Resenha

Rebecca e seus fantasmas

Filme de Hitchcock que ganhou o Oscar em 1941 ganha ‘remake’ pela Netflix e é nosso pretexto para reacender uma controvérsia curiosíssima relacionada ao livro em que se baseou

TEXTO Thamara Amorim

30 de Outubro de 2020

 Lily James é Mrs. de Winter no filme de 2020

Lily James é Mrs. de Winter no filme de 2020

Foto Divulgação

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Desde que a Netflix anunciou seu remake do clássico Rebecca, a mulher inesquecível (1940), de Alfred Hitchcock, nós, bem como a personagem Mrs. de Winter, sonhamos em voltar a Manderley. Sob uma atmosfera onírica, a última esposa de Maxim reencontra a mansão que os assombrara, quando ainda eram recém-casados, anos depois de a terem deixado. A casa, no entanto, não é mais a extraordinária estampa para cartões-postais, qual outrora havia sido: a floresta, que mansamente cercava Manderley, agora a toma por completo, embora suas “misteriosas e taciturnas” paredes resistam bravamente. É assim que Mrs. de Winter percebe que seu sonho de rever Manderley é, na realidade, um pesadelo, apesar de não se livrar da fascinação que ainda tem pela casa. Pois, da mesma maneira, a nova adaptação de Rebecca (2020), dirigida por Ben Wheatley – que em um primeiro momento parecia auspiciosa aos fãs da antiga versão estrelada por Joan Fontaine e Lawrence Olivier – é, na verdade, um tormento audiovisual.

Decerto, não é sem receio que encaramos a perspectiva de uma adaptação de qualquer filme clássico, sobretudo quando o longa tem tamanha reputação: Rebecca foi –surpreendentemente – a única obra de Hitchcock a ganhar um Oscar de melhor filme, além de ser considerado, por muitos fãs e críticos, como o mais inteligente longa do diretor, talvez por seu suspense sutil, mais subentendido que explícito. Tal sutileza se reflete nas sagazes atuações de Fontaine (Mrs. de Winter) e Olivier (Maxim de Winter) que, em conjunto com o panorama esotérico e um ótimo trabalho de cinematografia, dispensam quaisquer exageros e artificialismos. Logo, o trailer inestético deste novo remake já era um grande prenúncio do desastre a vir, mas o filme, em si, supera-se em cafonice e melodrama. Nem sequer Manderley, apesar da boa escolha de cenário, conserva seu mistério. O elenco principal, composto por Lily James (Mrs. de Winter) e Armie Hammer (Maxim de Winter), a despeito da popularidade de ambos, acrescenta pouca vitalidade à obra, com atuações bastante enfadonhas (quanta insipidez no Maxim de Hammer!). A exceção é a atriz Kristin S. Thomas, que faz um trabalho notável como Mrs. Danvers, a governanta do casarão. Portanto, toda soturnidade gótica que atrai em Rebecca está perdida em duas tediosas horas de “suspense” espalhafatoso, tensão sexual desnecessária e, pelo menos, belos figurinos.


Cena de Rebecca de Hitchcock. Imagem: Reprodução

UMA VELHA POLÊMICA VOLTA A ASSOMBRAR
Ora, tamanho fracasso não requereria muitos comentários – não raro, Hollywood insiste em péssimos remakes – se não fosse pelo reacender de uma controvérsia curiosíssima: Rebecca é inspirado em um romance homônimo da autora inglesa Daphne du Maurier, acusada de plágio diversas vezes. A história não é das mais singulares – uma jovem casa-se com um viúvo rico e passa a morar na casa dele, ainda saturada de memórias da outra, a primeira esposa, personagem excessivamente presente, embora oculta; não é à toa que o romance se chama Rebecca, nome da esposa falecida, enquanto a última Mrs. de Winter sequer é nomeada antes do casamento. Para citar apenas alguns livros com temática análoga, em terras brasileiras, temos Encarnação, de José de Alencar, A intrusa, de Júlia Lopes de Almeida, e A sucessora, de Carolina Nabuco. Lá fora, outros livros com narrativas semelhantes foram apontados como objeto de plágio ou, pelo menos, inspiração para a obra mais famosa de Du Maurier. A escritora chegou a ir à corte para defender seu romance de ser uma cópia de Blind windows, da norte-americana Edwina MacDonald. A autora de Rebecca venceu o pleito.

