O dia 18 de novembro de 2015 ficará marcado na vida da cantora californiana Billie Eilish. Nessa data, Ocean eyes foi postada inocentemente na plataforma Soundcloud, graças a um pedido de seu professor de dança, Fred Diaz, que queria uma música para usar em um recital. A canção foi composta por seu irmão, Finneas O’Connell, que pensou em utilizá-la em sua banda, mas achou que combinava com o tom de voz da cantora. Mesmo que a música sempre tivesse feito parte daquela família – a mãe deles escreve canções e o pai costuma fazer mixtapes de artistas como Beatles e Avril Lavigne para presentear os filhos –, nem Eilish ou o irmão sabiam o que estava prestes a acontecer em suas vidas. Em questão de poucos dias, a canção viralizou e chamou a atenção de inúmeros sites. A partir daí, a carreira da jovem, que, na época, tinha apenas 13 anos, teve início.
Seis anos e sete Grammys depois, Billie Eilish lança seu segundo álbum de estúdio, Happier than ever (2021). O trabalho vem acompanhado de um especial na plataforma Disney +, intitulado Happier than ever: a love letter to Los Angeles (em tradução livre: Mais feliz do que nunca: uma carta de amor a Los Angeles). Isso faz parte de sua estratégia de divulgação. Quem se familiariza com o universo dos contos de fadas que compõe a filmografia da Disney deve notar a semelhança do título do disco com a frase Happily ever after, que significa “felizes para sempre”. No vídeo especial, Eilish, inclusive, aparece em forma de desenho animado, dirigindo um carro pelas ruas de Los Angeles até chegar ao local onde a apresentação aconteceria, o Hollywood Bowl. O anfiteatro lendário da capital californiana já sediou apresentações de artistas como os Beatles, The Doors, Lady Gaga, Depeche Mode, Cher e Kylie Minogue.
Mas, mesmo com a fama e o sucesso, a vida de Billie Eilish está longe de ser um conto de fadas. Em entrevista para o jornal L.A. Times, ela declarou sobre o tema: “Eu odiava sair. Eu odiava ir para eventos. Eu odiava ser reconhecida. Eu odiava a internet tendo vários olhos em cima de mim. Eu só queria ficar fazendo besteiras de adolescente”. Se no seu disco anterior, When we fall asleep, where do we go? (2019), a artista norte-americana cantava terrores noturnos, sonhos lúcidos e medos e esperanças de sua geração, a temática que circunscreve as faixas de Happier than ever (2021) são justamente os terrores que Eilish sofreu após a fama.
Em Getting older, faixa que abre o novo disco, a californiana mantém o tom irônico que marcou suas produções até então. “As coisas que eu curtia antes / Me mantêm empregada agora / As coisas pelas quais eu desejo / Algum dia, me deixaram entediada / É tão estranho / Que a gente se importe tanto até que não mais”. No álbum, ela canta que está envelhecendo, que está “mais feliz do que nunca”, que está grata pelo sucesso, enquanto menciona os stalkers que a perseguem desde que se tornou uma das adolescentes mais conhecidas do planeta. Sua experiência, porém, ressoa com a de muitos jovens ao redor do mundo que, atualmente, vivenciam uma época de superexposição e vigilância puxada pela expansão desenfreada das redes sociais.
Nessa nova era, Eilish abandonou, inclusive, o cabelo verde neon e preto com o qual sua imagem ficou mundialmente conhecida. Em entrevista à revista Elle, a cantora chegou a afirmar, inclusive, que um dos motivos que a levou a mudar a cor de seu cabelo – que agora é loiro platinado – foi a vontade de poder passar despercebida. “Eu não podia ir a canto nenhum com aquele cabelo porque ele era muito obviamente meu. Eu gostaria de anonimato.” Seu visual no último MET Gala chegou, aliás, a ser comparado com Marilyn Monroe. A atriz, que assim como Eilish, também nasceu em Los Angeles, sofreu muito durante sua vida com a pressão de ter se tornado um “símbolo sexual” hollywoodiano. Na época, não havia internet, smartphones, mas as problemáticas relacionadas à superexposição gerada pelos meios de comunicação de massa tornaram a vida de Marilyn um inferno. Há quem diga, inclusive, que o machismo que ela sofreu por causa disso foi uma das causas de sua morte precoce, em Los Angeles, no dia 4 de agosto de 1962, quando Marilyn tinha apenas 36 anos.
