A oportunidade de adaptar o romance de Colson Whitehead, vencedor do Pulitzer e do National Book Award, surgiu antes mesmo do lançamento de Moonlight. Jenkins se encantou pelo livro, que usa elementos de ficção científica para contar não apenas uma história de pessoas negras escravizadas, como das várias formas de racismo e violência que seres humanos negros sofriam e sofrem nos Estados Unidos. “Underground Railroad” é o nome dado a um conjunto de caminhos subterrâneos e esconderijos que ajudou milhares a fugirem das fazendas e plantações do sul do país em direção ao norte e ao Canadá. No livro, é transformado em uma ferrovia literal, subterrânea, que carrega com dignidade aqueles que conseguem escapar.
Quando ouviu falar pela primeira vez da “ferrovia subterrânea”, ainda menino, Jenkins foi levado pela imaginação infantil a pensar numa linha real, como no livro. Mas essa não foi a única razão pela qual ele quis adaptar o romance – além de sua qualidade, claro. Houve uma frase em particular: “Olhe para fora nessa viagem pelos trilhos e você verá a verdadeira face da América”. Se você está no subterrâneo e olha para fora, pensou Jenkins, o que vê? Preto. Havia tantas histórias sobre a experiência negra e como ela se relaciona à fundação dos Estados Unidos que não tinham sido contadas. Sendo assim, será que todos os norte-americanos viram a face real de seu país? Ali, o cineasta soube que tinha de fazer a adaptação, como vemos em algumas de suas entrevistas, que podemos acessar no Youtube ou no material de divulgação do filme.
Não era a sua única. O longa Moonlight – sob a luz do luar tem base na sua biografia, por se passar num conjunto habitacional em Miami, onde foi criado, e falar das dores de crescimento de um menino que precisava lidar com o vício da mãe em crack, o mesmo que vitimou tantos outros negros no país. Mas também se baseia na peça de Tarell Alvin McCraney, que, por sua vez, inclui outros elementos autobiográficos, como sua homossexualidade. Já Se a Rua Beale falasse é uma versão do livro de James Baldwin sobre o romance entre Tish (KiKi Layne) e Fonny (Stephan James), interrompido pela injusta prisão dele. Hoje o cineasta acredita ter sido um tanto reverente demais à obra de seu ídolo.
No caso de The Underground Railroad, lançado no Brasil pela editora Harper Collins, havia também uma certa trepidação, já que se trata de um dos romances mais celebrados dos últimos anos. Mas não só. O cineasta sabia que mostrar o trauma negro na tela é um assunto delicado, e muito se tem discutido sobre isso nos Estados Unidos, que a experiência negra não pode se resumir a histórias de escravização, segregação e brutalidade policial. Os afro-americanos precisavam de mais uma história sobre escravização e dor?
Não foram poucas. Só neste século já houve Doze anos de escravidão (2013), dirigido por um negro inglês, Steve McQueen, que descreve os terrores vividos por um homem negro livre capturado e escravizado, e Django livre (2012), de Quentin Tarantino, um branco nascido no Sul e criado em Los Angeles, narrando uma fábula de vingança que reescreve a história. E também Harriet (2019), dirigido por Kasi Lemmons, uma cineasta negra, sobre a abolicionista Harriet Tubman, que usou a ferrovia subterrânea. Houve a série Underground (2016-2017), sobre a mesma Ferrovia Subterrânea, e um remake de Roots – a série pioneira de 1977 sobre o trauma da escravidão –, lançado em 2016. Houve ainda o último O nascimento de uma nação (2016), de Nate Parker, sobre a rebelião de negros escravizados liderada por Nat Turner. O filme de Parker ficou no esquecimento quando veio à tona uma acusação de estupro contra o diretor, pelo qual ele foi absolvido, mas que resultou na prisão de seu amigo e no suicídio da vítima anos depois.
Focando na história de pessoas negras escravizadas, Parker dá uma resposta a O nascimento de uma nação (1915), de D.W. Griffith, considerado um marco fundamental da técnica cinematográfica, mas também um manifesto racista em favor da Ku Klux Klan. Spike Lee sempre conta como foi obrigado a assisti-lo nas aulas de cinema, sem nenhum contexto. Barry Jenkins, também. Vinte e três anos mais jovem que Lee, ele ouviu uma ou outra ressalva, sem nenhuma condenação de fato.
O cineasta Barry Jenkins no set de filmagem de The Underground Railroad. Imagem: Divulgação
E foi por isso que, apesar do medo e dos avisos de amigos e familiares de que não deveria tocar no assunto escravidão, o diretor foi em frente. Porque ele pensou não só em como o assunto era abafado na universidade, mas também na escola. Uma coleção de depoimentos de pessoas escravizadas, realizada na década de 1930, nunca esteve disponível para o aluno Barry Jenkins. Hoje mesmo, há legisladores tentando bloquear o Projeto 1619, lançado por Nikole Hannah-Jones, no 400º aniversário da chegada dos primeiros africanos escravizados às praias dos Estados Unidos. Enquanto há dezenas de produções sobre o Holocausto, existem poucas ainda sobre a escravização de seres humanos africanos que foram fundamentais para a transformação do país numa superpotência mundial. Suas histórias foram apagadas da história com “H” maiúsculo.
