Pra não pegar ninguém de surpresa.
“Por que Véspera? Qual o conceito?”, a editora perguntou sobre o título da coluna.
A primeira resposta diz respeito ao tempo.
E ao desejo de contradizer o próprio tempo.
Quer dizer, a velocidade, a maquinaria veloz das coisas.Tudo é pra ontem, hoje.
Se você não der resposta rápida e de acordo com as urgências, parece que passou.
A primeira resposta (continuo) seria o desejo de contradizer a pressa.
A segunda justificativa é mais uma constatação: a de que tudo que será escrito aqui foi elaborado antes, e esse antes não quer ser passado.
Neste espaço, proponho a demora, como um descanso e uma calmaria.
Véspera pode ser também a admissão de que, no meio das coisas que parecem ter sido engolidas pelo Cronos Faminto, resta algo que a gente valoriza e quer dizer.
Na véspera, o prato se preparou e estamos aqui juntos para usufruir dele.
São coisas que vou juntando, vivendo, lendo, vendo e ofereço agora a você.
Além disso tudo, acho véspera uma palavra sonoríssima. Você acha?
Fique um pouco por aqui, não tenha pressa.
***
Parece um chiste o primeiro texto para esta coluna ser sobre um livro que se chama A previsão do tempo para navios. Mas não é. Este livro de Rob Packer (Círculo de Poemas, coedição Fósforo e Luna Parque, 2022) chama a gente pra dentro dele já pelo título: poesia e previsão do tempo para navios? A indagação se move para outro sentido quando ele propõe o tríptico para o título: A previsão do tempo para navios ou Meteoceanográficas ou Aviso de mau tempo. Aviso de mau tempo… Assim, entramos nas águas deste livro indagando que previsão do tempo pode trazer instabilidades, e para quem.
Vários pensamentos surgem quando percebemos que Rob utiliza o tão enigmático (para leigos, ou seja, a maioria de nós) quanto tradicional boletim meteorológico emitido pela rádio BBC para introduzir questões sensíveis da sua própria existência e problemáticas, do ponto de vista geopolítico. Esse movimento ele faz abrindo cada seção do livro com a tradução de trechos desses boletins, usando, para acentuar o anacronismo, a fonte tipográfica courier, emulando a datilografia em máquina de escrever.
A nacionalidade de Rob Packer é o elemento que dá sentido ao recurso temático e estilístico. Inglês, ele residiu por sete anos no Brasil (2011-2018), onde estabeleceu relações profissionais e afetivas. É um aspecto biográfico significativo porque está na base deste livro, escrito em português numa abordagem direta sobre aspectos sociais, éticos e políticos que tocam as relações históricas entre o Reino Unido, as colônias do império britânico e o Brasil.
A peculiaridade do autor, portanto, está em ele ser um anglófono escrevendo em português uma poesia que faz a aproximação entre os dois países não apenas pelo manejo dos idiomas, mas pelo cruzamento de situações (a maioria embaraçosas) que ligam Brasil e Inglaterra. Rob coloca juntas as coisas que se encrespam na história de ambos os países. O modo como realiza isso torna o livro tão pessoal e autobiográfico quanto reflexivo e crítico acerca dos acontecimentos. Assim, ansiedade e eleições, tráfico de pessoas e memórias de viagens da infância, dados geográficos e pequenas revelações pessoais vão compondo as camadas deste longo poema.
Li Previsão do tempo para navios como quem percorre uma noite, uma longa noite insone em que procuramos o alento de algo que nos relaxe enquanto não conseguimos dormir pela perturbação da nossa mente. Mesmo que haja claros, intervalos, manhãs e dias, o livro é uma noite cheia de lances que só se encerra com a Aurora. Essa leitura é subjetiva, mas o encadeamento do texto leva a essa percepção, ao principiar: “Quando penso no país onde nasci/ do que mais sinto saudade é a noite.// Às vezes a noite cai como um manto ameno e manso”.
