Resenha

O viés confessional e intimista de Resa Saffa Park

Cantora-compositora norueguesa lança seu segundo EP, 'Spaces', escrito durante o isolamento da pandemia e alinhado ao pop nórdico

TEXTO Márcio Bastos

22 de Fevereiro de 2022

No Brasil, Resa é conhecida por seu nome de registro, Theresa Frostad Eggesbø

No Brasil, Resa é conhecida por seu nome de registro, Theresa Frostad Eggesbø

Foto Divulgação

[conteúdo exclusivo Continente Online]

Como é experienciar a juventude
em meio a uma pandemia? Para Resa Saffa Park, os últimos dois anos foram de altos e baixos e de (des)construção. O isolamento social e a consequente solidão de um período insólito, de muitas perdas, literais e simbólicas, cobraram um preço emocional que a artista norueguesa só conseguiu processar depois de algum tempo. Foi através da música que ela encontrou formas de tatear os sentimentos conflitantes que habitaram sua mente nesses meses de reclusão, possibilitando um gradual reencontro consigo e com o mundo exterior. Esse processo está registrado no EP Spaces, disponível nas plataformas digitais desde o dia 18.

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Mergulhar na produção de Spaces não foi um processo fácil para Resa. Em maio de 2020, ela lançou Dumb and numb, seu primeiro EP. O que deveria ter sido um momento de comemoração, leveza e realização acabou sendo atravessado pelo medo, pela incerteza e pelo luto coletivo da primeira onda da pandemia, quando pouco se sabia sobre o vírus, as formas de estruturar a sociedade para combatê-lo e as vacinas não estavam em um horizonte próximo.

“Lancei meu primeiro EP um mês depois do lockdown, então não foi um começo muito bom. Pensei: ‘Merda, não vou poder tocá-lo em nenhum lugar, nada vai acontecer, mas, pelo menos, posso ficar feliz comigo por ter feito (as músicas)’. Então, eu estava muito positiva no começo, fazendo muita ioga e pensando em outras coisas”, contou a artista em entrevista à Continente, via Zoom.

Após esse momento inicial entre a perplexidade e a ingenuidade de que tudo passaria rápido, a cantora, compositora e atriz se viu diante de um bloqueio criativo – no Brasil, aliás, ela é conhecida por seu nome de registro, Theresa Frostad Eggesbø, como uma das protagonistas de Ragnarok, série norueguesa produzida pela Netflix que ficou entre as produções mais vistas por aqui, na época do lançamento (janeiro de 2020). “Depois que lanço um projeto, sempre tiro um tempo para não escrever até que algo novo apareça e eu comece a criar novas músicas. Mas compor este EP (Spaces) foi muito difícil porque eu não experienciei nada – senti muito, mas meio que os mesmos sentimentos: tédio e desesperança. Quantas músicas você pode escrever sobre isso? É chato”, enfatizou.

Sua inspiração voltou a fluir após o breve período de retorno à “normalidade”, quando as restrições diminuíram e foi possível reestabelecer o contato social. Foi quando ela conseguiu, também, se apresentar ao vivo, integrando o line-up de alguns eventos em seu país. Com a onda de infecções provocadas pela variante ômicron, a Noruega instituiu novas restrições e, quando a entrevista foi feita, a artista estava em isolamento social.

“Os lugares abriram e deu para me sentir bem por um tempo, mas depois tudo fechou novamente. Ao menos pude tirar algo disso. Para ser honesta, depois que escrevi o EP, tem sido muito ruim de novo. Dessa vez, (o lockdown) tem sido mais difícil do que o primeiro. Eu estava em um buraco há duas semanas, sem conseguir sair da cama, desesperançosa. Agora vou lançar o trabalho e, espero, as coisas vão melhorar”, enfatizou (apesar de o país não estar mais em lockdown, os números de casos da doença continuam crescendo e, no final de fevereiro, a média móvel é de 14 mil novos casos por dia, enquanto que no Brasil é de cerca de 100 mil).

SPACES, OU DIANTE DO ESPELHO
A forma como a pandemia afetou a música pop não foi uniforme. Houve artistas, como Dua Lipa, Lady Gaga e Jessie Ware, que recorreram à pista de dança para exorcizar toda aflição do momento e dar vazão a um desejo (compulsoriamente) reprimido, à busca do toque. Outros optaram pela via da introspecção, como é o caso de Resa Saffa Park. Seu interesse está voltado para a observação de sua subjetividade, com uma escrita confessional e produções de caráter intimista, desde sua estreia na música, em 2018, com o single Sassy.

É uma poética que se aproxima de trabalhos de artistas como Lana Del Rey e Billie Eilish, também duas cantoras-compositoras cujos trabalhos mergulham no universo feminino por um viés confessional, e também se insere em uma tradição do pop nórdico. Ainda que a Noruega não tenha a força da vizinha Suécia, uma das maiores potências do gênero desde os anos 1970, quando o Abba estourou em todo o mundo, há ecos dessa preocupação melódica e de marcas de uma subjetividade coletiva construída para lidar com uma certa dureza infligida pelos invernos rigorosos de baixa temperatura e pouca luminosidade.

