Resenha

Baco Exu é 'Bluesman'

Com nove faixas, segundo álbum do artista baiano vai do rap ao blues em uma sonoridade que quebra várias fronteiras. Ele é uma das principais atrações do Guaiamum Treloso Rural

TEXTO Erika Muniz

08 de Fevereiro de 2019

Baco Exu do Blues

Baco Exu do Blues

Foto Alex Takaki/Divulgação

[conteúdo exclusivo Continente Online]

Eu sou o primeiro ritmo a formar pretos ricos.
O primeiro ritmo que tornou pretos livres.
Bluesman, Baco Exu do Blues

O que é ser bluesman? É ser o inverso do que os outros esperam. É virar o jogo social que tenta impor ordens. É romper com suposições cravadas em estereótipos, mas é também contrariar as estatísticas. Bluesman, título do segundo álbum de estúdio do baiano Baco Exu do Blues, remete à canção homônima do ícone máximo do blues, B.B. King, mas vai além e traz novos significados. As nove faixas distribuídas em 30 minutos compõem um mosaico de conceitos desenvolvidos pelo próprio artista. Imerso numa iconografia plena de referências à cultura pop, literatura, música e política, com Bluesman, Baco sugere o que se espera de muitas obras de arte: subverter, levantar debates, romper territórios estéticos pré-estabelecidos, questionar o status quo. Mesmo que, para isso, o artista exponha suas contradições, conquiste a indústria fonográfica, receba várias críticas, ou inúmeros elogios.

Um dos que reverenciou Bluesman foi Caetano Veloso – referência de Baco na hora de compor. Durante entrevista para sua coluna no portal Mídia Ninja, Caetano defende que Baco é um “acontecimento da música brasileira atual”, desde o lançamento de Esú, álbum de estreia, em 2017. Nesses dois anos, aliás, a rotina de Diogo Moncorvo (nome de batismo de Baco Exu do Blues), 23 anos, preto, nordestino nascido em Salvador, mudou completamente. Com o merecido reconhecimento sobre sua música, a agenda segue lotada de entrevistas e shows pelo Brasil. Esú integrou algumas listas de melhores álbuns do país e, com ele, o baiano conquistou duas categorias no Prêmio Multishow: Revelação e Música do Ano, com Te amo disgraça. Além disso, ele tem sido atração constante no circuito de festivais de música independente do Brasil, como o Guaiamum Treloso Rural, que acontece na Região Metropolitana do Recife neste sábado (9/2).



Com Bluesman, lançado em novembro do ano seguinte, o sucesso não tem sido diferente. Desta vez, já com seu público cativo, o trabalho é o Melhor Disco do Ano segundo a revista Rolling Stone Brasil. Mesmo sendo lançado aos 45 minutos do segundo tempo de 2018. Da atual cena do rap nacional, figuram a tradicional lista da publicação o mineiro Djonga, com O menino que queria ser Deus (6º lugar); o pernambucano Diomedes Chinaski, com seu Comunista rico (32º lugar) e o carioca Bk’, cujo álbum Gigantes conquistou a 21ª colocação.

Se a ideia inicial, que deu origem a Bluesman, era “fazer um álbum de blues sem necessariamente fazer músicas do gênero”, como pontua o compositor, o resultado é um produto denso e sofisticado, oriundo de um trabalho perceptivelmente minucioso. A começar pela criação das metáforas que alinhavam as canções, passando pelas escolhas dos beats – assinados por DKVPZ, JLZ e Portugal – e pelo modo como, em diversos momentos, o álbum flerta com vários gêneros da música mundial.

Se não dá para classificá-lo somente como álbum de blues, tampouco é possível afirmar que seja um disco apenas de rap, mas este está ali bem presente. Na forma que o baiano compõe, como levanta isso na voz, no flow, ou quando funde forma e referências do real, é no rap que ele foi buscar. No entanto, Baco dispensa quaisquer classificações, afinal, isso é o que se espera de um bluesman. “Sou exponente da música contemporânea nacional”, pontua em entrevista à Continente, afirmando que o que faz é música, antes de tudo. “Seu rótulo não toca na minha poesia”, solta em um dos versos da faixa Kanye West da Bahia.

