Resenha

Tem sabor de fel

Fazendo um convite para falar sobre o comércio da fé e o dinheiro em nossas vidas, Pedro Vilela e Alexandre Dal Farra fazem de 'Altíssimo' uma peça urgente para os dias atuais

TEXTO Durval Cristóvão

18 de Outubro de 2017

Pedro Vilela em seu primeiro solo de teatro, intitulado 'Altíssimo'. Será que ele será salvo?

Pedro Vilela em seu primeiro solo de teatro, intitulado 'Altíssimo'. Será que ele será salvo?

Foto Luiz Pessoa/Divulgação

À maneira de JesusAltíssimo, o primeiro espetáculo solo de Pedro Vilela, denuncia publicamente quem são os Fariseus. Mas não se engane (pois pode até parecer fácil eleger um bode expiatório para se eximir da culpa): todos nós, cristãos ou não, estamos com as mãos sujas. Somos fiéis de uma religião em que a culpa é o débito, e a fé, o seu crédito. Agora, todo dia é dia de rito! O dinheiro é o nosso deus, e os bancos são as nossas igrejas. Essa religião, irmãos, é o que nos une.

Em um texto chamado Capitalismo como religião, o filósofo Walter Benjamin considera que o capitalismo ocupou o lugar da religião, mas com uma cruel diferença: o culto, na religião do capitalismo, não tem nem sonho nem piedade. Nessa religião, a transcendência de Deus decai, mas ele não está morto. Giorgio Agamben completa: “O capitalismo é uma religião que tem como objeto o dinheiro, e como liturgia, o trabalho”. Na última cena do espetáculo, o ator Pedro Vilela tenta acabar com o que chama de “resíduo último de Deus”: o dinheiro. Essa é a grande blasfêmia do espétáculo, passível até de ser considerado um crime.

Vilela dá vida às multiplas vozes criadas pelo dramaturgo Alexandre Dal Farra. Um homem está parado sobre o palco e uma luz incide sobre ele. Ouvimos, desde o foyer do teatro, saindo pelas caixas de som, trechos do Evangelho de São Mateus, ditos em um carregado sotaque português. Esse recurso, o do sotaque português, gera um estranhamento e me faz pensar sobre como o cristianismo desembarcou em nossas costas. “Escribas e fariseus hipócritas! Desprezas o mais importante da lei, o juízo, a misericórdia e a fé”, essas palavras dizem muito sobre o espetáculo que veríamos a seguir.

O homem que está parado sobre o palco se transforma em um pastor evangélico e nos coloca a seguinte questão: em um culto religioso, o que é preciso dizer e fazer para arrebanhar fiéis? O pastor explicita o modo como deveria se comportar e nos diz o que deveria ser dito. Os fiéis precisam crer que o sofrimento deles se assemelha ao de um deus encarnado, que durante a sua aventura terrena experimentou a condição humana da pior forma possível, mas, ao final, obteve uma gloriosa vitória. O rebanho deve ficar feliz com a sua condição miserável e criar uma união em torno do seu sofrimento. Assim, tudo parecerá mais simples.


Pedro Vilela em Altíssimo. Foto: Luiz Pessoa/Divulgação

Jack Miles, crítico literário, o homem que ousou escrever a biografia de Deus, disse: “Deus é como um ator que foi chamado para substituir um elenco inteiro”. Do Antigo ao Novo Testamento, as contradições do personagem mais importante da Bíblia apontam para uma complicada exegese. Mesmo os teólogos, homens de fé mais preparados, só conseguem responder certas perguntas recorrendo à ideia do mistério.

No Brasil, a partir da década de 1970, as igrejas neopentecostais tiveram um crescimento assustador. Pastores inspirados pela face de Deus que mais lhes agrada fundam uma nova igreja a cada esquina – o ethos do pastor é o ethos da igreja. Quanto maior for a miséria da população e a ausência ou a omissão do Estado, maiores serão as chances dessas igrejas proliferarem descontroladamente. Essas denominações religiosas, as neopentecostais, se caracterizam pelo sincretismo, e por investir em ações fora da igreja, tais como: atividades políticas, culturais, empresariais e assistenciais. O espetáculo Altíssimo é urgente porque trata dessas questões que nós, descrentes dos deuses deles, insistimos em arrastar para debaixo do tapete.

