Véspera

Wislawa, porque alguns gostam de poesia

TEXTO Adriana Dória Matos

30 de Junho de 2023

[conteúdo exclusivo Continente Online]

"Alguns –
ou seja nem todos.
Nem mesmo a maioria de todos, mas a minoria.
Sem contar a escola onde é obrigatório
e os próprios poetas
seriam talvez uns dois em mil.

Gostam –
mas também se gosta de canja de galinha,
gosta-se de galanteios e da cor azul,
gosta-se de um xale velho,
gosta-se de fazer o que se tem vontade
gosta-se de afagar um cão.

De poesia –
mas o que é isso, poesia.
Muita resposta vaga 
já foi dada a essa pergunta.
Pois eu não sei e não sei e me agarro a isso
como a uma tábua de salvação."

(Alguns gostam de poesia, de Wislawa Szymborska, publicado no livro Fim e começo, em 1993. Traduzido do polonês por Regina Przybycien, integra a coletânea Poemas, Companhia das Letras, 2011)  

Essa história de quantos gostam de poesia, evocada por Wislawa no poema acima transcrito, me lembrou um episódio ocorrido com meu filho, quando ele tinha uns 11 anos. Ele chegou em casa da escola maldizendo a professora de Português e Literatura e declarando que “odiava” poesia. Implorava por ajuda para fazer a tarefa que tinha sido passada por ela, porque não estava entendendo nada. O que havia ali para ele estar tão reativo? Quando sentei para ajudá-lo, entendi o porquê do desgosto do menino. Aquela tarefa só podia ter sido elaborada por quem não gosta de poesia, porque era um intragável exercício de contar linhas, sílabas, versos, rimas, como se um poema fosse um pacote de regras e normas de versificação. Como se ligar a algo que é tão distante do prazer de “afagar um cão”? Era preciso oferecer um antídoto urgente ao meu filho, mostrar que é possível gostar de poesia. 

Uso essa memória familiar como deixa para celebrar a poesia mais que gostável de Wislawa Szymborska, que nasceu há 100 anos, em 2 de julho de 1923, e faleceu em 1º de fevereiro de 2012, tendo vivido seus 88 anos numa Polônia marcada por terríveis acontecimentos históricos e regimes de exceção, como a Segunda Guerra, o Holocausto e o domínio soviético. O fato de ela ter recebido o Prêmio Nobel de Literatura em 1996 facilitou a expansão mundial de sua obra e a sua tradução para o nosso idioma. O que proponho em homenagem a Wislawa é uma voltinha por sua obra a partir de alguns dos livros lançados até aqui no Brasil que oferecem curadorias, seja de seus poemas, de colaborações para revistas literárias ou até de suas colagens. 

O que caracteriza essas expressões criativas é a militante negação de formalismos e afetações, muitas vezes fazendo uso de graça e ironia, tirando o peso das coisas, mesmo daquelas que já são por demais pesadas para que se contribua para piorá-las. Wislawa nos ensina a pensar sobre a existência, a morte, as guerras, os horrores, a história, a política. Escreve sobre o amor e o tempo, nossa relação com os animais e a natureza; sobre arte, poesia, a alegria da escrita, epifanias do dia a dia. Encontros, desencontros, memórias, sonhos. Ou seja, sobre nossos eternos temas, tratados com honestidade e desvelo. Quando a lemos, experimentamos um arrebatamento tranquilo. 

***

Se você, como eu, não lê o polonês, vai ter contato com a poesia de Wislawa a partir da tradução, embora os seus três livros de poesia publicados no Brasil (pela Companhia das Letras) sejam bilíngues e você possa fazer o exercício de aprender o polonês a partir deles (!!!). O bom é que os poemas foram vertidos direto do idioma original. O primeiro livro foi Poemas, um aperitivo lançado em 2011 que teve ótima repercussão. Naquele momento ela já conquistou admiradores com apenas 44 poemas, muito bem-escolhidos, apresentados e traduzidos por Regina Przybycien, que também fez tradução solo em Um amor feliz (2016) e se juntou a Gabriel Borowski em Para o meu coração num domingo (2020), esses dois com mais de 80 poemas reunidos. Um bom conjunto para conhecer Wislawa, que teve livros publicados entre 1957 e 2012. 

