Véspera

Por onde as mulheres andam

'Flâneuse – Mulheres que caminham pela cidade em Paris, Nova York, Tóquio, Veneza e Londres', de Lauren Elkin

TEXTO Adriana Dória Matos

10 de Maio de 2023

Toronto, 1937

Toronto, 1937

Foto City of Toronto Archives/Licenciável

[conteúdo exclusivo Continente Online] 

Quando coloquei os olhos neste livro, pensei: que perspectiva ótima, trazer o flâneur de novo pra cena a partir do recorte de gênero. Moderno, burguês, diletante por excelência, esse tipo urbano que perambulava pela cidade – um comportamento social que tomou forma no século XIX, na França, e ganhou adeptos pelo mundo afora – haveria de ter sua contraparte mulher. Quem trazia a proposta era a estadunidense Lauren Elkin, com Flâneuse – Mulheres que caminham pela cidade em Paris, Nova York, Tóquio, Veneza e Londres (Fósforo, tradução Denise Bottmann, 2022, 360 pp), num gesto oportuno de dar a ver quem tem passado pela história – dos homens – com muitas restrições à livre circulação.  

Mas logo me veio um pensamento restritivo. De que mulheres estamos falando? Quem de nós tem a liberdade de flanar pelas ruas? Porque a “arte de flanar”, além de um privilégio masculino, tem sido, mais que tudo, um privilégio de classe. Quantos trabalhadores e trabalhadoras podem se dar ao luxo de perambular em ociosidade, se o que mais fazem é trocar seu tempo por algum ganho financeiro?  

João do Rio, que foi um flâneur carioca bem-sucedido, escreveu para a conferência A rua (1905): “Flanar é ser vagabundo e refletir, é ser basbaque e comentar, ter o vírus da observação ligado ao da vadiagem. Flanar é ir por aí, de manhã, de dia, à noite, meter-se nas rodas da populaça”. Entre as várias definições, ele acrescenta: “Flanar é a distinção de perambular com inteligência”. Quase esnobe, não é? 

Em Flâneuse, Laura Elkin também define: “Figura de privilégio e ócio masculino, com tempo e dinheiro e nenhuma responsabilidade imediata que demande sua atenção, o flâneur entende a cidade como poucos, pois memorizou-a com os pés. Cada esquina, cada viela, cada escada é capaz de mergulhá-lo numa rêverie, um devaneio”.  


Imagem: Fósforo/Divulgação

Se, nos séculos XIX e XX, flanar havia sido um privilégio de homens com dinheiro, tempo de sobra, curiosidade para observar o seu entorno urbano e essa disponibilidade se estenderia apenas a mulheres nas mesmas condições sociais, intelectuais e sensíveis, quem seriam os flâneurs deste século XXI? Quem estaria se dedicando a andar ao acaso pelas ruas, sorvendo seus detalhes humanos e construtivos?  

Foi então que transportei a situação para o Recife, onde moro, e inquiri: quantas mulheres – desde as de classe média, tal qual o flâneur histórico, até as de diferentes estratos sociais, mas suficientemente imbuídas do espírito perscrutador diletante – se sentem à vontade nesta cidade para bater pernas sem se sentirem, de alguma forma, ameaçadas? Parece óbvio que a flânerie demanda desprendimento. Por que as mulheres desta cidade e de várias outras do Brasil não podem andar pelas ruas em paz? Por causa de um conjunto de fatores, mas o principal deles é que somos muito assediadas. Nós andamos com medo, e o medo contradiz o flanar. As mulheres, e não só elas, se refugiam da sensação de insegurança nos shoppings, espaço que substituiu a rua em nossas cidades americanizadas. 

O que acontece, ainda, é que muitas das cidades por onde poderíamos nos aventurar a flanar à cata de tesouros insuspeitos estão agonizantes, empobrecidas, desvalorizadas, em escombros (dê uma voltinha pelas regiões centrais do Recife e você vai constatar o quanto isso é real). 

Diante das confrontações com essa realidade desfavorável, há sempre o consolo de um lugar seguro no qual podemos nos mover junto a companhias instigantes. É isso que encontramos em Flâneuse, que questiona o status quo das cidades construídas para o livre trânsito dos homens. Embora a gente precise lembrar que a autora se refere a cidades mais seguras e preservadas que as nossas: Paris, Nova York, Tóquio, Veneza e Londres.

