Véspera

São todas cartas frustradas

‘A cidade e a casa’, de Natalia Ginzburg

TEXTO Adriana Dória Matos

27 de Março de 2023

Imagem Matheus Melo

[conteúdo exclusivo Continente Online]

“Quando escrevo um romance, quero somente narrar. Não parto de uma ideia, de uma afirmação. No início, existe um episódio, uma história, fatos, lugares… depois essas histórias se desatam e a esperança é que reflitam coisas existentes, que atinjam ‘a realidade’”
 

(Natalia Ginzburg, em entrevista a Severino Cesari, publicada em Il Manifesto, 18/12/1984) 

Li A cidade e a casa (Companhia das Letras, 2022, 298 pp) em meio a um turbilhão familiar gigante. Reencontrar Natalia Ginzburg nesse estado emocional intensificou, em mim, a identificação com uma autora que dedicou sua obra à construção de um primoroso léxico familiar. Entender e expressar as relações de família é uma coisa que essa italiana de Palermo realizou maravilhosamente, com a sua voz clara e precisa. Natalia Ginzburg produziu uma literatura de aparente simplicidade, quase aspereza, mas que vai dentro da gente com a sua perspicácia a respeito das relações humanas. 

A cidade e a casa é um romance epistolar, com cartas trocadas entre amigos e parentes num período em que não existiam os correios eletrônicos e as redes sociais azucrinando nos smartphones. O livro foi lançado em 1984, e os capítulos-correspondências indicam apenas remetentes, local, dia e mês em que foram escritos, mas a gente sabe que esse tipo de troca interpessoal só poderia acontecer num mundo diferente do de hoje e o texto de orelha trata de indicar um tempo narrativo circunscrito ao final dos anos 1970, início dos 1980. Saber disso, no entanto, é indiferente para o efeito da leitura. 

A leitura de cartas e diários – sejam reais ou ficcionais – nos traz o benefício da revelação de assuntos que seriam íntimos, o que, de cara, nos dá a sensação de adentrar segredos. Essa sensação é ampliada em A cidade e a casa porque são várias pessoas a escrever cartas umas às outras, tagarelando e comentando situações e memórias compartilhadas, muitas vezes num tom de fofoca e desaprovação. Os personagens centrais são Giuseppe e Lucrezia, em torno dos quais se juntam irmãos, maridos, esposas, filhos, filhas, amantes, amigos e empregados, num universo de relações que são mais convencionais que de ruptura, expressão de uma sociedade conservadora, nem um pouco anacrônica para o existir de agora. 

A palavra-chave que encontro para o andamento desse romance é dissolução, com uma carga forte de frustração. Tudo começa com a partida de Giuseppe, que decide deixar a Itália para ir viver com o irmão Ferruccio, nos Estados Unidos, e quem sabe realizar o plano de escrever um adiado romance. Ele deixa para trás laços de amizade com Lucrezia, de quem foi também amante, Piero (marido dela), a prima Roberta e os amigos Egisto (jornalista), Albina, Serena e o novato Ignacio Fegiz. Um nó é sua relação distante e precária com o filho Alberico. São essas pessoas que vão trocar cartas e gerar a trama das conturbadas relações subjetivas. 

Numa de suas cartas, Lucrezia escreve a Giuseppe (p.25-31):

"Albina me entregou a tua carta e me entregou também uma do Egisto. Revirou a bolsa com as suas garras esverdeadas de lagarto e tirou primeiro um lenço, depois um pente, depois um absorvente, e depois as duas cartas. Eu estava na cozinha e enfrascava o vinho com a minha sogra e com aquele rapaz faz-tudo que chegou dias atrás de Piazza Armerina e que realmente não sabe fazer nada.

Deixei-os ali e vim até o meu quarto, onde me tranquei à chave.

Como você é estranho. Não nos falamos direito há tanto tempo e do nada você me escreve uma longa carta. [...]