Como os poemas nessas edições brasileiras foram organizados em ordem cronológica, com indicação dos livros nos quais foram originalmente publicados, a gente percebe as mudanças que aconteceram na vida da poeta e no seu entorno político e histórico. Ao ler todo o conjunto, a gente percebe nela um modo de estar no mundo inquiridor e inquieto, um jeito de quem se perguntava sobre tudo, de quem prestava atenção nas coisas, como bem cabe à atividade literária e filosófica. E, o melhor, Wislawa se negava a ter respostas. Assim como nos últimos versos do poema Alguns gostam de poesia, ela reafirma o valor de não fechar questão no discurso que proferiu ao receber o prêmio Nobel, aos 73 anos. Num trecho desse discurso, que ela chamou de O poeta e o mundo, pontua:

“Por isso valorizo tanto estas duas pequenas palavras: ‘não sei”. Pequenas, mas de asas poderosas que expandem nossa vida por espaços contidos em nós mesmos e espaços nos quais está suspensa nossa minúscula Terra. (...) Também o poeta, se é um poeta de verdade, deve repetir constantemente para si mesmo: ‘não sei”. Cada poema seu é uma tentativa de resposta, mas assim que ele coloca o ponto final, já o espreita a dúvida, já começa a se dar conta de que aquela é uma resposta temporária e totalmente insuficiente. E assim tenta mais uma vez, e mais outra e depois os historiadores da literatura juntam com um grande clipe essas sucessivas provas de sua insatisfação consigo mesmo e chamam-nas de sua ‘obra’...”

E então, vamos pegar um clipe e juntar um pouco da poesia de Wislawa? A seleção a seguir é magrinha em relação ao tanto de estrelinhas de satisfação que eu fui desenhando na página de cada poema que me encantava enquanto eu lia esses livros maravilhosos. 

***

 A mulher de Lot

"Dizem que olhei para trás de curiosa.
Mas quem sabe eu também tinha outras razões.
Olhei para trás de pena pela tigela de prata.
Por distração – amarrando a tira da sandália.
Para não olhar mais para a nuca virtuosa
do meu marido Lot.
Pela súbita certeza de que seu eu morresse
ele nem diminuiria o passo.
Pela desobediência dos mansos.
Alerta à perseguição.
Afetada pelo silêncio, na esperança de Deus ter mudado de ideia.

Nossas duas filhas já sumiram para lá do cimo do morro.
Senti em mim a velhice. O afastamento.
A futilidade da errância. Sonolência.
Olhei para trás enquanto punha a trouxa no chão.
Olhei para trás por receio de onde pisar.
No meu caminho surgiram serpentes,
aranhas, ratos silvestres e filhotes de abutres.
Já não eram bons nem maus – simplesmente tudo que vivia
serpenteava ou pulava em pânico consorte.
Olhei para trás de solidão.
De vergonha de fugir às escondidas.
De vontade de gritar, de voltar.
Ou foi só quando um vento bateu,
despenteou meu cabelo e levantou meu vestido.
Tive a impressão de que me viam dos muros de Sodoma
e caíam na risada, uma vez, outra vez.

Olhei para trás de raiva.
Para me saciar de sua enorme ruína.
Olhei para trás por todas as razões mencionadas acima.
Olhei para trás sem querer.
Foi somente uma rocha que virou, roncando sob meus pés.
Foi uma fenda que de súbito me podou o passo.
Na beira trotava um hamster apoiado nas duas patas.
E foi então que ambos olhamos para trás.
Não, não. Eu continuava correndo,
me arrastava e levantava,
enquanto a escuridão não caiu do céu
e com ela o cascalho ardente e as aves mortas.
Sem poder respirar, rodopiei várias vezes.
Se alguém me visse, por certo acharia que eu dançava.
É concebível que meus olhos estivessem abertos.
É possível que ao cair meu rosto fitasse a cidade."

