Resenha

‘A serpente’ entre o palco e a tela

Marcando a volta de Lucélia Santos ao cinema brasileiro, depois de 10 anos, filme de Jura Capela transpõe dramaturgia de Nelson Rodrigues em meio a uma leva de filmes pernambucanos

TEXTO Bruno Albertim

03 de Setembro de 2019

No drama rodrigueano, a atriz Lucélia Santos contracena com Matheus Nachtergaele

No drama rodrigueano, a atriz Lucélia Santos contracena com Matheus Nachtergaele

Foto Jura Filmes/Divulgação

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A
serpente foi o primeiro texto de teatro esboçado por Nelson Rodrigues. Curiosamente, o último a ser publicado. Ali, estão as ideias, ou melhor, as obsessões que fariam do autor um Dostoiévski da língua portuguesa no Brasil: o escrutínio minucioso da ambiguidade humana, o diagnóstico das paixões violentas rompendo a rigidez de convenções, a evidência de hipocrisias num moto-contínuo de vários textos que, como em todo grande criador, comporiam, todos, uma única grande obra. A serpente é, agora, a base do terceiro longa-metragem do diretor Jura Capela, voz de dicção singular no panorama do cinema pernambucano, ainda o de maior densidade autoral no Brasil.

Dois anos depois de filmado e de estreias no Rio de Janeiro e em São Paulo, A serpente está em cartaz no Cinema São Luiz, no Recife. Sua presença acontece num momento de confluência de obras de alguns dos principais realizadores pernambucanos: Divino amor (Gabriel Machado), Estou me guardando pra quando o Carnaval chegar (Marcelo Gomes) e o cultuado Bacurau (de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles), que traz na bagagem o Prêmio do Júri no Festival de Cannes, em 2019, e uma bilheteria acima da média desde sua estreia (29/8). Talvez, por isso, A serpente tenha tido uma estreia menos ruidosa.

Mas Capela chama atenção pela poética própria e corajosa. Embora reconheça a realidade ao redor, o diretor olindense, radicado hoje no Rio de Janeiro, não se debruça na geografia sociocultural como Kleber, por exemplo – cuja obra se detém nos ecos perversos da sociedade canavieira excludente e fundante do Recife contemporâneo –, ou como Mascaro, em sua politização da fé pentecostal. O cinema de Jura Capela constrói uma mítica própria.

No filme, está a integralidade do texto de Nelson, numa direção firme levando os atores para longe de um naturalismo que poderia subdimensionar a dimensão trágica da dramaturgia. Ampliando a tessitura mítica da tragédia rodrigueana, a partir dos desencontros sexuais e afetivos de dois casais, Jura ambienta a trama num não-lugar. Com a fotografia corajosa, magnética e epidérmica, em preto e branco, de Pablo Baião, o texto de Nelson tem os arcos trágicos ampliados por um endereço narrativo que nos coloca entre o teatro e o cinema.

O longa marca ainda a volta de Lucélia Santos ao cinema brasileiro depois de 10 anos. Ao saber do projeto de Jura, o ator Matheus Nachtergaele, bem impressionado com Jardim Atlântico (2012), longa anterior do diretor, se propôs para atuar. Nunca tinha feito um Nelson. Lembrou também nunca ter trabalhado com Lucélia e sugeriu seu nome.


A atriz Lucélia Santos no set do filme. Foto: Xande Pirez/Divulgação

Sugestões aceitas – e acertadas como num carma.

Na trama, duas irmãs vivem sob o mesmo teto, com seus respectivos maridos, na casa herdada do pai. Uma não consegue consumar o casamento: Décio (na pele de um exemplarmente teatral Silvio Restiffle) revela-se impotente e Ligia resolve se matar. Para impedi-la, sua irmã Guida empresta-lhe o marido, Paulo, por uma noite.

Depois de algum estranhamento, com a narrativa pontuada por atos reforçando a teatralidade fílmica, somos sugados por aqueles personagens nos indicando o quanto o cotidiano mais ordinário estará estruturado na vertigem da tragédia. Com a produção também corajosa de Elaine Soares de Azevêdo em pleno caos, a ambiência na cidade mineira de Mariana, destroçada após a ruptura daquela barragem em 2015, numa poética ousada, reforça essa ideia: a tragédia como arco do ordinário.

É um filme verborrágico, em que o diretor dança sua narrativa com a potência dos atores. Como o Paulo transitando pelo amor e pelos corpos de duas irmãs, Matheus Nachtergaele, num raro papel erotizado, faz com que cada palavra, em sua dicção, pareça encontrar o sentido para qual parece ter sido criada. Mais que literal, arquetipicamente.


Cena com o ator Matheus Nachtergaele. Foto: Jura Filmes/Divulgação

Com um trânsito impressionante sob a epiderme das duas irmãs por ela representada, Lucélia confirma, outra vez, por que foi considerada, pelo próprio Nelson, “a mais rodrigueana das atrizes”. Uma mulher que sabe fazer amor ou lavar um pano de prato com a consciência do abismo.

O cinema de Jura Capela, como dito, gravita em órbita própria. Mas podemos encontrar, ali, ecos muito bem-deglutidos de Julio Bressane, uma de suas referências de formação. Na alternância oracular entre silêncios e verborragia, no preciosismo barroco das imagens. No cuidado sinestésico com a dicção e a música (composta especialmente por Fábio Trummer e Pupillo), numa direção de tantos e convergentes elementos que fazem de seu trabalho uma direção quase jazzística.



BRUNO ALBERTIM, jornalista, antropólogo e escritor. Autor da biografia Tereza Costa Rêgo: uma mulher em três tempos.

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