“O normal é a gente achar que as pessoas estão mais atentas e ligadas, uma vez que o cinema brasileiro está sob ataque. Mas eu não vejo bem assim. Vejo que as pessoas, o público – não só no cinema – não possuem a verdadeira noção da sua importância enquanto telespectadores. O filme fala sobre isso: o músico precisa de público, assim como cinema precisa de espectadores. Estamos vivendo um verdadeiro massacre de notícias sobre ataques à área e, por incrível que pareça, isso vai amortecendo as pessoas e elas deixam de perceber o papel importante que elas têm para levantar um artista”, comenta o diretor Gustavo Galvão em entrevista concedida à Continente.
Ainda temos a imensidão da noite é construído por dispersos momentos de impacto, marcados predominantemente pela música emocionalmente intensa da banda, que toca de verdade em todas as apresentações do audiovisual. São nesses recortes que o filme mostra a que veio, transmitindo o sentimento de revolta dos seus personagens. Não seria para menos: os integrantes da Animal Interior não são atores de formação, mas músicos que passaram meses num processo de imersão para a criação de uma unidade sonora que despertasse no público as tão procuradas reações físico-emocionais. Nesse sentido, o filme alcançou sucesso. Nos espaços entre as interpretações musicais do grupo, porém, residem problemas narrativos potencializados por uma atuação que não atende à proposta do filme.
Karen (Ayla Gresta) e Artur (Gustavo Halfeld). Foto: André Carvalheira/Divulgação
Apresenta-se um filme, então, que pode ser entendido como uma grande declaração de amor à arte e ao artista, em especial o músico. “É uma das primeiras profissões que se torna alvo nesse momento de ataques, pois há a imagem do músico como vagabundo. Em 2011, eu tive a ideia de discutir o que aconteceu com o projeto de Brasília, um projeto que não funcionou. A música surgiu como um caminho perfeito para essa discussão, pois a cidade ganhou uma identidade a partir dela. Eu sei, pois vivi lá; ela não tinha uma essência ou alma até que uma geração de roqueiros deu voz a uma geração inteira. Foi uma cidade criada para ser de vanguarda, mas pouco depois um golpe militar desvirtuou o projeto. É uma cidade que deveria abrir o Brasil para o interior, mas se tornou conveniente para o Governo se isolar”, diz o diretor.
A construção do enredo não encontrou o ritmo ideal. O fator, porém, não impede que as provocações do longa atravessem as barreiras do espectador. O drama, demasiadamente teatral em algumas cenas, se faz valer por mostrar problemas que atingem uma sociedade doente de capitalismo, sufocada por se sujeitar à desprazerosas maneiras de sobrevivência em um ambiente que acaba por secar, também, as relações entre amizades, amores e familiares. Dessa forma, vendo seu amor não correspondido por Brasília e pelas pessoas que habitam a capital federal, Karen parte para Berlim, cidade para a qual Artur (Gustavo Halfeld), seu namorado e guitarrista da banda, já havia seguido — ou fugido — com Martin (Steven Lange, cuja atuação se destaca), seu amigo alemão. Lá, ela se depara com outras problemáticas, pessoais ou não.
“Eu sempre quis falar sobre Brasília conversando com um referencial, como forma de fazer um paralelo. Além disso, gosto de colocar personagens em deslocamento, pois é assim que eles se mostram como são de verdade. Para Karen, foi importante sair de Brasília para entender os problemas da cidade”, comenta Galvão.
Ainda temos a imensidão da noite, no sentido do deslocamento de personagens, acaba por provocar um paralelo com a cena clássica de diálogo de Vidas secas (1963), no qual a aridez do ambiente se funde à das pessoas. Mesmo no momento de “chuva”, a seca interior não permite o diálogo claro.
Gustavo Galvão dirige os atores Steven Lange Pit Bukowski e Matthias Rheinheimer.
Foto: Javier Chiocchio/Divulgação
Nesse sentido, o diretor explica que Brasília e Berlim possuem uma história parecida. A cidade alemã estava destruída após a Segunda Guerra Mundial e, dessa forma, foi sendo reconstruída nas décadas posteriores; ao mesmo tempo, Brasília estava sendo construída do zero. Outra curiosidade, ele aponta, é que os dois processos — a reconstrução e a construção — foram pautados pelos mesmos ideais modernistas.
“Brasília era uma cidade muito vazia, tão sombria quanto Berlim com o muro. São duas cidades machucadas pela história, que encontraram suas identidades ao mesmo tempo, nos anos 1980, quando a cena cultural explodiu. Brasília continuou sua revolução nos anos 1990, quando uma nova geração consolidou a imagem da cidade com o rock, ao mesmo em que Berlim se consolidou como uma referência musical mundial. Mas aí as coincidências acabam: Berlim continuou sua história e Brasília perdeu sua referência pro rock brasileiro. É o sintoma de algo”, aponta o cineasta.
VICTOR AUGUSTO TENÓRIO é jornalista em formação pela Universidade Católica de Pernambuco e estagiário da Continente.