(de Um grande número, 1976, in: Poemas)

Possibilidades

Prefiro o cinema.
Prefiro os gatos.
Prefiro os carvalhos sobre o Warta.
Prefiro Dickens a Dostoiévski.
Prefiro-me gostando das pessoas
do que amando a humanidade.
Prefiro ter agulha e linha à mão.
Prefiro a cor verde.
Prefiro não achar
que a razão é culpada de tudo.
Prefiro as exceções.
Prefiro sair mais cedo.
Prefiro conversar sobre outra coisa com os médicos.
Prefiro as velhas ilustrações listradas.
Prefiro o ridículo de escrever poemas
ao ridículo de não escrevê-los.
Prefiro, no amor, os aniversários não marcados,
para celebrá-los todos os dias.
Prefiro os moralistas
que nada me prometem.
Prefiro a bondade astuta à confiante demais.
Prefiro a terra à paisana.
Prefiro os países conquistados aos conquistadores.
Prefiro guardar certa reserva.
Prefiro o inferno do caos ao inferno da ordem.
Prefiro os contos de Grimm às manchetes dos jornais.
Prefiro as folhas sem flores às flores sem folhas.
Prefiro os cães sem a cauda cortada.
Prefiro os olhos claros porque os tenho escuros.
Prefiro as gavetas.
Prefiro muitas coisas que não mencionei aqui
e muitas outras também não mencionadas.
Prefiro os zeros soltos
do que postos em fila para formar cifras.
Prefiro o tempo dos insetos ao das estrelas.
Prefiro bater na madeira.
Prefiro não perguntar quanto tempo ainda e quando.
Prefiro ponderar a própria possibilidade
do se ter sua razão.

(de Gente na ponte, 1986, in: Poemas)

 

Fim e começo

 

Depois de cada guerra
alguém tem que fazer a faxina.
Colocar uma certa ordem
que afinal não se faz sozinha.

Alguém tem que jogar o entulho
para o lado da estrada
para que possam passar
os carros carregados de corpos.

Alguém tem que se atolar
no lodo e nas cinzas
em molas de sofás
em cacos de vidro
e em trapos ensanguentados. 

Alguém tem que arrastar a viga
para apoiar a parede,
pôr a porta nos caixilhos,
envidraçar a janela.

A cena não rende foto
e leva anos.
E todas as câmeras já debandaram
para outra guerra.

As pontes têm que ser refeitas
e também as estações.
De tanto arregaçá-las,
as mangas ficarão em farrapos.
Alguém de vassoura na mão
ainda recorda como foi.
Alguém escuta
meneando a cabeça que se safou.
Mas ao seu redor
já começam a rondar
os que acham tudo muito chato. 

Às vezes alguém desenterra
de sob um arbusto
velhos argumentos enferrujados
e os arrasta para o lixão.

Os que sabiam
o que aqui se passou
devem dar lugar àqueles
que pouco sabem.
Ou menos que pouco.
E por fim nada mais que nada.

Na relva que cobriu
as causas e os efeitos
alguém deve se deitar
com um capim entre os dentes
e namorar as nuvens. 

(de Fim e começo, 1993, in: Poemas)

 

Natureza-morta com um balãozinho

Em vez da volta das lembranças
na hora de morrer
quero de volta
as coisas perdidas. 

Pela porta, janela, malas
sombrinhas, luvas, casaco,
para que eu possa dizer:
Para que tudo isso.

Alfinetes, este e aquele pente,
rosa de papel, barbante, faca,
para que eu possa dizer:
Nada disso me faz falta.

Esteja onde estiver, chave,
tente chegar a tempo,
para que eu possa dizer:
Ferrugem, minha cara, ferrugem.

Caia uma nuvem de atestados,
licenças, enquetes,
para que eu possa dizer:
Que lindo o sol se pondo. 

Relógio, aflore do rio
e permita que te segure na mão,
para que eu possa dizer:
Você finge ser a hora.

Vai aparecer também um balãozinho
levado pelo vento,
para que eu possa dizer:
Aqui não há crianças.

Voe pela janela aberta,
voe para o vasto mundo,
que alguém grite: Ó!
para que eu possa chorar.

 (de Chamando por Yeti, 1957, in: Um amor feliz)

 

Adolescente

Eu – adolescente?
Se de repente ela me aparecesse aqui, agora,
deveria saudá-la como a uma pessoa próxima,
mesmo que me pareça estranha e distante? 

Derramar uma lágrima, beijar a testa
somente pelo motivo
de termos a mesma data de nascimento?

Tanta dessemelhança entre nós
que talvez só os ossos sejam os mesmos, 
o formato do crânio, as órbitas.