Se comparado ao seu antecessor, Dumb and numb, Spaces não chega a ser uma ruptura, mas um novo capítulo na jornada de autodescoberta de uma jovem artista. As canções lançadas em 2020 carregavam um olhar mais irônico sobre situações amorosas e as próprias contradições da intérprete. Já as músicas recentes são marcadas por uma melancolia resultante desse processo de autoconhecimento forçado pelo isolamento. Atualmente com 25 anos, Resa reflete sobre suas fragilidades ao longo das sete faixas do EP, escritas principalmente durante a pandemia, mas com algumas que remontam a meados de 2019.


Foto: Divulgação

Em Tendencies, que abre o projeto, ela fala sobre um estranhamento diante do mundo e das expectativas criadas sobre ela. “Me desculpa, mas eu tenho tendências/ De encerrar as noites cedo demais/ Eu não ligo porque os afterparties não me interessam/ Acho que sou velha para 23 (...) Mas às vezes eu gostaria de poder extravasar quando for bom/ E fatiar corações abertos de todos os modos que eu deveria”, canta. Na faixa seguinte, Dandelions, ela reconhece sua dificuldade em se conectar (consigo, com a pessoa com quem se relaciona) e em encontrar outras formas de se expressar.

Com uma atmosfera jazzística, Skeleton’s Waltz evidencia as nuances da voz de Resa, que é uma intérprete sensível e capaz de capturar emoções etéreas. Candles, talvez a faixa que mais captura o estado emocional da artista durante a pandemia, é também (ou melhor, justamente por isso) a mais carregada do EP. “Não consigo ver luz quando não há fome”, entoa.

“É interessante porque as músicas são meio fluidas. Tenho sonhado muito. Eu vivo nos meus sonhos. É muito estranho que o que você possa ‘tocar’ agora é o que você sonha – ou suas memórias de antes da pandemia. Talvez isso transpareça nas músicas. Tenho muita sorte de poder escrever. Tive esse momento muito ruim (na vida) e, um dia, escrevi sobre, o que me ajudou bastante. Eu não me perdi, apesar de ter perdido muito de mim, e pelo menos ainda posso escrever. Que as pessoas estejam interessadas e que alguém possa ouvir a música, isso me dá esperança”, reforçou. “Mesmo se as pessoas não ouvissem, eu ainda faria música porque preciso disso. Em termos de conexão com as pessoas durante a pandemia, fico muito feliz que a minha música possa ter sido uma ponte. As pessoas precisam umas das outras e a música pode unir.”

A cantora e atriz entende Spaces como um estudo sobre as relações interpessoais e a ausência delas. “É sobre isolamento, solidão, não necessariamente sobre o coronavírus, mas sobre os espaços entre as pessoas, o que somos juntos e separados e quantos de nós temos que ser (ao longo da vida)”, disse.

FACETAS
Nascida em Dubai, onde cresceu, a artista estudou artes e música popular na Inglaterra, trânsito que fez com que compreendesse ainda cedo a importância de se comunicar para além da linguagem oral. Utilizar a arte como forma de expressar seus sentimentos, portanto, tem sido um mecanismo adotado por ela desde a juventude, percebendo o corpo como uma possibilidade de extensão de sua subjetividade através do canto, da composição e da interpretação.

“Atuação e música são formas de comunicação. Quando comecei a atuar, nem era porque queria fazer filmes – ainda não é. Sempre foi sobre as pessoas e como nós nos comunicamos; e como cada movimento, sinal e forma como usamos nossos corpos é uma expressão de emoções que temos. Com a música também é assim. Para mim, sempre foram duas formas de me expressar. Todos os dias estamos performando, desde o momento que acordamos”, pontuou, ressaltando que uma das maiores dificuldades trazidas pela pandemia foi justamente a falta de interação e, portanto, a desconstrução da autoimagem que muitos (ela inclusa) fabricaram ao longo dos anos.

A adoção do nome artístico para seu projeto musical carrega uma série de afetos. Resa é seu apelido desde a infância, enquanto Saffa Park é um parque em Dubai no qual ela passava longos períodos durante sua vivência nos Emirados Árabes (ela adicionou um efe ao nome original do espaço) e cuja sonoridade sempre a fascinou. “Resa, Theresa: tudo sou eu. Não gosto de ficar em caixas, ter apenas uma imagem.”

Com seu primeiro show solo marcado para março, em Oslo, ela espera poder rodar o mundo assim que possível e torce para que seja possível se apresentar no Brasil (“Antes, só me apresentei em festivais. Espero que as pessoas apareçam”, disse, rindo). Motivos para se animar com os próximos meses, apesar da pandemia, não faltam: além do lançamento de Spaces, este mês ela começa a gravar a terceira temporada de Ragnarok, que, no entanto, ainda não tem previsão de estreia.



MÁRCIO BASTOS é jornalista cultural.

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