O poeta sente saudade enquanto escreve a partir de um país solar e ruidoso: “Será que é o sol que brilha na janela?/ “O que dizem de lá me acorda a toda hora/ Vizinhos soltam cães que farejam as portas/ Tentamos dormir e o olho não fecha//(...) Tem matérias sem fim. Leio, odeio, continuo/ As telas iluminam e a noite é insone/ Um grito alegre explode num carro que corre –/ E quando nasce, o sol faz tanto barulho.”
Um boletim do tempo narrado na língua materna pode mesmo ser um truque para pegar no sono. Ainda mais com informações que não entendemos, porque feitas para navios e não para pessoas. Algo que não exige atenção, e nina. Você vai ficando sonolento… começa a cochilar… está dor min do… Como representar isso num texto poético?
E aí aparece um recurso gráfico bem-sacado, que são os trechos com “falhas” de impressão nos boletins meteorológicos. Ao uso da courier para sinalizar as entradas de boletins, que comentei há pouco, se soma a impressão de manchas de texto em subtons de preto, cinzas, quase brancos, que deixam apenas vestígios do que está sendo dito pelo locutor. São falhas de transmissão? Registros da sonolência do ouvinte? É um modo instigante de indicar lapsos na comunicação (ou na atenção) pelo rebaixamento da cor da fonte até o ponto do seu desaparecimento.
Mas, ao mesmo tempo em que o boletim entendido por poucos traz uma sensação de familiaridade que adormece, ele revela uma estratégia algo perversa de demarcar distinção a partir do idioma falado em certo tom e da forma “correta”. A superioridade britânica se manifesta pela impostação vocal.
A aquisição dessa consciência, tanto para Rob Packer quanto para outros migrantes, se dá pela fricção com diferentes culturas e idiomas, levando o poeta ao desconforto, a rever a própria história e, nela, a educação recebida. “No Brasil, as pessoas frequentemente ficam surpresas ao saber o quanto estudei de geografia do Brasil na escola. À época, fazíamos estudos de caso tanto sobre a geografia humana quanto física do país.// Nosso professor de geografia dizia que o colonialismo britânico tinha sido ‘majoritariamente positivo’. E acho que também considerava o caso brasileiro como um objeto de estudo menos polêmico, uma vez que o Brasil nunca fez parte do império britânico."
A partir desses lampejos, a consciência vai ficando cada vez mais aguçada e o poema avança numa rememoração de situações que incomodam e provocam autocrítica, um exercício nem sempre fácil, mas sempre necessário (e libertador). Com esse conteúdo bem-posicionado, A previsão do tempo para navios também flexiona a poesia e chama atenção para o poético que há em tudo, ainda mais nos assuntos e nas formas que a gente não costuma identificar como “poesia”. Há trechos de composição ao modo do verso livre, enquanto outros adotam o formato de anotação, relato, crônica e outras formas textuais.
Como migrante e, agora, estranho ao próprio território de origem, Rob – que vive em Berlim desde 2018 – também teme pela sua cidadania e pelas hostilidades que podem surgir contra ele e seu companheiro na Inglaterra. Ele escreve em On Hungerford Bridge:
Essa água carregada de lodo
bate ritmicamente nos postes
e começa a me chamar de volta
“Logo terá novos prédios ali,
novas linhas de trem para ir a casa”
e essa água começará a berrar alto.
Será expedida uma carta (Sedex)
com resmas de papéis autenticados
que leva a outra carta incompreensível.
As palavras que eu entendo
dizem apenas SOLICITAÇÃO DEFERIDA:
“Obriga-se ao cidadão britânico
que demonstre um rendimento mínimo
caso queira residir no país
vivendo com um cônjuge estrangeiro”.
Ou ao voltar a casa encontro a carta
que exige que ele deixe o país
e nossa vida conjunta imediatamente.