*** 

O ponto de partida de Lauren Elkin é pessoal, o livro traz a sua própria experiência como caminhante urbana, viajante cosmopolita, migrante e leitora. Então é um ensaio pessoal, um arranjo que ela fez de textos que foi produzindo e publicando, com conteúdos inéditos que amalgamam o conjunto. 

Ela foi criada num subúrbio nova-iorquino, em Long Island, e desenvolveu um desejo de andar a pé que a gente entende quando sabe o quanto os estadunidenses vivem dentro de carros. No capítulo Long Island – Nova York, ela conta como se deu a formação e migração de famílias para os subúrbios no seu país, na busca por um estilo de vida que desse mais conforto e segurança para seus membros (me lembrando muito da série Mad Men agora). 

Ao comentar sobre o hábito de os pais saírem sempre de carro, ela escreve: “Têm bons amigos que moram logo na outra quadra, talvez uns cinco minutos, no máximo sete minutos a pé, mas pegam o carro para ir visitá-los. É uma coisa difícil de explicar para pessoas que não moram num subúrbio: eu não ia querer que andassem a pé. Tudo bem se for de dia, mas a rua é cheia de subidas, descidas e curvas e a iluminação não é boa; os motoristas não imaginam que haja pedestres em ruas sem calçada. É de surpreender ver alguém andar na rua se não estiver com cachorro e roupa de ginástica. Especialmente raro é ver alguém caminhar nas vias principais, onde ficam as lojas. A pessoa, se não tem carro, pertence a uma estranha subclasse suburbana, a uma casta de intocáveis, visíveis apenas quando estão onde não deviam estar, andando à margem de uma estrada por onde outros passam de carro”.   

Quando estava na faculdade, em Nova York, Elkin descobriu outro modo de viver e passou a desconfiar de uma cultura totalmente baseada em veículos, concluindo que “uma cultura que não anda a pé é ruim para as mulheres”. “Tem um certo sentido autoritário; uma mulher que não divaga (...) não vaga, não se afasta da família.” Foi lendo escritoras, prestando atenção na cidade, conectando conhecimentos, presente e passado, pavimentando o pensamento crítico. “Quando passei a prestar atenção na cidade, percebi a história, a literatura e a política das mulheres, como se fosse impossível entender uma sem as outras.” A coisa ficou mais clara – e apaixonante – quando Elkin se mudou para Paris, para fazer uma pós-graduação, onde acabou por fixar residência e conseguir cidadania francesa. Ela estava, enfim, na cidade dos flâneurs

Por isso, boa parte dos capítulos de Flâneuse se refere a Paris e, em cada um deles, Lauren Elkin escolhe uma autora e sua obra – da literatura, do cinema e das artes visuais – para abordar a presença real e ficcional de mulheres na cidade, seus trânsitos, sua atuação e o valor disso para a revisão da história; são autoras e obras dos séculos XIX e XX. Sua seleção e seus escritos provocam insights e identificações, ainda que algumas passagens sejam excessivamente descritivas dos enredos das obras que ela escolheu tratar. Também há uma certa verborragia em relação ao que Elkin pensou, sentiu e anotou nas suas andanças, ou mesmo em relação aos procedimentos que adotou para realizá-las.  

Comento aqui três capítulos que, creio, fazem uma boa síntese da proposta da autora: Londres – Bloomsbury, Em toda parte – A vista do chão e Veneza – Obediência.  

*** 

Virginia Woolf bateu pernas por Londres e o prazer que sentia nesse hábito está registrado em seus romances, ensaios, diários. Elkin seguiu as pegadas deixadas pela escritora inglesa, indo atrás de vestígios materiais de sua presença em Bloomsbury e nas obras que escreveu. Quem quiser ler ou voltar à sua obra, este é um roteiro bem-traçado. Ela comenta: “Woolf explorava as ruas em busca de drama, preenchendo seus livros com as pessoas que observava, andando, fazendo compras, trabalhando, parando. Principalmente as mulheres; ao esboçar o personagem de uma mulher sentada à sua frente num trem, fez sua famosa declaração: ‘todos os romances começam com uma senhora que está na esquina em frente’. E comentou sobre uma moça numa loja: ‘eu preferiria antes saber a verdadeira história dela, do que a centésima quinquagésima biografia de Napoleão ou o septuagésimo estudo sobre Keats e o uso que faz da inversão miltoniana que o velho professor Z e seus seguidores estão preparando agora”. Também, Virginia, também. 

