Resenha

Claudia Andujar: vida-obra em defesa dos yanomami

Estreia ‘Gyuri’, filme de Mariana Lacerda sobre a fotógrafa que ajudou a proteger e demarcar, em militância de mais de 30 anos, a terra indígena do povo amazônico

TEXTO Maria Chaves

08 de Julho de 2022

Claudia Andujar e Davi Kopenawa

Claudia Andujar e Davi Kopenawa

Foto Marcelo Lacerda/Divulgação

[conteúdo exclusivo Continente Online] 

Finalmente, Gyuri (Brasil, 2019) estreia nos cinemas do Recife e de várias capitais brasileiras, como Salvador, Rio de Janeiro, São Paulo e Porto Alegre. O filme da realizadora pernambucana Mariana Lacerda, com base na vida e obra da fotógrafa Claudia Andujar, tem produção da Jaraguá Produções e da Bebinho Salgado 45. 

O termo “finalmente” foi escolhido para iniciar este texto não apenas com intuito de jogar luz e celebrar a superação das dificuldades de se concluir um longa-metragem no atual cenário desolador da cultura no Brasil – o documentário tem patrocínio do Rumos Itaú Cultural, por meio da Lei Federal de Incentivo à Cultura; incentivo do Prodecine e do Funcultura Audiovisual do Governo de Pernambuco; e apoio da Associação Hutukara. O termo foi usado também para ressaltar o quanto o work in progress acabou abrindo um caminho próprio, gestado no seu tempo, em territórios e distâncias (geográficos ou simbólicos) necessários, para então se tornar maduro e nascer suave e naturalmente em forma de uma obra cinematográfica. 

Mariana Lacerda plantou a semente de Gyuri quando entrevistou Claudia Andujar sobre sua trajetória artística, durante a montagem da exposição Marcados, na Fundação Gilberto Freyre, no Recife, em 2013. Naquela ocasião, pôde conhecer melhor a história de Andujar, contada por ela mesma: a infância roubada pela guerra, a família dizimada pelo Holocausto e a fuga para o Brasil, onde se tornou ativista da causa indígena e uma das mais respeitadas fotógrafas do país. Dois anos depois, em 2015, concretizou-se a ideia de se gravar uma nova entrevista, desta vez em húngaro – a língua materna de Andujar –, de modo a provocar um acesso mais profundo às suas memórias de infância, contando com a interlocução do filósofo Peter Pál Pelbart, seu compatriota e, como ela, radicado há muito em solo brasileiro. 

O que viria a se tornar a primeira parte do filme tem como locação o apartamento da fotógrafa, basicamente com planos fechados em seu rosto, revelando cada emoção expressa na sua face, ao esmiuçar fatos do início da sua vida. As palavras aqui são o personagem principal; reativam uma língua, interpretam um passado, suscitam desconforto, nostalgia e também serenidade. Escapam em pausas silenciosas, em busca de uma pronúncia empoeirada ou de memórias muito bem-guardadas. Descrevem perdas, dor e amor – personalizado em um garoto de nome Gyuri. 

A ressaca daquele improvável diálogo, o reavivamento daquela narrativa impressionante, e talvez a comoção e o sentimento de urgência frente ao atual estado das coisas, catapultaram o projeto a um novo voo. Rumo à Amazônia. Acompanhada de uma equipe descrita por ela mesma como “afetiva”, a diretora aterrissou em terras Yanomami para promover e registrar o reencontro do povo de Davi Kopenawa com sua mãe. Sim, é que assim Andujar é chamada pelos yanomami. Não aquela figura materna que leva a criança no colo, mas a que carrega a alma dos filhos com ela, segundo nos explica no filme, do alto da sua sabedoria xamã, Kopenawa, um dos autores de A queda do céu (Companhia das Letras, 2015). 


Claudia entre os yanomami (à dir.) e o amigo Carlo Zacquini (à esq.). Foto: Marcelo Lacerda/Divulgação

Essa alcunha não lhe é atribuída somente por carinho. As terras indígenas Yanomami podem assim hoje ser chamadas graças à sua militância ao longo de mais de 30 anos, sempre ao lado do amigo italiano Carlo Zacquini. O objetivo era a demarcação, a qual o governo brasileiro, quando ditadura militar, excluía arbitrariamente de seu projeto repetidor da colonização. O resgate desses assuntos é o cerne das preciosas conversas entre Kopenawa, Andujar e Zacquini, sob a coberta de palhas da enorme oca da aldeia Demini, cercados por redes e pela curiosidade de velhos e crianças.

As histórias e os comentários são embalados por takes do cotidiano da comunidade – crianças brincando e tomando banho de rio, adultos caçando e tendo suas refeições – e da paisagem bruta, do amanhecer e do pôr do sol, que bem retratam o tempo e a permanência daquele lugar e daquele povo. Em um certo trecho, por exemplo, Carlo, que passou anos naquele território, comunica-se na língua do povo originário com um grupo de crianças. Ele explica a dificuldade de locomoção de Andujar, devido à sua idade, descortinando, assim, uma relação com camadas de intimidade, partilha, respeito e confiança, bastante consolidada entre aquelas pessoas. 

