Resenha

À era de ouro das pistas de dança

Inspirada na disco music, a cantora e compositora britânica Jessie Ware lança quarto álbum de estúdio, 'What's your pleasure?'

TEXTO Erika Muniz

28 de Setembro de 2020

Entre 'Glasshouse' (2017) e 'What's your pleasure?', cantora lançou livro de receitas, virou podcaster de sucesso e tocou no Coachella

Entre 'Glasshouse' (2017) e 'What's your pleasure?', cantora lançou livro de receitas, virou podcaster de sucesso e tocou no Coachella

Foto Divulgação

[Conteúdo exclusivo Continente Online]

Refrões nostálgicos, batidas desenvolvidas em sintetizadores, estruturas melódicas marcantes, um pouco de melancolia e paixão. Eis alguns dos componentes de What’s your pleasure? (2020 – ouça aqui), quarto álbum de estúdio da cantora e compositora britânica Jessie Ware. Essa combinação, que já fez parte de sucessos da música pop mundial, aparece circunscrita pela evocação do desejo, outro ingrediente importante. Ao longo de quase 53 minutos, somos convidados a mais do que escutar as canções, como também a senti-las. Esse é um disco, sobretudo, sensorial. Uma linha conceitual atravessa cada uma das músicas, remetendo à era disco, ao glamour da Manhattan nos 1970, à Pop Art de Andy Warhol e a outras referências nas quais a paixão é capaz de mover mundos e corpos através da dança. Mas quando o êxtase se finda, na madrugada, tudo voltaria ao seu devido lugar – ou talvez não seja bem isso o que acontece.

Quase três anos separam Glasshouse (2017) desse mais recente trabalho de Ware. Nesse ínterim, a artista, que mora no sul de Londres com o marido Sam Burrows e os dois filhos pequenos, tornou-se uma podcaster de sucesso no Reino Unido, ao lado da mãe Linnie, lançou um livro de receitas, apresentou-se no Coachella e disponibilizou alguns singles, entre eles, Overtime, uma parceria com James Ford, que já trabalhou com Arctic Monkeys e Florence and the Machine, e é o produtor musical do novo disco. Muito da sonoridade desse material anterior já aponta para o que viria desse encontro em 2020, com o novo What’s your pleasure? A compositora vem se dedicando como pode, em meio à quarentena, na divulgação do disco com entrevistas, participações em lives e publicações de conteúdos em suas redes sociais.

Todas as suas aparições e declarações são expressas com senso de humor e trazem à tona o modo descontraído e sincero que fazem a cantora conquistar, cada vez mais, seu público. “Quero fazer um álbum para as pessoas fazerem sexo”, disse a artista em entrevista à revista Glamour UK. Segundo ela, essa maneira de mostrar-se mais livremente para a mídia teria acontecido muito por conta das gravações do podcast Table Manners, iniciado em 2017, no qual ela e sua mãe cozinham para celebridades e conversam de maneira bem espontânea. Esse seria, portanto, um dos pontos de virada em sua carreira outrora bastante reservada, pois essa autenticidade transparece em sua atual fase profissional. “’Jessie Ware 4.0’ é a versão mais segura e autoconfiante dela mesma enquanto artista”, disse.

What’s your pleasure? é um álbum com referências – visuais e sonoras – à era de ouro da disco music, com todo glamour, roupas luxuosas, luzes neon, maquiagens e coreografias imponentes que a época consagrou. Mas também traz, em seu repertório, outras fases da história da música, como os 1990, em que o voguing dominava bailes e a rainha Madonna, com I’m breathless (1990), apresentou Vogue para o mundo.

A artista britânica parece seguir a tendência de alguns lançamentos musicais do pop deste ano. Vale lembrar que em março, Dua Lipa lançou Future nostalgia (2020), com canções que remetem à pista de dança. Lady Gaga, por sua vez, presenteou os fãs, em maio, com Chromatica. Além de reiterar a tendência de retorno a outras épocas, só que de uma maneira menos evidente, o trabalho vem sendo apontado como o retorno da Mother Monster às suas origens no gênero pop. Previsto para novembro, a australiana Kylie Minogue também lançará o álbum Disco. E, como o próprio título sugere e pela canção Say something, disponibilizada anteriormente, a década de 1970 também serve como base para as criações.

