Resenha

Na trilha do reggae de U-Roy

Sharna Liguz e Zak Starkey, "(re)criadores" da célebre gravadora jamaicana Trojan Records, lançam ‘Solid gold’, disco póstumo de uma das lendas da ilha

TEXTO José Teles

27 de Agosto de 2021

O jamaicano U-Roy falecou em maio de 2021, aos 78 anos

O jamaicano U-Roy falecou em maio de 2021, aos 78 anos

Foto Andrzej Liguz/Divulgação

[conteúdo exclusivo Continente Online]

A música está cada vez mais
junta e misturada, a internet fez do planeta a aldeia global preconizada por Marshall McLuhan, nos anos 1960. Ratificam a asserção a australiana Sharna Liguz, o inglês Zak Starkey e o jamaicano U-Roy. Falecido em maio de 2021, aos 78 anos, U-Roy teve o primeiro disco póstumo, Solid gold, lançado pelo selo Trojan Jamaica, fundado por Sharna e Zak – este último, o primogênito do beatle Ringo Starr e, há 23 anos, baterista de The Who. O dois têm um grupo chamado Sshh, banda bem conceituada no circuito indie da Inglaterra. 

Sharna Liguz e Zak Starkey conheceram-se em Londres. Ela começou a carreira na Austrália, e foi tentar outros horizontes na capital inglesa. O que ambos tinham em comum, além da profissão, era a paixão pelo reggae: “Foi meu pai que me apresentou ao reggae. O UB40 é o meu padrinho não oficial. Uma das minhas primeiras lembranças é dançando no backstage de um show deles, eu mal tinha deixado de engatinhar. Sempre amei o ritmo”, conta Sharna, em entrevista concedida, de Londres, para divulgação do selo, e do álbum de U-Roy. 

A mãe de Starkey, Maureen Cox, foi quem apresentou o reggae ao filho, com o disco Funky Kingston, de Toots and the Maytals. Ele conta que Ringo Starr também é um grande curtidor de reggae e cita que o pai tinha entre os preferidos o jamaicano Burning Spear. O restante do aprendizado fez ao ir aos shows de reggae em Londres, incluindo The Clash, que reprocessava a música jamaicana ao seu jeito. Décadas mais tarde, ele e Sharna trabalhariam no último disco de Toots Hibbert, o líder dos Maytals, que faleceu de Covid-19 em 2020. Na Jamaica, Hibbert tem o mesmo status de Bob Marley ou Peter Tosh. Pelo visto, a era do gangsta reggae

Sharna Liguz e Zak Starkey montaram um estúdio na ilha e batizaram a gravadora deles com o nome da mais antiga e reverenciada gravadora jamaicana, a Trojan Records, sem que surgissem objeções dos muitos produtores que trabalharam nela, desde a sua fundação em 1968: “Ao dar o nome Trojan Jamaica ao nosso selo, a gente queria que ele retornasse aos artistas da Jamaica (a Trojan Records foi vendida em 1975 para a britânica Saga Records). A Trojan Records tem um catálogo incrível, vários artistas com os quais trabalhamos já foram seus contratados”, comenta Sharna, mais loquaz do que o sócio Zak, de poucas palavras. 


Sharna Liguz e Zak Starkey. Foto: Lawrence Watson/Divulgação

Aliás, é impossível entrevistá-lo ignorando os Beatles e a realeza do rock inglês dos anos 1960, com quem ele conviveu e cresceu (nasceu em 1965). Sua primeira bateria pertencia a Keith Moon, do The Who, e lhe foi presenteada pelo próprio. Zak e o irmão Jason tiveram o privilégio de ter Keith Moon como baby-sitter. O Moonie the Loonie, o mais maluco e incontrolável dos roqueiros da década de 1960, destruidor de hotéis, carros e estúdios de TV, garante Starkey, não tinha nada desses destemperos quando ficavam na casa dele: “Ele era muito responsável, e cuidava muito bem de mim e Jason”. 

Mais conhecido como baterista (ocupou a posição também no Oasis), Zak Starkey é um guitarrista reconhecidamente talentoso. Aprendeu os primeiros acordes numa guitarra Gibsom que Marc Bolan, do T-Rex, deu a Ringo. No disco de U-Roy, Sharna Liguz se encarrega da produção, enquanto Zak é o guitarrista: “Não toquei porque Sly Dunbar, Horsemouth Wallace e Santa Davis são os melhores bateristas do reggae. Sou um baterista que adora tocar guitarra com todos eles. Keith Moon é meu herói da bateria, eu prefiro tocar guitarra, mas adoro ser o baterista das minhas bandas prediletas”, pondera Zak Starkey à Continente

