As histórias e os comentários são embalados por takes do cotidiano da comunidade – crianças brincando e tomando banho de rio, adultos caçando e tendo suas refeições – e da paisagem bruta, do amanhecer e do pôr do sol, que bem retratam o tempo e a permanência daquele lugar e daquele povo. Em um certo trecho, por exemplo, Carlo, que passou anos naquele território, comunica-se na língua do povo originário com um grupo de crianças. Ele explica a dificuldade de locomoção de Andujar, devido à sua idade, descortinando, assim, uma relação com camadas de intimidade, partilha, respeito e confiança, bastante consolidada entre aquelas pessoas.
Na luta de Claudia Andujar, a principal arma foi sua fotografia. Além de materializar prova de vida humana naquele vastidão de natureza viva, conhecida pelos yanomami como Urihi-a (a “terra-floresta”), dela brotou um conjunto de ensaios que se tornou referência na iconografia das artes visuais no mundo, a ponto do maior museu de arte contemporânea do Brasil, Inhotim, dedicar-lhe um pavilhão permanente, com mais de 300 imagens, inaugurado em 2015.
Algumas das preciosidades do seu acervo, intercaladas com os olhares dos fotógrafos Marcelo Lacerda e Pio Figueiroa, funcionam em Gyuri como a linha que costura a narrativa, conciliando memórias de afeto e de violência, e também atribuindo ao filme um caráter onírico. Afinal, vivenciar e escapar de um genocídio – o Holocausto – para engajar-se em uma luta contra um outro genocídio, o indígena, parece uma vida criada no terreno da ficção.
Foto: Marcelo Lacerda/Divulgação
No entanto, essa missão resultou na demarcação de territórios muito reais. À frente da Comissão Pro Yanomami, Andujar testemunhou o reconhecimento oficial das terras espalhadas entre os estados de Roraima e Amazonas, em 1992. As legendas finais do filme nos trazem os números: a terra indígena (TI) Yanomami cobre 96.650 km2 de floresta tropical brasileira, onde vive uma população estimada em 25mil pessoas, distribuídas em 322 aldeias.
Extratos de Gyuri haviam sido exibidos em 2018, no Pequeno Encontro da Fotografia, em Olinda, antecedidos por uma fala da realizadora, na qual defendeu que o trabalho de Claudia Andujar não se trata de uma obra, mas de uma “vida-obra”. Em 2019, uma primeira versão do documentário também participou de uma projeção fechada na Noruega. Já em 2020, a Fondation Cartier pour l’Art Contemporain, na França, recebeu uma versão especial para compor uma exposição.
No mesmo ano, o filme foi convidado pelo Festival É Tudo Verdade, em São Paulo, para uma sessão seguida de debate com a presença da protagonista, hoje com 90 anos. O plano acabou sendo atropelado pela pandemia do novo coronavírus, frustrando a expectativa da realizadora e da equipe nessa grande oportunidade de realizar uma homenagem e um manifesto, segundo texto publicado nesta Continente Online.
Agora, Gyuri poderá ser visto pelo grande público e a homenagem, além de consumada, será estendida de Claudia a Bruno Pereira e Dom Phillips, um mês após suas mortes por uma causa: a defesa dos TIs do Vale do Javari, na Amazônia. O lançamento do filme, em si, pode ser um manifesto: pela proteção etnoambiental, pela segurança dos povos originários, pela defesa dos seus territórios. Contra o avanço do garimpo, recentemente intensificado nas TI Yanomami. Contra a negligência e conivência dos dirigentes do Brasil.
Gyuri é o primeiro longa de Mariana Lacerda, que rodou os curtas documentais Menino-Aranha (2008), A vida secreta das igrejas de Olinda (2012), Pausas silenciosas (2013) e Baleia Magic Park (2015). Ao mergulhar no projeto, ela viu que ali a despertou, também, para a militância em defesa dos povos originários. “Me tocaram muito as memórias da Claudia, através das quais pude acessar também o mundo Yanomami. Uma vez que você acessa territórios indígenas, não só fisicamente, mas espiritualmente e emocionalmente, o caminho do ativismo é irreversível”, comenta a realizadora.
Hoje a realizadora e artista faz parte do coletivo Barreira Y, junto com Isabella Guimarães e Gisela Motta, que produziu o filme O sopro dos xapiri, a partir de projeções feitas em parceria com o Instituto Socioambiental – ISA e o Fórum de Lideranças Yanomami Ye’Kwana, para entrega ao Congresso Nacional da petição #foragarimpoforacovid, com quase meio milhão de assinaturas. O trabalho foi realizado a partir de desenhos de Joseca Yanomami e frases de Davi Kopenawa. Mariana cuida também do projeto Reviravolta de Gaia, ao lado da artista Rivane Neuschwander.
A mudança de paradigmas advinda da pós-modernidade tem provocado muitos artistas a repensar seus papéis no sistema da arte. Testemunhamos produções artísticas que, se antes partiam de uma visão estritamente eurocêntrica, hoje refletem epistemologias mais abertas, incorporando a produção indígena (viva Jaider Esbell!), ou cocriando com os povos originários (um salve a Vincent Carelli). É a arte se pondo como canal para trabalhar as questões geopolíticas que sempre impregnaram a nossa brasilidade.
Isso é a essência de Gyuri. Ao contar uma história em que húngaros, italianos, europeus, brasileiros, yanomami e gente de diferentes culturas se uniram, e assim inventaram uma cosmogonia própria de resistência e afeto muito além das fronteiras geográficas, no fim de tudo nos prova que “a terra continua uma só”, como ensina Davi Kopenawa.
MARIA CHAVES, fotógrafa, produtora cultural, mestra em Design e coordenadora do Pequeno Encontro da Fotografia.