Gilú Amaral, da percussão ao sopro
Músico olindense lança o disco instrumental ‘O sopro e a percussão’, que passou por um processo original de criação, para gerar uma conversa com os metais
TEXTO Leonardo Vila Nova
18 de Maio de 2023
Gilú tem mais de 200 discos e turnês em sua “ficha de serviços prestados” à música pernambucana
Foto Hermes Costa Neto/Divulgação
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Menino de Olinda, Gilsinho – ou melhor, Gilú Amaral – começou na percussão aos 12 anos de idade. Parecia inevitável que aquela convivência ainda pueril, mas afetivamente tão íntima com brinquedos populares, como maracatus, afoxés e cocos de roda, fosse transformá-lo em um dos artistas da Marim. Mesmo assim, não parou aí. Hoje, aos 38, coleciona uma trajetória rica e plural como percussionista, produtor musical, compositor de trilhas para cinema e teatro e também fomentador cultural, graças à curiosidade e à inventividade artística que, desde lá, da pré-adolescência, o fez procurar ir além do trivial, do que está posto.
Gilú carrega na bagagem a criação da Orquestra Contemporânea de Olinda, com a qual excursionou pelo mundo e com a qual teve indicação ao Grammy, em passagem festejada pelos Estados Unidos, no Linconl Center, e registrada pela crítica especializada no The New York Times. Carrega também o projeto instrumental Wassab (com Juliano Holanda e Hugo Linns), a idealização e curadoria do festival de música Aurora Instrumental, além da contribuição a diversos artistas, como Naná Vasconcelos, Renata Rosa, Bonsucesso Sambaclube, Banda de Pau e Corda, Ave Sangria e, mais recentemente, o duo com o DJ Rimas Inc. Hoje, são mais de 200 discos e turnês em sua “ficha de serviços prestados” à música pernambucana.
Em todos os trabalhos que conduziu e/ou cuja participação é creditada, sempre ficou evidente o papel de relevo que a percussão teve e tem na música de Gilú. Ao lançar o primeiro álbum sob sua assinatura – Peji (2018), que trazia mais uma sonoridade de banda, com alguns convidados nos vocais, como Erica Natuza, Nilton Jr, entre outros –, o artista já vinha gestando O sopro e a percussão. O futuro trabalho agregaria, através de suas mãos, sons de vários territórios do mundo, passando, obviamente, pela medula espinhal africana – fonte primordial e inconteste de ritmos e gêneros que dela derivaram em todo o planeta – e pela brasilidade que lhe deu “régua e compasso” tão originais e, também, sagacidade musical.
O SOPRO E A PERCUSSÃO
Lançado no último mês de março, o seu novo disco traz a percussão como protagonista, com toda sua força – e também nas minúcias, em esmerado laboro – aliada ao som dos sopros e metais, com arranjadores/músicos convidados, todos pernambucanos. Com produção musical de Gilú, são sete faixas gravadas, mixadas e masterizadas no Estúdio Carranca, sob condução técnica de Carlinhos Borges, entre 2017 e 2021. Com uma pequena inversão (ou subversão) de fluxo do processo comum: Gilú gravou, primeiro, todas as percussões de todas as músicas. E um “desafio”: os arranjadores convidados criariam em cima dessas percussões.
“O ritmo é o começo de tudo. E mais as convenções, os andamentos, os compassos, foi tudo decidido por mim. Daí, a melodia, claro, veio acrescentando e complementando esse quebra-cabeça”, comenta o artista. “Claro, tem o metal, o sopro, mas se tirar, já existe uma música ali, só com a percussão.” Lembrando que, mesmo na percussão, ao contrário do que o senso comum possa imaginar, há instrumentos melódicos, como o hang drum, a m’bira.
Os arranjadores convidados? Um time de primeira linha: Henrique Albino, Ivan do Espírito Santo, Parrô Mello e Alexandre Rodrigues (Copinha). Cada qual se deparou com as músicas percussivas criadas por Gilú e fez sua parte, o que resultou numa obra que traz ecos de Moacir Santos e, por consequência, de Letieres Leite, Hermeto Paschoal e, como não poderia deixar de ser, Naná Vasconcelos, pedra fundamental da percussão contemporânea brasileira.