Um dos ensaios de VW citados por Elkin é Batendo pernas nas ruas, que foi publicado pela primeira vez na Yale Review, em outubro de 1927. Nele, a escritora conta como usa o pretexto de comprar lápis para sair de casa no final da tarde e explorar anonimamente as ruas. A cidade, suas gentes, seus movimentos, sua correria, seus transportes e serviços são a motivação moderna por excelência para a criação literária, e não foi diferente com Woolf que, neste texto, explicita seu privilégio de classe, aquele que comentamos sobre quais mulheres podiam se dar ao luxo de flanar. Ela observa a cidade com paixão e interesse, todo e qualquer fluxo, pessoa, edificação lhe causa excitação, contentamento. Ela anda como quem desobedece. “Isto é verdade: escapar é o maior dos prazeres”, escreve. 


Virginia Woolf em 1927. Foto: Autor desconhecido/
Wikimedia Commons/Domínio público

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Outra personalidade bem abordada em Flâneuse, no capítulo Em toda parte – A vista do chão, é a jornalista e escritora estadunidense Martha Gellhorn, que ficou conhecida pelo seu trabalho como correspondente de guerra e por ter sido casada com Ernest Hemingway. A gente conhece muitos homens correspondentes de guerra, como o amigo de Gellhorn, o fotógrafo Robert Capa, mas houve muitas mulheres nessa trincheira também. 

“Foi uma era dourada para as mulheres que ousavam viajar para longe, e nas livrarias havia pilhas de livros de viagem de Rebecca West, Emily Hahn, Olivia Manning, Gertrude Bell, Jane Bowles, Freya Stark, Dorothy Carrington e Alexandra David-Neel, com histórias que iam além e se diferenciavam do que se costumava chamar de ‘relato de viagem’. Gellhorn era uma dessas bravas viajantes escritoras, movidas pelo desejo de conhecer ‘mais o mundo e o que há nele’”, lista Elkin. 

As inquietações de Gellhorn, sua relação com Hemingway, o jornalismo, a cobertura de guerra e os atributos da escrita não ficcional da escritora são o tecido consistente deste capítulo, que nos leva ao interesse não apenas pela trajetória das autoras citadas, mas ao trabalho de campo feito por escritoras e jornalistas, em gêneros que vão da reportagem ao ensaísmo e à crônica. Tudo por conta de suas andanças pelo mundo. 

No Brasil, afastado geográfica e politicamente dos confrontos bélicos mundiais, temos escasso registro de mulheres cobrindo os acontecimentos nos campos de batalha, salvo a menção a Sylvia de Arruda Botelho Bittencourt, considerada nossa primeira correspondente de guerra, e a participação de jornalistas brasileiras em conflitos contemporâneos, como Adriana Carranca, Deborah Berlinck e Patrícia Campos Mello.  

Em 2009, tivemos uma edição brasileira, pela Objetiva, de A face da guerra, seleção de reportagens realizadas por Martha Gellhorn em campos de batalha da Espanha, da Segunda Guerra Mundial, do Vietnã, da invasão norte-americana do Panamá, entre outros conflitos. Assim como a maioria dos correspondentes internacionais, os textos dela foram primeiro publicados em revistas e jornais, para depois saírem em livros.  

Elkin cita trechos cotidianos, emocionantes e dramáticos da cobertura que Gellhorn fez da Guerra Civil Espanhola. Um deles está em A face da guerra

“Uma velha, com xale nos ombros, segurando pela mão um menininho magro apavorado, vem correndo pela praça. A gente sabe o que está pensando: pensa que precisa levar o menino para casa, estamos sempre mais seguros em casa, com as coisas que conhecemos. De certo modo, a gente não acredita que vão nos matar quando estamos sentados na sala, nunca pensamos isso. Ela está no meio da praça quando vem a próxima. 