Entre as brasileiras, o vídeo de Coreto, composição da cantora Céu vai buscar em símbolos setentistas para uma construção cênica e audiovisual retrô, com direito a dancinhas coreografadas, globo espelhado e figurino à moda da época. Recentemente, Iza lançou, junto ao DJ Bruno Martini e Timbaland, o single Bend the knee. Do groove à cenografia em que a artista aparece a la Donna Summer na capa da Four seasons of love (1976), a era disco serve de inspiração.

A preferência de Jessie Ware por arranjos com instrumentos mais eletrônicos e canções com forte apelo à pista de dança, relacionadas ao soul, funk, new wave, eletro-pop, disco e R&B não é exatamente novidade. Em Devotion (2012), seu primeiro trabalho solo, a festa, as luzes, as batidas envolventes, os drinks, as coreografias coordenadas já apareciam, a exemplo de faixas como Imagine It was us e Running. No segundo Tough love (2014), que talvez seja o mais experimental de todos, sua extensão vocal é potencializada em meio a bases criadas em sintetizadores, que, por vezes, parecem as criações de seu conterrâneo James Blake.

Visualmente, o trabalho também não deixa a desejar quanto ao mergulho nos detalhes e composições que agregam sentidos à obra. No vídeo da canção Champagne kisses, a inglesa aparece imersa em elementos que dialogam com obras de arte, como Relation in time (1977), da artista e performer sérvia Marina Abramovic e em uma fotografia conhecida por tecer filmes do cineasta espanhol Pedro Almodóvar, com cores fortes e objetos e arquitetura vintage.

Essa espécie de retomada de décadas anteriores – que recebe o tratamento de contemporâneo – na carreira de Jessie Ware, desta vez, aparece sob contornos mais definidos e estruturados. What’s your pleasure? é um álbum que passeia entre referências aos anos 1970, 1980 e 1990, sem ser saudosista. É como se comunicasse que não há problema em se referir a símbolos consagrados no passado, pois é possível também ser original assim. Seguindo o fluxo do mundo virtual, a britânica tem investido em videoclipes – quase todas as 12 faixas já têm um – que contam histórias individuais, mas que podem facilmente ser relacionadas entre si. Essa coesão acaba fortalecendo a unidade do disco. A partir de uma base iconográfica da cultura mainstream e pela sonoridade construída em cima de timbres e grooves conhecidos, o álbum se configura. Seja aqui, em Londres ou em Nova York, nosso imaginário coletivo é acessado, estabelecendo, assim, um senso de compartilhamento entre quem escuta, assiste e dança as músicas. Mérito somente alcançado por grandes produtos que a cultura pop é capaz de produzir.

Na imagem da capa, a cantora aparece como numa das famosas polaroids de Andy Warhol. A pose, maquiagem e figurino escolhidos remetem às imagens que ele fez de celebridades como Bianca Jagger e Debbie Harry. Uma das fotografias feitas pelo ícone da Pop Art, inclusive, estampou, em 1982, a capa de Silk Eletric, álbum icônico de Diana Ross, que parece ser uma das influências do disco de Ware. Outra alusão, tanto no campo visual quanto sonoro, é à rainha da disco music Donna Summer, cujas canções foram trilhas de períodos importantes de movimento de resistência negra, feminista e LGBTQIA+. A BBC, inclusive, chegou a comparar a faixa-título do novo trabalho de Jessie como uma atualização “de tirar o fôlego” de Love to love you baby (1975), da estrela norte-americana.

Com direito a cordas e metais tecendo os arranjos, What’s your pleasure? teve o Abbey Road Studios como local de gravação. Esse momento de finalização está disponível num teaser no canal do YouTube da artista. Imortalizado pelo disco homônimo dos Beatles, o estúdio também sediou a construção de trabalhos artísticos de Pink Floyd, Radiohead, Kylie Minogue, Kate Bush, Frank Ocean e Amy Winehouse, entre outros. A sonoridade com que as orquestras compõem o quarto álbum de Ware lembram alguns dos sucessos do Chic. Diversas vezes, ao longo das faixas, as linhas de baixo de Bernard Edwards e a guitarra de Nile Rodgers parecem servir de referências.