O homem que deu voz ao pastor agora se prepara para um número de karaokê. Ele canta uma conhecida canção, Sabor de mel, de Damares, cantora e compositora gospel. A plateia festeja esse momento, canta e até bate palmas. Será que nos identificamos com o que superficialmente poderia parecer uma cena debochada? Antes da conhecida proclamação da morte de Deus, proferida por Nietzsche, muita gente já tentou matá-lo. Um libertino francês, famoso por seus desregramentos, o Marquês de Sade, já pensava em um método para acabar com Deus. Em sua obra Filosofia na alcôva, nos diz que “os sarcasmos de Juliano prejudicaram mais a religião cristã do que todos os suplícios de Nero”. Então, com o objetivo de combater a religião, que fundamenta a moralidade, o deboche deveria ser usado como principal arma para destruí-la. Há no deboche, segundo Roland Barthes, um princípio de delicadeza, e essa delicadeza é pura perversão. Não é à toa que, para as igrejas, é mais fácil perdoar pecados do que tolerar heresias. Será que Pedro Vilela será salvo?


Pedro Vilela em Altíssimo. Foto: Luiz Pessoa/Divulgação

O espetáculo se cerca de cuidados para não tropeçar nos tapetes da etiqueta; quero dizer: para não desrespeitar a fé dos outros. Lembro-me de Pascal e penso: afinal, que mal há em ter um pouco de fé? Vai que o inferno realmente exista. Mesmo quando parece se inclinar para o deboche, como na cena do karaokê, o ator faz questão de deixar uma espécie de nota explicativa; como um à parte, ele desce do palco e diz, com outras palavras, invejar a força sobre-humana desses homens e mulheres de fé que acreditam em uma vitória com sabor mel.

A dramaturgia de Alexandre Dal Farra, em muitos momentos, se confunde com os anseios e as inquietações do ator Pedro Vilela, amalgamados, os dois, nos convidam para conversar sobre um tema antiquíssimo, mas que permanece urgente: o comércio da fé.

O homem que cantou no karaokê agora puxa uma cadeira e senta mais perto do público. Ele desata os nós do sapato para falar de si. No telão, atrás dele, Pedro Vilela é apagado dos lugares e dos grupos nos quais comungou um dia. Enquanto fala, desaparece da igreja, da família, da escola, dos amigos, do grupo de teatro que fez parte por muitos anos. Lembrei-me de um trecho do poema Pecado original, de Fernando Pessoa: “Sou quem falhei ser./ Somos todos quem nos supusemos./ A nossa realidade é o que não conseguimos nunca”.

De repente, um ponto zero, uma oportunidade para um recomeço. O homem encontra um dinheiro no bolso, R$ 50. O espetáculo tem seu ponto de virada e caminha para o seu clímax, agora tudo parece mais rock ‘n’ roll. Os momentos de fala diminuem, e o ator passa a criar mais imagens no espaço; os símbolos cristãos se misturam, o sal da terra se espalha, o cordeiro é imolado, e o batismo é de água e sangue.

Apesar de conter algumas cenas mais explosivas, Altíssimo, ao que me parece, propicia ao espectador uma recepção mais fria, racional, menos calorosa. O que não considero necessariamente um ponto negativo. Afinal, a compreensão exige a participação de todos os sentidos, portanto não há nada que se dirija exclusivamente à razão. Além disso, a razão nos é própria, como os outros sentidos são. O espetáculo me pegou pela cabeça, não pelo coração.


Pedro Vilela em Altíssimo. Foto: Luiz Pessoa/Divulgação

Não há cenário, mas alguns objetos de cena. Muitas garrafas de água mineral, microfones no chão, microfones em um pequeno pedestal, uma cadeira, uma garrafa de vinho, uma taça, um quadro para projeção de imagens, um tecido, um cordeiro e um monte feito de sal no centro palco. Eu senti que havia uma pobreza ali, um vazio típico dessas igrejas arranjadas em pequenas garagens, essa sensação me acompanhou durante o espetáculo. Por mais que o espaço, quero dizer, o teatro, quisesse apontar para uma outra pobreza, aquela que acompanha o ofício dos atores de teatro, uma pobreza mais nobre, espiritual, não era essa a que eu via na cena. A pobreza que eu via era mais triste, como quando eu passo em frente a essas igrejas sem curvas e sem cores. Nesse contexto, a iluminação assinada por Pedro Vilela desempenha um papel fundamental na criação dos ambientes em que a fábula se desenrola. A consultoria artística é de Marcondes Lima, a assistência de encenação é de Thiago Liberdade e a produção, de Mariana Rusu.

Tem muito pensamento no jogo de Altíssimo, sugiro que você vá mergulhar nessa criação. O espetáculo ficará em cartaz no Teatro Arraial Ariano Suassuna até 21 de outubro.

DURVAL CRISTÓVÃO, diretor e ator teatral, professor de Teatro e Filosofia.

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