Temos medo de pendurar quadros
e arrumar os livros na estante,
quando é disso que fizemos a vida.
Resta só uma Inglaterra imaginada
que preenche o vazio de tantas vidas
desterradas e exiladas daqui
reverberando com os sons de poemas
e com os livros, enquanto eu subo
na “Ponte Vau da Fome” e peço ao Tâmisa:
“Por que não pode me acolher de novo
e me embrulhar em seu leito de maré baixa
para que meu corpo suma em seu lodo?”
Ninguém planeja a morte natural
longe da família. Os terapeutas
só tratam disso se for trauma, não lei.
E o rio continua com seus rabiscos,
imigrando e emigrando todo dia.
A única raiz que a água entende, flui.
Nas últimas páginas deste livro cheio de significados, quando finalmente o dia traz sua aurora, ficamos com as “conclusões” do poeta. Ele sabe da necessidade de fazermos perguntas, de nos questionarmos, ainda que nem sempre obtenhamos respostas satisfatórias. Nas traduções que faz dos boletins de navegação, por exemplo, ele traz acepções mais questionadoras para algumas palavras, como para Fair Isle, ponto geográfico escocês que ele traduz literalmente como Ilha Justa, num clamor metafórico para que se faça justiça (com reparações históricas, digamos). Que a justiça não tarde, é o que se deseja.
Como percebemos, para além da angústia, noites insones podem render indagações e alumbramentos pertinentes.
***
Conversa com Rob Packer, à guisa de um posfácio
Rob Packer. Foto: Amélie Baasner/Divulgação
Ao acabar a primeira leitura d’A previsão do tempo para navios, fiquei com vontade de conversar com Rob Packer, ultrapassar as bordas da minha leitura e me aproximar das motivações dele. No dia em que conversamos, ele estava no meio de uma temporada no Brasil, quando veio conhecer familiares do seu companheiro. Trago a seguir fragmentos da nossa videochamada que, acredito, são complementares à leitura do livro.
Rob Packer começou a escrever este livro em 2016, quando já vivia há um tempo no Brasil. Ele morou a maior parte dos sete a oito anos que esteve aqui no Rio de Janeiro, mas percorreu vários lugares do país e esteve em comunidades ribeirinhas do interior do Amazonas, sempre a trabalho. Para ele, 2016 é um ano-chave na história do Reino Unido, por conta do Brexit, como ficou conhecido o plebiscito que definiu a saída do país da União Europeia. Naquela época, conta, já estava com a ideia do livro na cabeça; havia em torno de 10 anos que não morava mais na Inglaterra.
“Ouvia o noticiário da BBC em podcast e pensava o quanto o país ia mudar com o Brexit.
Será que vou ser estrangeiro ao meu país também?” Para ele – que estudou Letras Alemãs e Italianas na Universidade de Cambridge e é mestre em Literatura Alemã pela Universidade Humboldt, de Berlim – o Brexit foi um acontecimento equivalente à eleição de Jair Bolsonaro no Brasil, mexeu com a imagem que tinha de si mesmo. “Quem sou eu, qual a minha identidade? E isso se acirrava pelo fato de eu estar fora do meu país, fora da minha casa. A sensação de que alguém trocou a chave da sua casa e a sua não serve mais.”
Um dos estranhamentos do poeta nesse trânsito entre a Inglaterra e o Brasil que fica evidente em A previsão do tempo para navios é a consciência da alienação a que são submetidos na escola os cidadãos britânicos. Rob cita Salman Rushdie, escritor britânico de origem muçulmana indiana, ao afirmar que “o problema com os ingleses é que sua história aconteceu no exterior através do mar, portanto eles não sabem o que essa história significa”.