Uma pequena peça de aço retorcido, fervente e muito aguçada, se solta da bomba; acerta o menininho na garganta. A senhora fica ali parada, segurando a mão do menino morto, olhando-o perplexa, sem dizer nada, e alguns homens correm até ela para carregar a criança. À esquerda deles, no canto da praça, um enorme cartaz reluzente diz: Saiam de Madri”. 

A emoção se acende em nós ao lermos textos como este, independentemente do tempo que transcorreu entre ele e a gente. A construção textual tem mérito nisso, pois Gellhorn soube dar o peso que a cena tristíssima por ela presenciada exigia.  

Elkin traz para junto de si outras mulheres aguerridas, que presenciaram e participaram de revoltas, batalhas, revoluções pessoais e coletivas, a exemplo da escritora George Sand, pseudônimo de Amantine Lucile Aurore Dupin, cuja história é contada no capítulo Paris – Filhas da revolução. Mas deixemos Sand à sua espera nas páginas do livro e nos transportemos para as ruas de Veneza, perseguindo os passos de Sophie Calle.

***

Assim como nos demais capítulos, em Veneza – Obediência, Elkin parte de si para chegar a alguma escritora, artista visual ou cineasta (ela aborda Agnès Varda e seus filmes em outro capítulo, Paris – Bairro). Neste, ela começa contando que, no período do doutorado, passou dois anos escrevendo um romance sobre Veneza, em vez de escrever a tese. Nos seus rolês pela cidade aquática, ela visita uma das edições da Bienal de Veneza e tem um encontro marcante com a obra de Sophie Calle. E é sobre a Suite vénitienne, que a francesa realizou no início de 1980, que Elkin vai se deter. 

A história dessa obra é realmente incrível. Calle já vinha seguindo pessoas pelas ruas na França. Um dia, ela encontra, na abertura de uma exposição, um homem que havia seguido durante o dia. Entende aquilo como um sinal e fica sabendo, numa conversa com ele na galeria, que no dia seguinte ele iria para Veneza. Decide segui-lo. A Suíte veneziana é o registro dessa performance obsessiva que dura duas semanas, em que a artista cumpre a regra autoimposta de seguir essa pessoa, que vai chamar de Henri B., por uma cidade que desconhece e sequer sabe onde ele estará hospedado. Vai realizar um trabalho de detetive, até encontrá-lo. E ela anota tudo, e tudo vai se tornar essa obra de arte da perseguição. 

“Depois que Calle encontrou o homem, o itinerário dele se torna o dela; a Veneza dele se torna a dela”, escreve Elkin. “Calle anota todas as ruas que percorrem (pois ele está com a esposa, que usa um lenço florido na cabeça), as vitrines onde param e olham, as fotos que tira. Calle o imita, tirando fotos onde tira, parando onde para e, conforme traça o caminho dele em seu caderno, ela mesma se inscreve por toda a cidade e na trajetória dele.” A obra da artista guia as reflexões de Elkin a respeito de si e as derivas que empreende por Veneza, as conexões que faz dessa sua experiência com as leituras em curso, as coisas que pensa ao longo da jornada. Não é assim que ocorre conosco, quando colocamos em conexão cada uma das coisas que estamos fazendo, vivendo, pensando? 

Na Antiguidade, Aristóteles propôs que exercitássemos o pensar de forma peripatética, andando, pensando, andando. Ao fazermos isso despretensiosamente, no meio da multidão, como flâneurs e flâneuses, atualizamos a proposta filosófica para a modernidade. Na pós-modernidade, vale a pena refletir sobre que caminhantes nos tornamos. Se estamos dando tempo suficiente ao nosso livre-pensar, se estamos deixando nossa mente vagar, e não ser guiada pelos algoritmos. Para as mulheres, como temos visto, o caminho ainda é árduo, ainda oferece obstáculos. Mas as ruas e estradas estão pavimentadas, nós temos histórias incríveis de mulheres caminhantes a nos guiar.

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*As opiniões expressas pelos autores não representam
necessariamente a opinião da revista Continente. 

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