A artista britânica parece seguir a tendência de alguns lançamentos musicais do pop deste ano. Vale lembrar que em março, Dua Lipa lançou Future nostalgia (2020), com canções que remetem à pista de dança. Lady Gaga, por sua vez, presenteou os fãs, em maio, com Chromatica. Além de reiterar a tendência de retorno a outras épocas, só que de uma maneira menos evidente, o trabalho vem sendo apontado como o retorno da Mother Monster às suas origens no gênero pop. Previsto para novembro, a australiana Kylie Minogue também lançará o álbum Disco. E, como o próprio título sugere e pela canção Say something, disponibilizada anteriormente, a década de 1970 também serve como base para as criações.
Entre as brasileiras, o vídeo de Coreto, composição da cantora Céu vai buscar em símbolos setentistas para uma construção cênica e audiovisual retrô, com direito a dancinhas coreografadas, globo espelhado e figurino à moda da época. Recentemente, Iza lançou, junto ao DJ Bruno Martini e Timbaland, o single Bend the knee. Do groove à cenografia em que a artista aparece a la Donna Summer na capa da Four seasons of love (1976), a era disco serve de inspiração.
A preferência de Jessie Ware por arranjos com instrumentos mais eletrônicos e canções com forte apelo à pista de dança, relacionadas ao soul, funk, new wave, eletro-pop, disco e R&B não é exatamente novidade. Em Devotion (2012), seu primeiro trabalho solo, a festa, as luzes, as batidas envolventes, os drinks, as coreografias coordenadas já apareciam, a exemplo de faixas como Imagine It was us e Running. No segundo Tough love (2014), que talvez seja o mais experimental de todos, sua extensão vocal é potencializada em meio a bases criadas em sintetizadores, que, por vezes, parecem as criações de seu conterrâneo James Blake.
Visualmente, o trabalho também não deixa a desejar quanto ao mergulho nos detalhes e composições que agregam sentidos à obra. No vídeo da canção Champagne kisses, a inglesa aparece imersa em elementos que dialogam com obras de arte, como Relation in time (1977), da artista e performer sérvia Marina Abramovic e em uma fotografia conhecida por tecer filmes do cineasta espanhol Pedro Almodóvar, com cores fortes e objetos e arquitetura vintage.
Essa espécie de retomada de décadas anteriores – que recebe o tratamento de contemporâneo – na carreira de Jessie Ware, desta vez, aparece sob contornos mais definidos e estruturados. What’s your pleasure? é um álbum que passeia entre referências aos anos 1970, 1980 e 1990, sem ser saudosista. É como se comunicasse que não há problema em se referir a símbolos consagrados no passado, pois é possível também ser original assim. Seguindo o fluxo do mundo virtual, a britânica tem investido em videoclipes – quase todas as 12 faixas já têm um – que contam histórias individuais, mas que podem facilmente ser relacionadas entre si. Essa coesão acaba fortalecendo a unidade do disco. A partir de uma base iconográfica da cultura mainstream e pela sonoridade construída em cima de timbres e grooves conhecidos, o álbum se configura. Seja aqui, em Londres ou em Nova York, nosso imaginário coletivo é acessado, estabelecendo, assim, um senso de compartilhamento entre quem escuta, assiste e dança as músicas. Mérito somente alcançado por grandes produtos que a cultura pop é capaz de produzir.
Na imagem da capa, a cantora aparece como numa das famosas polaroids de Andy Warhol. A pose, maquiagem e figurino escolhidos remetem às imagens que ele fez de celebridades como Bianca Jagger e Debbie Harry. Uma das fotografias feitas pelo ícone da Pop Art, inclusive, estampou, em 1982, a capa de Silk Eletric, álbum icônico de Diana Ross, que parece ser uma das influências do disco de Ware. Outra alusão, tanto no campo visual quanto sonoro, é à rainha da disco music Donna Summer, cujas canções foram trilhas de períodos importantes de movimento de resistência negra, feminista e LGBTQIA+. A BBC, inclusive, chegou a comparar a faixa-título do novo trabalho de Jessie como uma atualização “de tirar o fôlego” de Love to love you baby (1975), da estrela norte-americana.
Com direito a cordas e metais tecendo os arranjos, What’s your pleasure? teve o Abbey Road Studios como local de gravação. Esse momento de finalização está disponível num teaser no canal do YouTube da artista. Imortalizado pelo disco homônimo dos Beatles, o estúdio também sediou a construção de trabalhos artísticos de Pink Floyd, Radiohead, Kylie Minogue, Kate Bush, Frank Ocean e Amy Winehouse, entre outros. A sonoridade com que as orquestras compõem o quarto álbum de Ware lembram alguns dos sucessos do Chic. Diversas vezes, ao longo das faixas, as linhas de baixo de Bernard Edwards e a guitarra de Nile Rodgers parecem servir de referências.