Pois os olhos já parecem maiores,
os cílios longos, a estatura mais alta
e o corpo compactamente coberto
de pele lisa, sem defeito.

É verdade que nos unem parentes e amigos,
mas no seu mundo quase todos estão vivos
e no meu quase ninguém
desse círculo comum.

Tanto nos diferenciamos,
de coisas tão diversas falamos, pensamos.
Ela sabe pouco –
mas com absoluta convicção.

Eu sei muito mais –
mas sem certezas. 

Me mostra os seus versos,
escritos numa letra clara, caprichada,
que eu já não tenho há anos.

Leio esses versos, releio.
Bom, talvez só este,
se der para encurtar
e corrigir aqui e ali.

Para o resto não vejo futuro. 

A conversa não engata.
No seu relógio pobre
o tempo ainda é vacilante e barato.
No meu, muito mais caro e precioso.

Na despedida, nada: um sorriso casual
e nenhuma emoção.

Só quando some
e na pressa esquece o cachecol.

Um cachecol de pura lã,
com listras coloridas,
tricotado à mão para ela
pela nossa mãe.

 Eu o guardo ainda.

(de Aqui, 2009, in: Um amor feliz)

 

Para o meu coração num domingo

Te agradeço, coração meu,
por não se queixar, por se afanar
sem elogios, sem recompensa,
num desvelo inato.

Você tem setenta méritos por minuto.
Cada contração tua é como o lançar de uma canoa
no mar aberto
numa viagem ao redor do mundo. 

Te agradeço, coração meu,
porque sem cessar
você me retira do todo,
separada até no sonho.

Você cuida para que eu não sonhe demais
com o voo
para o qual não é preciso ter asas.

Te agradeço, coração meu,
por eu ter acordado de novo
e embora seja domingo,
dia de descanso,
sob as costelas
você manter o ritmo normal da semana. 

(de Muito divertido, 1967, in: Para o meu coração num domingo)

 

Tudo

Tudo –
palavra insolente e cheia de presunção
Deveria ser escrita entre aspas.
Finge que não omite nada,
que agrega, abrange, contém e tem.
E entretanto é somente
um farrapo de tormenta.

(de Instante, 2002, in: Para o meu coração num domingo)

 

E, para finalizar esta pequena seleção, uma vingançazinha através da pena de Wislawa contra aquela professora que tentou – inutilmente! – fazer com que meu filho odiasse poesia:

 

Medo do palco

Poetas e escritores.
É assim que se diz.
Logo, poetas não são escritores, então o quê – 

Os poetas são poesia, os escritores são prosa –

Na prosa pode caber tudo, inclusive a poesia –
mas na poesia deve haver só poesia –

De acordo com o cartaz que a anuncia
com o floreio art nouveau de um P maiúsculo,
inscrito nas cordas de uma lira alada,
eu deveria entrar voando, não andando – 

E não estaria melhor descalça
do que com esse sapato comum
batendo salto, rangendo,
desajeitado substituto de um anjo? – 

Se ao menos o vestido fosse mais longo, esvoaçante,
e os versos saíssem não da bolsa, mas da manga,
e versassem sobre a festa, o desfile, o sino solene,
dim dom
ab ab ba –

Mas lá no pódio já espreita uma mesinha,
meio de sessão espírita, com pés dourados,
e na mesinha esfumaça um castiçal –

De onde deduzo
que terei que ler à luz de velas
o que escrevi à luz de uma lâmpada comum
tac tac na máquina –

Sem me preocupar antes do tempo
se isto é poesia
e que poesia –

 Se aquela na qual a poesia é malvista –
Ou aquela que é bem-vista na prosa –

E que diferença é essa,
perceptível apenas na penumbra,
sobre o fundo de uma cortina bordô
com franjas violeta? 

(de Gente na ponte, 1986, in: Um amor feliz)

 

***

 

Ah, aproveito agora para me despedir desse espaço aqui na Continente Online. Como deixei de ser editora da revista Continente em junho, agora parto para outras paragens, outros espaços que acolham o meu amor pela literatura e os comentários que escrevo sobre ela. Espero encontrar vocês em breve. Darei notícias, de Véspera, garanto!

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*As opiniões expressas pelos autores não representam
necessariamente a opinião da revista Continente. 

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