As imagens podiam ser duras, mas eram necessárias, acreditava Jenkins. Por isso, ele optou por uma minissérie em 10 episódios em vez de um filme, a fim de dar espaço para a história e o espectador respirarem. A obra foi lançada toda de uma só vez, mas assistir de uma só vez é opção do espectador – uma opção não-recomendada. Barry Jenkins entende que pode ser demais para alguns, mas também não achava justo esconder a brutalidade e a crueldade do sistema. A questão era como filmar.
DA VIOLÊNCIA À BELEZA
The Underground Railroad é a história de Cora (Thuso Mbedu). Nascida numa fazenda no estado da Geórgia, ela foi abandonada pela mãe Mabel (Sheila Atim) e desprezada até pelos seus pares. Caesar (Aaron Pierre), que um dia vislumbrou a liberdade, mas foi traído, tenta convencê-la a fugir. Cora só se convence ao ver uma cena insuportável – e, para o espectador, é igualmente difícil. Ainda assim, é nítido que Jenkins evita o prolongamento além do necessário, a violência extrema o tempo todo. A vítima daquela violência mantém sua dignidade. Indignos são os brancos, os donos da fazenda, os espectadores voluntários. A situação fica muito evidente – e tem de ser, porque Cora decide, a partir dali, que é melhor morrer tentando fugir do que ficar. E, assim, Jenkins prefere justamente mostrar o terror e a raiva no rosto de quem é obrigado a assistir, ou seja, os outros escravizados.
Quando Doze anos de escravidão foi lançado, muito se falou do abuso das cenas de violência e que o filme era basicamente uma grande sequência de torturas. Os críticos não deixam de ter razão, mas Barry Jenkins vê o longa, assim como os que o precederam e o sucederam, como passos necessários para que ele pudesse fazer The Underground Railroad. Que é uma história de brutalidade, crueldade, violência, preconceito e racismo, mas também de sobrevivência, triunfo e beleza. Seu compromisso era recontextualizar como o norte-americano vê esse período de sua história e como pessoas negras como ele mesmo enxergam seus ancestrais.
Cora e Caesar escapam, tendo no encalço o caçador de escravos Ridgeway (Joel Edgerton) e seu fiel escudeiro, o pequeno menino negro Homer (Chase Dillon), provavelmente o personagem mais inescrutável de The Underground Railroad. Ridgeway está particularmente interessado em capturar Cora, porque vê na fuga de sua mãe, Mabel, um grande fracasso de sua carreira – ou talvez seja melhor chamar de missão. A relação de Cora com a mãe é uma das maneiras pelas quais a minissérie diverge de tantos outros filmes e séries anteriores. A razão maior da vida de Cora é provar para a mãe que ela era merecedora de ter sido salva e que, mesmo tendo sido abandonada por Mabel, é capaz de conquistar sua liberdade sozinha. Cora tem, pois, um conflito além da sua vontade e uma necessidade de escapar da escravização.
A maior parte dos episódios recebe o nome da parada onde Cora se encontra: Geórgia, Carolina do Sul, Carolina do Norte, Tennessee, Indiana. Em cada passo, há violências, preconceitos e humilhações de diferentes tipos. Mas também esperanças, alegrias, amores, aliados, alguns deles brancos, mas em sua maioria negros, como Royal (William Jackson Harper). E natureza. Barry Jenkins sempre foi um cineasta muito sensorial e aqui não é diferente. As paisagens, os sons e a música evocam atmosferas, texturas.
Cena da minissérie. Imagem: Divulgação
The Underground Railroad tem uma rara protagonista feminina na carreira do cineasta, que costuma focar em casais e no ponto de vista masculino. Mesmo assim, ele continua a explorar a masculinidade negra, como fez em seus curtas, mas também em Medicine for melancholy (2008) e, principalmente, em Moonlight e Se a Rua Beale falasse. Foi assim com o traficante Juan (Mahershala Ali) e com o musculoso Black (Trevante Rhodes), de Moonlight, e com o pai compreensivo (Colman Domingo) ou o namorado acusado de um crime em Se a Rua Beale falasse. Em The Underground Railroad, Caesar é suave e um leitor voraz de Viagens de Gulliver, de Jonathan Swift, cuja estrutura o livro de Colson Whitehead homenageia. Royal é um herói modesto e ciente de suas fragilidades.
O amor interrompido pelas circunstâncias é uma constante na obra de Barry Jenkins e na série também. Mas Cora reluta a se entregar ao amor, porque sabe que este pode ser fugidio, dada sua situação. O mais importante é a liberdade. O diretor usa uma de suas marcas visuais registradas, com o ator quebrando a quarta parede e olhando diretamente para a câmera, nas cenas de amor. Mas não só. Muitas vezes, personagens de fundo, sejam outros homens, mulheres e crianças escravizados, ou os funcionários de uma fictícia estação de trem central, olham diretamente para a câmera. E aí eles estão ali para dizer que existiram. Não à toa, Jenkins fez um filme só com essas imagens, captadas nos intervalos das filmagens, chamado The gaze (em livre tradução, O olhar).
The Underground Railroad é uma minissérie sobre fantasmas. Sobre pessoas que estavam lá, que construíram o país, mas que não tiveram direito a nomes próprios, a nacionalidades, a tradições, a amores, a cuidar de seus filhos, a funerais dignos. Que foram apagadas da história. Mas que vivem em seus descendentes, na força de sua cultura e na sua resiliência para sobreviver então, e agora, a tudo isso.
MARIANE MORISAWA, jornalista apaixonada por cinema. Vive a duas quadras do Chinese Theater, em Hollywood, e cobre festivais.