VISUAL
Neste segundo disco de Baco, um dos pontos que chama atenção é, sem dúvida, o projeto visual, que acaba atribuindo ainda mais referências e densidade ao álbum. Criar uma obra que propõe diálogos entre os campos da fotografia, do audiovisual e da música coloca o soteropolitano em sintonia com Childish Gambino, por exemplo. Em 2018, com seu aclamado clipe This is America com mais de 400 milhões de visualizações no Youtube , o norte-americano realizou tudo o que se espera de uma obra-prima. Neste mundo cada vez mais virtual, a circulação de música acontece sobretudo através dos streamings e das redes sociais. Mesclar linguagens para fortalecer o conceito de um produto artístico pode ser algo arrebatador e potente. A fotografia da capa de Bluesman, assinada pelo paulistano João Wainer, é exata, pois sintetiza bem tudo o que está proposto através dos versos e das sonoridades. A escolha precisa é de um arquivo de 2002, que retrata um homem negro em pose à la B.B. King, com sua guitarra. Seu palco imaginário, no entanto, não são as esquinas de Memphis, onde o “Blues Boy” (daí a abreviação B.B.) presenteou o mundo com seus primeiros acordes. Na fotografia de Wainer, o palco é o Carandiru, presídio de São Paulo, onde, em outubro de 1992, sediaria uma das ações mais truculentas e assassinas da história do sistema prisional brasileiro. Um massacre cujo saldo foram mais de 100 presos mortos.

A preocupação com os elementos visuais na composição da obra não é, no entanto, exclusividade deste segundo álbum, pois em Esú já saltava aos olhos. Uma seleção de belíssimas fotografias de autoria do conterrâneo Mario Cravo Neto, no livro Laróyè (2000), ilustram o disco de estreia. De maneira crítica, as relações humanas são tensionadas diante do divino. Cenas do cotidiano de Salvador servem para reverenciar o orixá Exu. Na capa de Esú, por exemplo, um homem negro está de braços abertos diante da Igreja da Ordem Terceira de São Francisco, em Salvador.



Se no mais recente Bluesman, o verso sugere “Jesus é blues” – uma crítica de que Cristo seria negro, mas quando assimilado pelas religiões cristãs, historicamente hegemônicas, o que se apresenta é um homem branco de olhos azuis –, no anterior Esú, o compositor havia aproximado, na ilustração da capa, Jesus de Exu, o orixá mais humano e diversas vezes incompreendido. Além das fotos, que compõem o encarte de Bluesman, Baco disponibilizou no Youtube um curta-metragem cujo roteiro, relacionado às faixas do disco, foi escrito por ele mesmo.

Cada vez mais consolidada, a poética de Baco Exu do Blues se caracteriza pelas vastas referências, a ironia e a lascívia. Além de dialogar com as artes visuais, através de seus versos e linhas, ele também constrói imagens. Seja quando se intitula o “Kanye West da Bahia”, quando menciona os famoso girassóis do holandês Van Gogh, ou quando faz referência ao super-herói Pantera Negra, um dos únicos personagens negros dos quadrinhos da Marvel Comics, que virou filme, em 2018.



NEM RAP NEM BLUES
Voltando ao disco, na primeira faixa homônima de Bluesman, Baco foi buscar exatamente na origem, pois traz a belíssima interpretação de Mannish Boy, por Muddy Waters (pai do blues de Chicago). Numa espécie de ruptura, ele interrompe por meio de entonação rapper com versos que retomam a história, a importância social e os desdobramentos musicais do blues. “A partir de agora, eu considero tudo blues./ O samba é blues./ O rock é blues./ O jazz é blues./ O funk é blues”, canta. Cada um dos gêneros citados carrega suas peculiaridades e respectivas origens, porém, do modo como são apresentados, Baco Exu do Blues parece sugerir que os limites entre o que é rap, jazz, samba, soul ou blues sejam rompidos. Se todos são criações provenientes da resistência do povo negro, da diáspora africana, a origem, então, seriam as Áfricas.

O megassucesso de Te amo disgraça, hit do primeiro álbum que levou o compositor à rede nacional, talvez seja devido à melodia envolvente, ao romantismo diferente da pegada mais social do resto do disco, ou, ainda, a um tom mais confessional. Assim, o artista conquistou públicos diversos para além dos que já escutam rap desde antes de Bluesman. Esse é justamente um dos pontos que fomentou críticas, por parte de rappers, ao mais recente trabalho do soteropolitano. Os que são críticos às atuais escolhas sonoras de Baco argumentam que ele estaria cedendo à vontade do mercado e esquecendo o caráter social do rap. Decerto, a estética e os discursos de Bluesman estão mais afinados ao hit de Esú, mas o baiano de língua afiada parece não se abalar com essas críticas. Bluesman é proporcionalmente mais intimista que o anterior e, apesar de polêmicas e julgamentos, Baco Exu do Blues segue experimentando sons e temáticas; buscando ocupar novos territórios e conquistar outros públicos.