Na luta de Claudia Andujar, a principal arma foi sua fotografia. Além de materializar prova de vida humana naquele vastidão de natureza viva, conhecida pelos yanomami como Urihi-a (a “terra-floresta”), dela brotou um conjunto de ensaios que se tornou referência na iconografia das artes visuais no mundo, a ponto do maior museu de arte contemporânea do Brasil, Inhotim, dedicar-lhe um pavilhão permanente, com mais de 300 imagens, inaugurado em 2015. 

Algumas das preciosidades do seu acervo, intercaladas com os olhares dos fotógrafos Marcelo Lacerda e Pio Figueiroa, funcionam em Gyuri como a linha que costura a narrativa, conciliando memórias de afeto e de violência, e também atribuindo ao filme um caráter onírico. Afinal, vivenciar e escapar de um genocídio – o Holocausto – para engajar-se em uma luta contra um outro genocídio, o indígena, parece uma vida criada no terreno da ficção.


Foto: Marcelo Lacerda/Divulgação

No entanto, essa missão resultou na demarcação de territórios muito reais. À frente da Comissão Pro Yanomami, Andujar testemunhou o reconhecimento oficial das terras espalhadas entre os estados de Roraima e Amazonas, em 1992. As legendas finais do filme nos trazem os números: a terra indígena (TI) Yanomami cobre 96.650 km2 de floresta tropical brasileira, onde vive uma população estimada em 25mil pessoas, distribuídas em 322 aldeias. 

Extratos de Gyuri haviam sido exibidos em 2018, no Pequeno Encontro da Fotografia, em Olinda, antecedidos por uma fala da realizadora, na qual defendeu que o trabalho de Claudia Andujar não se trata de uma obra, mas de uma “vida-obra”. Em 2019, uma primeira versão do documentário também participou de uma projeção fechada na Noruega. Já em 2020, a Fondation Cartier pour l’Art Contemporain, na França, recebeu uma versão especial para compor uma exposição.

No mesmo ano, o filme foi convidado pelo Festival É Tudo Verdade, em São Paulo, para uma sessão seguida de debate com a presença da protagonista, hoje com 90 anos. O plano acabou sendo atropelado pela pandemia do novo coronavírus, frustrando a expectativa da realizadora e da equipe nessa grande oportunidade de realizar uma homenagem e um manifesto, segundo texto publicado nesta Continente Online

Agora, Gyuri poderá ser visto pelo grande público e a homenagem, além de consumada, será estendida de Claudia a Bruno Pereira e Dom Phillips, um mês após suas mortes por uma causa: a defesa dos TIs do Vale do Javari, na Amazônia. O lançamento do filme, em si, pode ser um manifesto: pela proteção etnoambiental, pela segurança dos povos originários, pela defesa dos seus territórios. Contra o avanço do garimpo, recentemente intensificado nas TI Yanomami. Contra a negligência e conivência dos dirigentes do Brasil. 

Gyuri é o primeiro longa de Mariana Lacerda, que rodou os curtas documentais Menino-Aranha (2008), A vida secreta das igrejas de Olinda (2012), Pausas silenciosas (2013) e Baleia Magic Park (2015). Ao mergulhar no projeto, ela viu que ali a despertou, também, para a militância em defesa dos povos originários. “Me tocaram muito as memórias da Claudia, através das quais pude acessar também o mundo Yanomami. Uma vez que você acessa territórios indígenas, não só fisicamente, mas espiritualmente e emocionalmente, o caminho do ativismo é irreversível”, comenta a realizadora.

Hoje a realizadora e artista faz parte do coletivo Barreira Y, junto com Isabella Guimarães e Gisela Motta, que produziu o filme O sopro dos xapiri, a partir de projeções feitas em parceria com o Instituto Socioambiental – ISA e o Fórum de Lideranças Yanomami Ye’Kwana, para entrega ao Congresso Nacional da petição #foragarimpoforacovid, com quase meio milhão de assinaturas. O trabalho foi realizado a partir de desenhos de Joseca Yanomami e frases de Davi Kopenawa. Mariana cuida também do projeto Reviravolta de Gaia, ao lado da artista Rivane Neuschwander. 

A mudança de paradigmas advinda da pós-modernidade tem provocado muitos artistas a repensar seus papéis no sistema da arte. Testemunhamos produções artísticas que, se antes partiam de uma visão estritamente eurocêntrica, hoje refletem epistemologias mais abertas, incorporando a produção indígena (viva Jaider Esbell!), ou cocriando com os povos originários (um salve a Vincent Carelli). É a arte se pondo como canal para trabalhar as questões geopolíticas que sempre impregnaram a nossa brasilidade. 

Isso é a essência de Gyuri. Ao contar uma história em que húngaros, italianos, europeus, brasileiros, yanomami e gente de diferentes culturas se uniram, e assim inventaram uma cosmogonia própria de resistência e afeto muito além das fronteiras geográficas, no fim de tudo nos prova que “a terra continua uma só”, como ensina Davi Kopenawa.


MARIA CHAVES, fotógrafa, produtora cultural, mestra em Design e coordenadora do Pequeno Encontro da Fotografia.

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