e espiritual do Brasil verdadeiro, fortalecido nas ativações por convidados muito especiais, no que chamei Conversas para adiar o fim do mundo. Não podemos permitir um apagamento de uma memória ancestral”, pontua Fonteles. Uma das Conversas… trouxe Ailton Krenak, Davi Kopenawa e aquela que talvez seja a síntese dos artistas indigenistas brasileiros a congregar estética e ativismo: Claudia Andujar.

CLAUDIA ANDUJAR
São mais de quatro décadas de afeto e compromisso entre os povos Yanomamis e a fotógrafa húngara, que chegou ao Brasil na década de 1950. Um vínculo simbiótico que se exprime nas milhares de fotografias feitas por ela desde 1971 (400 delas expostas na galeria que leva seu nome em Inhotim, aberta em novembro de 2015) e em um engajamento perene. Não à toa, Andujar, aos 85 anos, assim define essa iconografia: “Foi o trabalho mais importante que consegui fazer na vida, do ponto de vista de comunicação, através da fotografia”.

Em conversa com a Continente, ela reconta o episódio-chave que catalisou sua relação criativa e afetiva: “Fui para lá em 1971. Na época, não tinha ainda ameaças contra os Yanomamis. Eles eram um povo isolado. Em 1974, o governo militar decidiu que tinha que ocupar a Amazônia, com medo que os americanos invadissem. Decidiu-se construir uma rodovia que iria do Atlântico até o Pacífico. Uma parte dessa estrada, a Perimetral Norte, tinha que passar pela terra Yanomami. Foi a primeira invasão do território deles e foi terrível. Parte de uma região por onde passou essa estrada quase sumiu. As pessoas que moravam lá morreram de doenças trazidas pelos construtores da estrada. Eu estava lá e fiquei chocada. Vi uma tragédia terrível, que me lembrou o que aconteceu com os judeus na Hungria, que também morreram aos milhares. O que aconteceu aos Yanomamis, naquela época, me fez decidir lutar pela sobrevivência deles. Foi o que eu fiz durante muitos anos, até 1993, quando o governo brasileiro finalmente reconheceu e demarcou a sua terra. Fiquei numa luta contínua para não serem invadidos e morrerem”.

Há dezenas de imagens pungentes, obtidas antes de Andujar ser expulsa do território Yanomami por agentes da Funai, sob a alegação de “ser uma espiã americana”. Registros do contato brutal com o progresso em marcha no Brasil do “Ame-o ou deixe-o” – a exemplo da fotografia Nego Yanomami com um capacete da Camargo Corrêa, empresa construtora da Perimetral Norte (BR 211), de 1974. Contudo, o conjunto de maior força política de sua trajetória é Marcados (1981-1983), retratos de crianças, jovens, mulheres e homens indígenas a portar tabuletas numeradas para fins de identificação. A partir daí, sua atuação passou a ser cada vez incisiva – ela foi, por exemplo, uma das fundadoras da Comissão pela Criação do Parque Yanomami (CCPY).

“Marcados realmente marcaram algo de muito especial dentro do meu trabalho. Quando eu fotografei, na verdade, não pensei na força que teria. O meu pensamento era todo dirigido em relação a tentar criar um projeto de saúde para os Yanomamis, que estavam morrendo. Essa importância de mostrar os Marcados aconteceu mais tarde. Me surpreendeu, mas já não estou mais surpresa e entendo perfeitamente que seja a parte do meu trabalho que realmente marcou. Porque não só envolve fotografia. As fotos são um esforço para ajudá-los a sobreviver. Na verdade, foi uma iniciativa minha de tentar introduzir um projeto de saúde nos Yanomamis. Eles foram marcados por razões práticas, para ter números que poderiam ser utilizados nas fichas. O que também me chamou a atenção, mas isso mais tarde, foi a importância dessas fotos ligadas ao meu próprio passado. Meu pai era judeu. Foi marcado com números para levarem-no ao campo de concentração, onde morreu. Lá, na minha infância, aconteceu o contrário: meus familiares foram todos marcados para serem mortos. Na minha história dos Marcados Yanomamis, foi para eles sobreviverem”, rememora a fotógrafa.

No último 18 de março, Claudia Andujar assistiu à montagem do espetáculo Para que o céu não caia, da Lia Rodrigues Companhia de Dança. Ao seu lado, Davi Kopenawa, cujas profecias inspiraram a coreografia. “Foi uma performance de muita força. Todo mundo saiu de lá emocionado. A maioria das pessoas que foram lá eram jovens, mas, tudo bem, são os jovens que têm que levar em frente a política e entender o sentido da vida. Tem que realmente pensar em uma expressão cultural para que a juventude de hoje entenda a agonia dos índios. Eles têm direitos que devem que ser respeitados. E são seres humanos, como você e eu”, vaticina.

CONTRANARRATIVAS
É nos jovens e nas contranarrativas que a arte e a cultura são capazes de gerar outras possibilidades de leitura; no que também aposta o documentarista franco-brasileiro Vincent Carelli, diretor de Corumbiara (2009) e Martírio (2016). “Os amantes dos índios formam uma tribo por toda parte, em vários estratos sociais, mas, ainda assim, pequena. O desafio é ampliar e transpor esses guetos. Trazer a questão indígena de maneira mais consistente para o ensino é aspecto-chave para o país. Todo movimento institucional do país é para apagar a História. Não pode. O país tem uma história e os jovens precisam conhecê-la”, diz o criador da ONG Vídeo nas Aldeias, que, desde 1986, promove oficinas de vídeo em dezenas de territórios indígenas no país. Os números impressionam: são mais de 70 documentários no catálogo e dezenas de realizadores formados. Zezinho Yube, dos Huni Kuin do Acre, é um deles (leia depoimento dele na página 42).

Martírio é um testemunho político e um didático exercício cinematográfico que narra o excruciante passo a passo do que Vincent, 63 anos de idade e 47 de convivência com os povos indígenas brasileiros, descreve como “o genocídio contemporâneo dos Guarani-Kaiowá”. “O filme começa em 1988, quando eu passei a filmar as rezas, o início de um movimento político, de retomada. Quando veio a tragédia, me afetou pessoalmente. O Vídeo nas Aldeias já estava em uma grave crise financeira, mas eu não poderia ficar em casa enquanto a matança ocorria lá. Saí feito louco, sem dinheiro, para reatar os contatos. Queria saber onde é que tinha dado merda. Fui atrás da memória oral deles e dos documentos oficiais do Mato Grosso do Sul. É importante para a militância entender a raiz de tudo; o filme demostra que o processo colonial não cessou para os índios”, aponta Vincent, que adoeceu após as filmagens. “Esse grito de revolta vinha das tripas”.

O sonho do cineasta indigenista é investir em “sedução cultural”: “Através da arte, temos que povoar o imaginário brasileiro com a presença dos índios. Eles são nosso mito de origem. O Brasil, sem os índios, não será mais o Brasil”. Cada obra de arte, cada livro, filme, canção tocada na rádio Yandê (http://radioyande.com) – primeira emissora indígena do país, cada volume da Coleção Tembetá – que a Azougue Editorial encampa desde 2016, enfim, tudo que está por vir há de propiciar um novo horizonte para os indígenas, tirando-os do patamar do folclore para ratificá-los como sujeitos com voz e lugar de fato, seja na política, na televisão e nas exposições – oxalá em consonância com as energias dos xapiri, os espíritos da floresta, e a tempo de impedir o despencar do firmamento. 

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