A faixa de abertura, Spotlight, já diz a que veio, pois é a porta de entrada para as fases de uma glamourosa festa que costuram todo o álbum. Os versos “Cause a dream is just a dream /And I don't wanna sleep tonight” (“Porque um sonho é apenas um sonho / E eu não quero dormir esta noite”, em livre tradução) entregam que o destino será a pista de dança – seja ela onde for. No vídeo oficial, acompanhamos a persona de Jessie Ware, uma espécie de anfitriã, a caminho de seu objetivo – a pista –, onde tudo acontece. “É melodramático, é romântico, é melancólico”, definiu a cantora. Gravado em uma estação ferroviária em Belgrado, capital da Sérvia, com dançarinos locais e da Croácia, Bósnia e Rússia, o clipe tem coreografia assinada por Olivier Casamayou, que também foi responsável pela criação coreográfica na música Save a kiss.
Talvez a que mais evidencie a sensualidade e o erotismo que transcorrem todo o disco seja a faixa-título, segunda do disco, em que evoca batidas new wave, sem diminuir a empolgação prometida pela anterior. Tudo isso com uma letra cheia de malícia e ambiguidades. “Push, press, more, less / Here together, what's your pleasure? / Stop, go, fast, slow” (“Empurre, pressione, mais, menos / Aqui juntos, qual é o seu prazer? / Pare, vá, rápido, devagar”, em livre tradução). A canção recebeu dois vídeos. O oficial, que apresenta uma estética mais oitentista, e o dance video, com uma enérgica performance solo do bailarino Nicolas Huchard, que também participou da turnê Madame X (2019-2020), de Madonna.
Na terceira, Ooh lala, o baixo assume o protagonismo, sustentando a voz de Jessie que, acompanhada de um coro, performatiza por toda a canção. A seguir, entramos no melhor momento de What’s your pleasure?, com as duas próximas faixas Soul control e Save a kiss. Seria como se o disco atingisse uma espécie de clímax nelas – o equivalente àquele momento da pista de dança em que as músicas mais aguardadas e animadas chegassem ao setlist. Em Soul control, a atenção aos sintetizadores é retomada e o baixo volta a dominar a construção melódica. O vídeo oficial tem um visual que evoca o vaporwave – gênero surgido na internet, nos anos 2010, que brinca com estéticas e sonoridades da web 1.0 como forma de crítica ao capitalismo tardio. Nele, a modelo e dançarina Hajiba Fahmy empresta toda sua técnica e presença cênica a movimentos que rememoram alguns dos consagrados por Michael Jackson – o figurino também dialoga com o de Off the wall (1979), em que MJ aparece com aquele terninho preto e branco – e por John Travolta, no filme Embalos de sábado à noite (1978).
O clipe de Save a kiss, por sua vez, conta com uma equipe de vários bailarinos, além da participação de fãs. Como foi gravado durante a quarentena, a produção desse é mais simples e minimalista, explorando artifícios de edição e o uso de tecnologias digitais remotas para a captura de imagens. Segundo Lúcio Souza, dançarino pernambucano de voguing pela House of Guerreiras, “nos videoclipes [do álbum], dá para perceber uma partitura corporal que lembra muito a voguing e waacking. O voguing está ligado à house music dos anos 1980 e waacking é uma dança prima ou irmã, mais ligada à disco music. (…) Tem muita pose, muito carão. É muito a pista de dança como um espaço de libertação, de liberdade e de contestação”.
Os momentos finais do disco têm início com The kill, penúltima música, cujo clipe remete a uma espécie de retorno para a casa. Imagens de fragmentos da cidade são vistas de dentro de um veículo como se alguém acabasse de deixar a festa. Seria como se essa volta também fosse uma retomada ao “mundo real”, além de ser o momento em que a madrugada prepara-se para dar lugar à luz do dia. Essa ideia ganha força na letra da última Remember where you are: “The heart of the city is on fire / Sun on the rise, the highs are gonna fall / But nothing is different in my arms / So, darling, remember / Remember where you are” (“O coração da cidade está em chamas / O sol nascerá / os altos irão cair / Mas nada é diferente nos meus braços. Então, querida, lembre onde você está”, em livre tradução).
O que pareceria efêmero por uma noite entregue à pista de dança, na verdade, carrega a potência da ruptura com tudo o que realmente seja efêmero. Ao trazer o corpo para o centro, através dos movimentos e da dança, evocando a relação histórica da música pop com a performance, What’s your pleasure?, quarto álbum de Jessie Ware, nos lembra que, para além do que a razão consegue compreender, é no corpo que a experiência acontece. E diante dela, nunca somos os mesmos.
ERIKA MUNIZ, jornalista com graduação em Letras.