Sharna e Zak não desempenham o papel de donos de gravadoras nos moldes convencionais. Além de gravar os músicos que admiram, participam de suas turnês, administrando, tocando e cantando. Fizeram assim nas duas últimas passagens de U-Roy pelo Brasil, por exemplo, com abertura de músicos brasileiros com afinidades estéticas ao jamaicano, e criaram o selo Trojan Brazil. A MPB, “música periférica brasileira”, ganhou um aliado valioso: “Já lançamos dois singles de um extraordinário grupo chamado Covil do Flow, da Rocinha, que tocou em alguns shows que fizemos com U-Roy e Bnegão & Digital Dub. Gravamos com Bnegão (para um single da Sshh) e depois que tocamos com o Ministereo Público em Salvador, eles gravaram algumas músicas com U-Roy. Vamos gravar mais brasileiros”, adianta Sharna Liguz. 

Ela acrescenta que a Trojan Jamaica, depois de lançar discos de pioneiros jamaicanos, começa a gravar músicos da cena contemporânea do reggae em Kingston: “Já trabalhamos com artistas jovens e brilhantes, como Jesse Royal e Rygin King, ambos estão no disco de U-Roy. A ilha produz uma quantidade incrível de talentos continuamente, estamos excitados com o que teremos no futuro”, diz Sharna. 

SUSTENTABILIDADE
Os dois também diferem dos poderosos executivos de gravadoras tradicionais pela preocupação com a questão climática, refletida no estúdio que montaram em Londres e que emprega apenas energia solar: “Temos um problema global muito sério. Acredito que a arte tem o poder de disseminar vibrações positivas. Todos nós podemos salvar o planeta do nosso jeito, com música e manifestações, ou tomando uma decisão pessoal. Acredito no povo lutando pelo que acredita. Me choca e me dá medo que estamos pra encarcar um futuro sem que haja preocupação com o meio ambiente. Os governantes do mundo precisam parar com essa porra de ser contra de levar a coisa a sério. Temos o conhecimento, temos a tecnologia, por que não a usamos?”, questiona a australiana. 

Ocupados com a Trojan, a dupla deixou a Sshh em segundo plano, isto quando a banda estava no limiar de se popularizar na Europa, com críticas favoráveis aos seus discos: “Agradeço pelo reconhecimento, é sempre legal quando comentam o que você faz. Mas, honestamente, estamos esgotados pelo trabalho produzindo esses discos de lendas jamaicanas. De toda forma, a Sshh não permanecerá em silêncio por muito tempo”.

Claro, entrevista com o filho de um beatle é inevitável, acaba no assunto. Zak Starkey não deve aguentar mais responder sobre o tema, mas não esconde sua admiração por Sir Richard Starkey: “Meu pai me deixa muito orgulhoso, eu o amo muito, e me sinto feliz por ele ser o maior baterista do rock de todos os tempos”. 

SOLID GOLD
“Cada música no disco de U-Roy é um single de sucesso”, preconiza Zak Starkey sobre o desempenho esperado para o disco póstumo do pioneiro regueiro. O álbum começou a ser gravado em 2018, e estava previsto para ser lançado nos primeiros meses de 2020, seguido de mais uma turnê internacional. A pandemia atrapalhou os planos, e Solid gold, lançado em 16 de julho de 2021, acabou se tornando uma celebração à memória de U-Roy, parte importante do alicerce sobre o qual se desenvolveu o reggae na década de 1960. 

Em torno dele, Sharna e Zak reuniram nomes importantes das várias variáveis do reggae, uma lista que inclui, entre outros, Ziggy Marley, Mick Jones (The Clash), David Hinds (Steel Pulse), Sly & Robbie, Big Youth, Jesse Royal, Rygin King. Zak Starkey explica por que não há brasileiros no disco: “A gente não conhecia brasileiros, feito Bnegão, em 2018, quando fizemos Solid gold com U-Roy. Se conhecesse, Bnegão certamente estaria no disco. Foi uma honra tocar com ele, é o cara, e gente muito boa”.



Solid gold é exatamente o que Starkey diz sobre ele: um disco em que todas as faixas têm potencial radiofônico. Feito sob medida, com canções clássicas, participações acertadas e muito bem-produzido. Abre com Trenchtown rock, de Bob Marley, de 1973, segue com Man next door, um rocksteady, de John Holt & Paragons (1968), Soul rebel, lançado pelos Wailers, em 1970, ou Stop that train, cuja gravação original, um ska, é de 1965, com The Spanishtonians. O repertório é didático, conta seis décadas de evolução da música jamaicana, atualizando as canções com a sonoridade do século XXI.

JOSÉ TELES é escritor e jornalista especializado em música. Foi crítico de música do Jornal do Commercio de 1987 a 2020 e já escreveu sobre o assunto em diversas publicações do país.

Publicidade

veja também

Alceu ganha exposição em Olinda

Sem Coração chega aos cinemas

Mergulho no fascínio de Clarice