O paralelo entre o romance e Jane Eyre, de Charlotte Brontë, é uma questão corrente entre leitores e críticos. Angela Carter escreveu, em seu Expletives deleted, que Rebecca “duplicou descaradamente” o plot do livro vitoriano. Daphne du Marier jamais confirmou ter se inspirado na obra de Charlotte, mas sempre foi declaradamente admiradora das irmãs Brontë, tendo, a propósito, escrito uma biografia do irmão delas, The infernal world of Branwell Brontë. Seguramente, há muito de Jane Eyre em Rebecca, e é possível associar cada um dos personagens facilmente: Jane é uma versão mais sólida de Mrs. de Winter; Mr. Rochester é Maxim; e Rebecca é, categoricamente, Bertha Mason, ainda que seu final no livro de Charlotte Brontë caiba, no de Du Marier, à Mrs. Danvers: a governanta de Rebecca – bem como Mason faz em Thornfield Hall – põe fogo em Manderley e, supostamente, suicida-se no local.

Entretanto, é a simetria indiscutível entre o romance da escritora inglesa e A sucessora, de Carolina Nabuco, que se configura como a evidência mais relevante em meio a tantas dúvidas e impasses. A primeira ficção da filha do diplomata e escritor Joaquim Nabuco tem um enredo similar aos outros livros acima citados: Marina casa-se com Roberto e muda-se para o palacete de Paissandu, onde a figura da finada Alice, sua predecessora, faz-se ainda presente e opressiva em cada detalhe. Em especial, Marina desenvolve uma obsessão terrível pelo retrato da falecida, que a assombra com o mesmo êxito que Mrs. Danvers à Mrs. de Winter. Contudo, apesar da matéria acerca da primeira esposa não ser, de maneira alguma, original na literatura, o paralelismo entre os dois romances é espantoso — há tantas semelhanças, em personagens, pequenos acontecimentos e inúmeros diálogos, que chega a ser cansativo contá-las. O caso, claro, gerou um debate, ainda longe de desfecho: Daphne du Maurier plagiou o romance de Carolina Nabuco?



Há alguns indicativos para a resposta da indagação acima. Em 1941, depois que Carolina Nabuco foi a público com a acusação do plágio, o ensaísta pernambucano Álvaro Lins, que à época era crítico titular do importante Correio da Manhã, comparou os dois romances em seu rodapé semanal. O texto aponta várias paridades entre os livros, e Lins chegou à conclusão de que “Rebecca é, essencialmente, A Sucessora da sra. Carolina Nabuco”. O The New York Times também escreveu uma matéria sobre as afinidades “extraordinárias” entre o best-seller inglês e o livro da escritora brasileira. Curiosamente, antes do lançamento do filme de Hitchcock, em 1940, um advogado da produtora procurou Carolina para que ela assinasse um documento, em troca de uma “quantia patrimonial”, afirmando que a correspondência entre os livros era apenas uma coincidência. Numa entrevista ao Fantástico, em 1978, tal qual escreveu em seu livro Oito décadas, a autora disse ter recusado a solicitação, mas afirmou nunca ter processado, efetivamente, a escritora inglesa.

“A LITERATURA NASCE DA LITERATURA”?
Daphne du Maurier jamais admitiu ter sequer lido A sucessora. Contudo, é certo que Carolina Nabuco escreveu o livro em inglês e mandou para editoras norte-americanas com o pedido de que fosse enviado a editoras britânicas, e, em uma delas, Du Maurier trabalhava. Assim, é provável que ela tenha, de fato, lido A sucessora. As datas de publicação também são um indício notável: o livro de Nabuco foi publicado em 1934 e, Rebecca, em 1938, só quatro anos depois. Ademais, não se passa despercebida a mudança de forma na escrita da autora de Rebecca que, bem como A sucessora, é um romance psicológico. O livro é amplamente considerado pela crítica o melhor de Daphne du Maurier que, anteriormente, escrevia narrativas mais policialescas e, literariamente, menos complexas. Porém, o final de Rebecca transforma-se, de maneira inesperada, em um novelão detetivesco intenso, muito diferente do anticlímax final de A sucessora. Ainda assim, tal qual disse Álvaro Lins, até mesmo essa diferença fora conjecturada no romance de Nabuco: Marina teria um desejo irracional de que o palácio de Paissandu queimasse para além de reparos; afora a suspeita, sem provas, de que Alice não havia sido uma boa esposa.

Com efeito, não é atípico que haja paralelos visíveis em duas, ou mais, obras literárias; e estabelecer, definitivamente, um plágio não é tarefa simples. Sem dúvidas, como escreveu Leyla Perrone Moisés, a “literatura nasce da literatura”, mas até que ponto aceitamos uma apropriação literária como influência, ou simplesmente desmascaramos uma cópia? Assim, há quem defenda e há quem condene Daphne du Maurier. Aliás, agora que ambas as escritoras estão mortas, o caso fica cada vez mais distante de uma conclusão definitiva. Portanto, a discussão permanece irresoluta — como um fantasma que resiste a abandonar sua velha casa.



THAMARA AMORIM é jornalista e colunista do Café Colombo. Graduanda em Comunicação Social na UFPE. Escreve um pouco sobre literatura clássica e contemporânea, nacional e estrangeira. Mas (quase) sempre sobre literatura

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