Foto: Lars Crommelinck Photography/Pukkelpop 2019/Wikimedia Commons
Em março de 2020, antes do início da pandemia, Billie Eilish havia incorporado, durante os seus shows, a exibição de um vídeo de quatro minutos intitulado Not my responsability (em livre tradução: Não é minha responsabilidade). Imagens da cantora se despindo lentamente e mergulhando numa piscina com um líquido escuro e viscoso eram acompanhadas de um monólogo em que ela falava sobre as pressões sofridas desde que alcançou o sucesso, em especial, em relação ao seu corpo. “Sua opinião sobre mim não é minha responsabilidade”, afirmava Eilish, com a mesma crueza que marcou seu primeiro disco, onde a artista cantava sobre transtornos mentais, vício em drogas e automutilação. Sua maneira peculiar de adereçar esses temas pode causar estranhamento para muitos, mas é também um dos pontos fortes na conexão com grande parte de seus fãs, que parecem se identificar com uma artista que, assim como eles, é uma jovem que não tem receio de causar qualquer tipo de estranhamento. Mesmo que esteja sujeita ao escrutínio de milhares de pessoas, em todos os lugares do mundo e a todo momento.
No especial, que está disponível no Disney + desde o dia 3 de setembro, Eilish apresenta na íntegra o repertório de Happier than ever ao vivo. A produção conta com direção de Robert Rodriguez e codireção do vencedor do Oscar Patrick Osborne e participações especiais de Finneas – irmão da cantora, que também assina a produção do álbum –, da Orquestra Filarmônica de Los Angeles com a condução do maestro Gustavo Dudamel e do violonista brasileiro Romero Lubambo, que aparece na faixa Billie bossa nova, uma homenagem da artista ao gênero brasileiro, inspirada por Garota de Ipanema (1962) que, de acordo com Eilish, é uma de suas canções favoritas de todos os tempos.
O talento da cantora, inclusive, chegou até a chamar atenção de outro brasileiro, Caetano Veloso. Em sua mais recente composição, Anjos tronchos (2021), Caetano canta sobre o Vale do Silício, os algoritmos e os aspectos negativos dos avanços da tecnologia que, em grande parte, são puxados pelas indústrias criativas da Califórnia. A menção a “miss Eilish” aparece apenas no último verso e, de acordo com Caetano, foi uma tentativa de mostrar algo de positivo que pode sair em meio a tudo isso. Em um bate papo realizado no Twitter, Caetano chegou a afirmar: “É uma coisa boa também, o fato de uma menina tão talentosa fazer esse neocool a partir do quarto dela, com o irmão dela. São coisas boas da tecnologia, como o desenvolvimento altamente vanguardista do funk carioca, sua passagem por Santos e implantação em São Paulo, através de Kondzilla. É toda uma história que tem vitalidade, força e beleza também. Agora, a gente tem sofrido mais as coisas horrendas que vieram com isso”.
O comentário do compositor baiano ilustra bem a potência artística de Billie Eilish. Nascida em uma família de artistas, educada em casa pelos pais e sendo parte de uma geração que já nasce imersa nas redes sociais, a cantora transborda suas experiências procurando formas de ressignificar os imaginários construídos em torno da fama, da cidade onde nasceu e foi criada, das angústias de sua geração e das problemáticas intrínsecas aos processos de celebrização. Se essas questões antes atingiam apenas personalidades mundialmente famosas, agora elas podem atingir também uma menina que faz música no quarto de seu irmão.
ANTONIO LIRA é jornalista, músico, pesquisador em comunicação e mestrando pelo PPGCOM/UFPE.