Reportagem

A construção da masculinidade

Uma abordagem sobre os variados entendimentos dessa experiência humana, sobre como ela vem sendo normatizada pela sociedade, trazendo questionamentos e outros modos de performá-la

TEXTO Gianni Gianni

01 de Fevereiro de 2021

ILUSTRAÇÃO ADAMS CARVALHO

[conteúdo na íntegra nas versões impressa e digital | ed. 242 | janeiro de 2021]

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Estava assistindo a um vídeo no YouTube sobre masculinidade tóxica. Tratava-se de uma conversa mediada por Pedro de Figueiredo, fundador do Memoh, uma iniciativa social que desenvolve serviços para auxiliar os homens a refletirem sobre seus comportamentos. Os convidados são homens cis e acredito que a maioria, talvez todos, são heterossexuais. Vestem calça, tênis, camiseta básica. Conversam sentados em roda. Descrevo esses aspectos para destacar que não há, a princípio, elementos “irreverentes” nessa produção, são homens conversando sobre privilégios, falhas e buscas, levando em conta a performance de masculinidade normatizada na sociedade contemporânea. Isso já é mais que o suficiente para a sanha dos haters.

Não tenho por hábito ler caixa de comentários, mas vamos a esta exceção, convido vocês ao inglório passeio:

– Uê cadê os homens? Kkkkkkk Tô vendo uns feministos maconheiros e uns gays enrustidos, agora homem mesmo que é bom nenhum.
– Bate papo desanimado. Observem a postura de cada um sentado na cadeira e descubra o quanto cada um tem a dizer sobre masculinidade.
– Que gracinha cinco “menininhas” tentando lacrar. Só faltou “elas” pedirem desculpa por ser homem.
– Homens fracos, triste, tão comendo muita soja.
– Resumindo.... desculpem por eu não ter ovários.

Seguindo o raciocínio dos autores dos fragmentos acima, entende-se que: 1) homens gays, maconheiros ou interessados no debate feminista não são homens; 2) existe um modo de se sentar na cadeira que autoriza uma pessoa a falar sobre masculinidade; 3) comer muita soja afeta a sua masculinidade ou, outro entendimento possível, vegetarianismo/veganismo não são coisas de homens; 4) e era aqui que eu queria chegar: homem que é homem tem horror & ojeriza ao feminino.

A cartilha apresentada por esses comentários ecoa noções de masculinidade familiares a todos nós. Dentro dessa lógica, colocar em xeque ou, minimamente, refletir sobre o lugar de domínio dos homens na sociedade e as posturas hegemônicas, desautomatizando um ideal monolítico do estar no mundo desses sujeitos, empurra-os à categoria de “menininhas” ou evidencia o seu desejo de ter ovários. Na perspectiva patriarcal, esse tipo de gesto questionador não é apenas afrontoso, ele indica uma irrupção de desonra no clube da testosterona. 

Esse é um ponto de reflexão marcante para o ator e dramaturgo Paulo Azevedo, que, atualmente, conduz o projeto do podcast Almasculina junto a Glaura Santos, Conrado Goys e Vitor Vieira. O programa estreou em 2019 e já se aproxima de seu 30º episódio; entre os convidados que foram entrevistados, por lá estão Ronaldo Fraga, Roger Cipó e Bernardo de Assis. “No quadro Lugares comuns, marcou-me muito a fala de uma psicanalista sobre o fato de que os homens, desde muito novos, são apartados do feminino. A masculinidade hegemônica se pauta pelo distanciamento e a negação desses aspectos. Ou seja, a própria masculinidade frágil existe a partir de uma ideia de oposição ao feminino, do apartamento de energias de afeto, de sensibilidade, de escuta e de cuidado que existem dentro de nós”, observa Paulo.