“Falo sobre a educação cheia de lacunas. No meu colégio, por exemplo, eu estudei o mesmo período da história repetidas vezes. A gente aprendeu o período medieval, depois aprendeu sobre os séculos XVI e XVII, concentrando na cisão da Inglaterra da Europa católica, na Guerra Civil, Revolução Gloriosa. Aí pula para 1914, para a Primeira Guerra Mundial e vai até 1945, o período das duas guerras. É muito curioso que exista essa lacuna nos séculos XVIII e XIX, quando o Reino Unido estava se expandindo de forma sangrenta na África, na Ásia. Não aprendemos nada sobre isso, nem sobre o período pós-guerra. Então a gente não aprende sobre a expansão imperialista.”
“Acho que a questão da autocrítica é muito difícil”, disse Rob. “Também sei que nada que eu faça vai curar as feridas que existem, mas a forma que encontrei é explorar isso, repensar e, talvez, influenciar as pessoas a repensarem a condição do mundo. Temos todos que lidar com a história, estamos onde estamos por questões históricas.”
“Com essas lacunas na educação, na Inglaterra, a gente também não fica entendendo a composição étnico-racial do próprio país. Uma boa parte da população são filhos e netos de ex-colônias britânicas”, completa. “Como a gente não explora o período do pós-guerra, o colonialismo e o imperialismo, a gente não entende por que as pessoas foram convidadas a trabalhar no Reino Unido como cidadãos britânicos.”
Ele prossegue: “Enquanto eu estava escrevendo o livro, o que me afetou muito pessoalmente foi um escândalo, acho que foi em 2017, uma violência do Estado, que foi a deportação de muitas pessoas do Reino Unido para o Caribe. Pessoas que chegaram nos anos 1950 e 1960 ao Reino Unido vindo do Caribe, a Geração Windrush, que tem o nome de um navio que chegou principalmente da Jamaica. Um acontecimento que fez com que existisse uma cidade como Londres; eu não conheço uma cidade de Londres totalmente branca, isso não faz parte da cidade onde eu cresci”.
Essas situações conflituosas ficam rodando na cabeça de uma pessoa e provocam, entre outros distúrbios, a insônia. Como a gente precisa lidar com tudo isso, uma das formas que um escritor encontra é a transposição poética da realidade. Um dos trechos de A previsão do tempo para navios diz o seguinte: “Estou perdendo a habilidade de distinguir ‘o que o apresentador esconde/ atrás daquele sotaque da BBC.// Às vezes suponho que a voz vem da Escócia,// de Dorset,// de Gloucestershire,// de Armagh// ou da Jamaica,// do Gana,// da Polônia,// do Paquistão’”.
“Sobre o sotaque da BBC, existe em quase toda língua que é nacional, que é a versão oficial. No caso do inglês, é o da região de Oxford que é o sotaque da BBC”, me disse Rob. “Isso mudou nas últimas décadas, mas tem a ver com a elocução, com falar certo e o apagamento de identidades regionais e nacionais também. Sobretudo quando você ouve transmissões antigas, você pensa: ‘Que sotaque é esse?’”
Para concluir, vêm os trechos em que conversamos sobre a longa noite de insônia percebida com a leitura e a estratégia de indicar com recursos gráficos os lapsos na transmissão ou na escuta do boletim do tempo.
“Essa questão noite e dia era uma coisa que eu queria introduzir na estrutura, eu gosto muito do poema longo, tem muito espaço para desenvolver várias questões. Sobre a insônia, na época da escrita do livro, eu estava lendo muito o poeta sueco Tomas Tranströmer, que ganhou o Prêmio Nobel em 2011. Ele escreveu poemas curtos, que ficam nesse estado acordado e dormindo. Acho que foi uma grande influência para eu explorar a insônia.”
“A sequência dos boletins, eu estava pensando em como fazer isso. As falhas de transmissão, de um lado, têm todos os apagamentos da história, da geografia, os quais eu queria apontar mais adiante, na outra parte do livro. Mas tem a insônia também, o cochilo, quando você está dormindo tem certas palavras que você ouve ‘aumentando aumentando aumentando’” (ele cita um trecho da pág. 38).
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