Em relação ao teu filho, queria dizer que se ele não vem se despedir antes da tua partida, você que deveria ir. Mas nem mesmo está considerando isso. Em pobres palavras, você está saindo de fininho. Em pobres palavras, você está desistindo dele. Deveria sentir um pouco de curiosidade, descobrir se está tudo bem em Berlim e como é esse filme. O que quer dizer com já tem vinte e cinco anos? Aos vinte e cinco anos ainda é possível sofrer por causa da ausência dos pais, até nos casos de quem prefere se distanciar por julgar que é bem melhor assim. Porém secretamente ficaria contente se os pais fossem atrás”. 

Mesmo em contextos pungentes, nada nessas cartas é dramático, lacrimoso ou abertamente beligerante. A ternura e o afeto são igualmente parcos. Assim como realiza em outras de suas narrativas, inclusive já com incursão parcial na estrutura epistolar em Caro Michele (1973), este romance criado por Ginzburg é econômico, as frases são curtas, diretas, de um prosaísmo incrivelmente sugestivo. 

 
A autora. Foto: Touring Club Italiano/Bridgeman Images/Divulgação

Embora cada um dos personagens reaja ao mundo de modo peculiar, as cartas – mesmo as mais longas – dedicam-se comumente a comentários ligeiros, descrições do cotidiano, rememorações de situações vividas e muito pouco a digressões ou reflexões acerca da vida. Existe nelas um humor melancólico por baixo de tudo e a ausência de eufemismos. O que é mistério ou profundidade se revela através de um apartamento que se coloca à venda, um prato que não se consegue executar com maestria, um comentário risível sobre a aparência de algum conhecido, da descrição das qualidades e defeitos de crianças. Tudo banal. Só que não. 

Acontece assim na carta que Giuseppe endereça ao filho Alberico (p.206):

"Roberta me telefonou e disse que a estreia do teu filme será em poucos dias. Meus parabéns, espero que seja um sucesso.

Recebo notícias tuas também de outras pessoas. Sei que você é muito ocupado e tem a casa sempre cheia de gente. Sei que come chocos e mexilhões marinados com frequência. Sei que escreve à máquina sem camisa, com chinelos vermelhos, com protetor auricular nas orelhas e a menina sobre os joelhos. Eu te vejo assim e é uma imagem reconfortante. Fico feliz que esteja trabalhando. Você usa a máquina de escrever, já eu escrevo à mão, como sabe. Escrevi um romance. O título é O nó. Naturalmente ficaria feliz se você lesse. 

Também, na última carta do romance, de Lucrezia para Giuseppe (p.275): 

“Sobre I., você dizia que sempre mantinha uma mão atrás das costas. É verdade. Notei aquela mão fechada atrás das costas, enquanto ele caminhava na direção da porta. Você dizia ‘sabe-se lá o que tem naquela mão’. Não tem nada naquela mão. Nada”. 

Presta atenção nas coisas do dia a dia, porque é nele que somos, muito mais do que nas elaborações sofisticadas que fazemos. É isso que martela A cidade e a casa. Enquanto o tempo passa entre uma correspondência e outra, muitos acontecimentos importantes se dão: mudanças de casa e cidade, casamentos, nascimentos, mortes e a vida, com suas pequenas virtudes

No ótimo posfácio que escreveu para o livro, a tradutora Iara Machado Pinheiro observa: “A estrutura do enredo do romance de um modo geral segue o trânsito entre o pequeno e o grande. As trajetórias singulares dos personagens contam uma história sobre como o ritmo da rotina dá um jeito de se impor, mesmo em tempos instáveis, quando os alicerces que regulavam as relações humanas vêm abaixo antes que os seus sucessores se esboçassem com clareza”. 

Natalia Ginzburg tem essa grandeza na simplicidade que vale muito a pena conhecer, neste ou em outros dos seus livros. Ela é como uma amiga sincera, e genial.

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*As opiniões expressas pelos autores não representam
necessariamente a opinião da revista Continente.

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