Por que um artista negro tendo a oportunidade de acessar referências, obter reconhecimento profissional e ocupar espaços, muitas vezes reservados à classe média branca, incomoda alguns? Em resposta a certos questionamentos, no próprio Bluesman, Baco exalta a importância da representatividade negra e propõe reflexões sobre a maneira que a negritude normalmente é apresentada. “Eles querem o preto na favela com a arma para cima, no clipe na favela gritando cocaína. (…) Eles têm medo pra caralho de um próximo Obama”, são alguns dos versos. Em Bluesman, ninguém se resume a estatísticas. Todas as personalidades que fizeram e fazem história têm o poder, pois todos devem ter o direito de exercer suas escolhas e ser o que bem entenderem.

OUTROS PONTOS
Uma das surpresas de Bluesman é a seleção de participações especiais com novos nomes da música independente brasileira. “Todos têm vozes que carregam uma melancolia”, justifica Baco. Tim Bernardes, integrante d'O Terno, participa no piano e na voz da faixa Queima minha pele, e na guitarra alucinante de Flamingos, que, por sua vez, conta com o vocal da banda curitibana Tuyo. A canção Me desculpa, Jay Z traz a voz doce da paulistana 1LUM3, talvez o nome menos conhecido das participações. Nessa, versos como “Eu não gosto de você./ Não quero mais te ver./ Por favor não me ligue mais./ Eu amo tanto você./ Sorrio ao te ver./Não me esqueça jamais” são cantados em uníssono por Baco e sua convidada. A lírica de contradições, angústias e instabilidade dos relacionamentos contemporâneos aparece, um traço marcante da poética de Baco desde Te amo disgraça. Durante os shows da turnê, o público é outra participação nas músicas, já que cantam junto desde o show do festival Coquetel Molotov, em novembro do ano passado, em São Paulo, com poucos dias de lançamento do álbum.

Nem só de amor e melancolia, no entanto, é feito Bluesman. As faixas que trazem questões sociológicas de maneira mais explícita nas letras são Minotauro de Borges, Kanye West da Bahia e Preto e Prata. Na primeira, a percussão mais pesada aparece acústica, isso a diferencia do resto do álbum, que tem uma vibe mais eletrônica. O título é uma referência ao personagem do conto A casa de Asterión, de autoria do argentino Jorge Luis Borges.

A cantora Bibi Caetano empresta sua voz em Kanye West da Bahia, que traz o suingue das músicas latinas. Ao se intitular assim, Baco declara sua admiração ao norte-americano enquanto artista, de certo modo, transgressor. Apesar de ter uma postura crítica aos posicionamentos políticos de Kanye – ele já apoiou o atual presidente Donald Trump, cuja política xenofóbica, classicista e ultraliberal não são segredo para ninguém –, Baco confessa a admiração por reconhecer que West não faz o que esperam dele, é criativo e não gosta que lhe digam o que fazer. “Agora eu te entendo, Kanye”, canta Baco nesta faixa.

Preto e prata, penúltima canção do álbum, apresenta uma das metáforas mais contundentes de Bluesman. De seus questionamentos sobre o motivo de o ouro ser mais valorizado que a prata, apesar de ambos serem metais nobres com composição química praticamente igual, surgiu a ideia para o conceito. Uma justificativa vã e mercadológica seria a de que a prata (como o negro no Brasil) é encontrada em maior quantidade e, por isso, seria menos rara e valorizada. Os versos, nessa canção, associam a desvalorização da prata à falta de valorização do povo negro em nossa sociedade, pondo em questão o juízo racista de desvalorização do povo negro, que é velado pelo quantitativo.

Durante séculos, os símbolos e elementos que constroem a percepção social e estética ocidental partiram da ótica branca, eurocêntrica. No entanto, as produções contemporâneas de artistas, historiadores e pesquisadores negros, indígenas e LGBTQ têm apresentado novas formas de olhar, sentir, perceber e têm ainda devolvido a possibilidade de cada um narrar suas próprias histórias. No cenário artístico atual, o protagonismo de Baco, Luedji Luna, Linn da Quebrada, Djonga, Larissa Luz, Iza, Rincon Sapiência, Emicida e tantos outros nomes, para além da música, têm levantado debates, levado arte e trazido seus pontos de vista e vivências ao centro do palco. Se no combate ao racismo, é preciso que haja mais representatividade e pluralidade de interpretações, esses são alguns dos nomes que estão na linha de frente dessas mudanças. Por isso, quando Baco Exu do Blues canta Bluesman, é exatamente disso que ele está falando.


Foto: Alex Takaki/Divulgação

ERIKA MUNIZ, estudante de Jornalismo e colaboradora da revista Continente que acredita, cada vez mais, na transformação pela força da música e da dança.

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