A faixa de abertura, Spotlight, já diz a que veio, pois é a porta de entrada para as fases de uma glamourosa festa que costuram todo o álbum. Os versos “Cause a dream is just a dream /And I don't wanna sleep tonight” (“Porque um sonho é apenas um sonho / E eu não quero dormir esta noite”, em livre tradução) entregam que o destino será a pista de dança – seja ela onde for. No vídeo oficial, acompanhamos a persona de Jessie Ware, uma espécie de anfitriã, a caminho de seu objetivo – a pista –, onde tudo acontece. “É melodramático, é romântico, é melancólico”, definiu a cantora. Gravado em uma estação ferroviária em Belgrado, capital da Sérvia, com dançarinos locais e da Croácia, Bósnia e Rússia, o clipe tem coreografia assinada por Olivier Casamayou, que também foi responsável pela criação coreográfica na música Save a kiss.

Talvez a que mais evidencie a sensualidade e o erotismo que transcorrem todo o disco seja a faixa-título, segunda do disco, em que evoca batidas new wave, sem diminuir a empolgação prometida pela anterior. Tudo isso com uma letra cheia de malícia e ambiguidades. “Push, press, more, less / Here together, what's your pleasure? / Stop, go, fast, slow” (“Empurre, pressione, mais, menos / Aqui juntos, qual é o seu prazer? / Pare, vá, rápido, devagar”, em livre tradução). A canção recebeu dois vídeos. O oficial, que apresenta uma estética mais oitentista, e o dance video, com uma enérgica performance solo do bailarino Nicolas Huchard, que também participou da turnê Madame X (2019-2020), de Madonna.

Na terceira, Ooh lala, o baixo assume o protagonismo, sustentando a voz de Jessie que, acompanhada de um coro, performatiza por toda a canção. A seguir, entramos no melhor momento de What’s your pleasure?, com as duas próximas faixas Soul control e Save a kiss. Seria como se o disco atingisse uma espécie de clímax nelas – o equivalente àquele momento da pista de dança em que as músicas mais aguardadas e animadas chegassem ao setlist. Em Soul control, a atenção aos sintetizadores é retomada e o baixo volta a dominar a construção melódica. O vídeo oficial tem um visual que evoca o vaporwave – gênero surgido na internet, nos anos 2010, que brinca com estéticas e sonoridades da web 1.0 como forma de crítica ao capitalismo tardio. Nele, a modelo e dançarina Hajiba Fahmy empresta toda sua técnica e presença cênica a movimentos que rememoram alguns dos consagrados por Michael Jackson – o figurino também dialoga com o de Off the wall (1979), em que MJ aparece com aquele terninho preto e branco – e por John Travolta, no filme Embalos de sábado à noite (1978).

O clipe de Save a kiss, por sua vez, conta com uma equipe de vários bailarinos, além da participação de fãs. Como foi gravado durante a quarentena, a produção desse é mais simples e minimalista, explorando artifícios de edição e o uso de tecnologias digitais remotas para a captura de imagens. Segundo Lúcio Souza, dançarino pernambucano de voguing pela House of Guerreiras, “nos videoclipes [do álbum], dá para perceber uma partitura corporal que lembra muito a voguing e waacking. O voguing está ligado à house music dos anos 1980 e waacking é uma dança prima ou irmã, mais ligada à disco music. (…) Tem muita pose, muito carão. É muito a pista de dança como um espaço de libertação, de liberdade e de contestação”.

Os momentos finais do disco têm início com The kill, penúltima música, cujo clipe remete a uma espécie de retorno para a casa. Imagens de fragmentos da cidade são vistas de dentro de um veículo como se alguém acabasse de deixar a festa. Seria como se essa volta também fosse uma retomada ao “mundo real”, além de ser o momento em que a madrugada prepara-se para dar lugar à luz do dia. Essa ideia ganha força na letra da última Remember where you are: “The heart of the city is on fire / Sun on the rise, the highs are gonna fall / But nothing is different in my arms / So, darling, remember / Remember where you are” (“O coração da cidade está em chamas / O sol nascerá / os altos irão cair / Mas nada é diferente nos meus braços. Então, querida, lembre onde você está”, em livre tradução).

O que pareceria efêmero por uma noite entregue à pista de dança, na verdade, carrega a potência da ruptura com tudo o que realmente seja efêmero. Ao trazer o corpo para o centro, através dos movimentos e da dança, evocando a relação histórica da música pop com a performance, What’s your pleasure?, quarto álbum de Jessie Ware, nos lembra que, para além do que a razão consegue compreender, é no corpo que a experiência acontece. E diante dela, nunca somos os mesmos.

ERIKA MUNIZ, jornalista com graduação em Letras. 

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