Considerando que, em meio ao processo, tivemos um período pandêmico paralisando, cancelando e/ou adiando projetos mundo afora, Gilú explica o porquê de um total de cinco anos para a feitura do disco: “Eu gravei minhas percussões em dois dias, lá em 2017. Depois, foram os metais/sopros, pois tinha que ter toda uma logística, pelo arranjador, que tem o tempo dele e tal, e foi um disco feito na ‘brotherança’, não tinha muita grana, então eu tinha que esperar todo o cenário melhor do estúdio, de juntar todos os músicos”.
O resultado é um disco essencialmente plural em sua sonoridade. Cada faixa nos leva a uma atmosfera, a um território diferente, ou até uma intersecção de territórios, em amálgama. Aqualtune é a portentosa faixa que abre o disco, foi a primeira gravada por Gilú. Em parceria com Henrique Albino, a música homenageia a princesa congolesa que se tornou líder quilombola no Brasil. Nela, evoca-se o oeste africano – Guiné, Senegal etc., com a presença dos tambores de mão (congas, n’goma, ilu) e de baquetas e mudanças de compasso, em que Gilú acaba criando um ritmo original, mas, obviamente, derivado dessa espinha dorsal africana.
Foto: Hermes Costa Neto/Divulgação
Com influências do norte da África, escutamos Mourisca – terceira faixa e single lançado um mês antes do álbum –, que traz o derbak e o pandeiro (instrumentos originalmente árabes) dando a liga durante toda a música, assim como o arranjo de sopros característico de Henrique Albino. Outra faixa com Albino é a excelente Saudações às deusas, que, segundo Gilú, traz uma energia feminina. Nela, ouvem-se, em especial, o berimbau, a m’bira e os tambores graves, e também uma “conversa” de palmas. Albino alterna-se entre saxes, pífano e clarinete.
Em parceria com Alexandre Rodrigues (Copinha), a segunda faixa do disco é Encontro de culturas, que tem uma base inicial inspirada no tambor de crioula, do Maranhão, e também segue por um cenário mais rural. Ao longo da música, nos soa uma “peleja” entre o pífano e o clarinete, com a base rítmica de Gilú ambientando. São “tambores ‘mântricos’”, diz o percussionista. Ouvem-se ilus, bombinho de maracatu, cowbell, um duo de congas e djembê, a m’bira. “Um pouco de África com Brasil. Tem uma coisa do tambor de crioula, depois um coco rural, e outra parte em que já misturo uma coisa de Moçambique, o Nagô daqui.”
Como bom filho da terra, Gilú gravou Um passeio por Olinda, parceria com o maestro Ivan do Espírito Santo, nome à frente dos sopros da Orquestra Contemporânea de Olinda. O título é autoexplicativo. Ouça, feche os olhos e veja/sinta a Marim dos Caetés e toda sua riqueza, que fizeram dela Patrimônio Histórico e Cultural da Humanidade pela Unesco, em 1982, e Capital Brasileira da Cultura, em 2005.
Mardi grass é a faixa “mais pop” do álbum. Dançante, “groovada”, ela remete ao encantamento de Gilú ao conhecer o carnaval de New Orleans, nos Estados Unidos. A parceria nesta é com o saxofonista Parrô Mello. Encerrando o disco, em mais um duo com Henrique Albino, a faixa (quase vinheta) Pernamcubanos, uma “rumba à Gilú Amaral” em que escancara a relação praticamente instintiva entre Pernambuco e Cuba. Nela, ganham destaque as congas e o hang drum, instrumento suíço inspirado no steel drum, original de Trinidad e Tobago e muito usado na música cubana. É, também, uma homenagem/alusão ao documentário de mesmo nome, dirigido por Nilton Pereira, em 2012.
Tudo isso faz de O sopro e a percussão um disco de sons diaspóricos. Gilú pretende levar, em breve, o show completo do disco para os palcos, com as devidas adaptações instrumentais. Uma oportunidade de sentir, ao vivo, esse passeio por várias partes do mundo, através das mãos e dos pulmões, das mentes e inspirações de gente que fez desse, sem dúvida, um dos trabalhos mais importantes para a percussão e a música instrumental pernambucana e brasileira.
LEONARDO VILA NOVA, músico e jornalista cultural.