Ator e dramaturgo Paulo Azevedo
Ator e dramaturgo Paulo Azevedo. Foto: Vitor Vieira/Divulgação

É importante esclarecer que a ideia de feminino & masculino aqui não está relacionada ao gênero ou à orientação sexual; ela aponta para uma polaridade psíquica (ou energética, para alguns) que existe em todos os seres humanos, algo profundamente discutido na teoria junguiana a partir de conceitos como anima e animus. A questão, como veremos, é a estruturação de uma cultura em que a performance de masculinidade está atrelada à aniquilação da dimensão feminina (em si & nos outros). Nesse sentido, quando dançamos a canção de Pepeu Gomes, talvez não tenhamos a medida exata desta provocação: ser um homem feminino não fere o meu lado masculino. 

O bailarino e professor de dança Orun Santana entende que esse é um aspecto bastante desafiador do nosso tempo. “É um acesso ancestral que foi esquecido por gerações. O patriarcado construiu um corpo social masculino muito problemático, que anula o corpo feminino em si e mais ainda fora dele. O desafio é compreender o feminino em mim, o feminino em outros corpos, e entender o que já está construído em mim dessa masculinidade tóxica e arraigada”, observa o dançarino pernambucano. 

Essa orientação para distanciar-se dos trejeitos ou traços associados ao feminino vem pautando grande parte da formação dos homens, uma educação que tolhe corpos. “Lembro as brincadeiras de adolescente, quando você rebola um pouquinho, se quebrar um pouco, se tiver qualquer movimentação do corpo diferente, você já é chamado de gay, de boiola, comentário que vem carregado de homofobia e indica a distância do corpo feminino. Esse é o maior medo dessa masculinidade construída, o medo de ‘ser mulher’. O medo de poder acessar o feminino é muito grande”, complementa Orun.

Desde muito pequenos, os círculos dos meninos são marcados por essa patrulha mútua, resultado dos discursos circundantes e da misoginia naturalizada por boa parte da sociedade. O músico e compositor Dan Sultanum é o caçula de um lar com quatro filhos homens e relembra esse tipo de experiência: “Quando eu era mais jovem, os discursos eram muito machistas; então, qualquer lado feminino que qualquer um dos irmãos tivesse era alvo de repressão, piada, e eu sempre tive um lado feminino muito forte desde criança. Eu lembro uma vez que eu disse que um ator na TV era bonito… Sempre que qualquer gesto feminino era detectado em mim era piada de ‘veadinho’, era ‘seja homem’, essas coisas que todo mundo sabe como é, mas que se potencializou em uma família com tantos homens”.

Em um dos últimos registros em vídeo de João Nery, uma entrevista concedida ao Projeto #Colabora para a série LGBT+60: Corpos que resistem, o psicólogo e escritor também destaca essa repulsa que existe na nossa cultura. “A sociedade machista não aguenta o feminino. O feminino é uma agressão enorme, uma ameaça – eu diria, talvez, o termo melhor – para as pessoas que não estão sexualmente bem-resolvidas. Porque não é possível que uma pessoa se incomode com a conduta sexual de outra se isso não for um problema para ela. Então, eu acho que quanto mais feminina for uma bicha, exatamente aquela bichinha pintosa, bem-desmunhecativa, essa é uma heroína, essa desmistifica toda a hipocrisia social. Ela, que deveria estar no ápice da pirâmide, é exatamente a mais condenada”, afirma. João é considerado pela mídia o primeiro homem trans do Brasil. Seu transicionamento ocorreu de forma clandestina durante a ditadura militar.

Décadas depois, a realidade dos homens trans e das pessoas transmasculinas não binárias ainda é atravessada permanentemente por preconceito e exclusão. Mesmo que o debate sobre a transfobia comece a ter mais alcance, a experiência diária desses indivíduos no Brasil, país que há 12 anos lidera o ranking mundial de assassinatos de pessoas trans, é de precariedade e medo constante da violência de gênero. O fotógrafo Pedro Jorge AFROP, nascido e criado no Capão Redondo, em São Paulo, observa que ser um transmaculino que acolhe seus possíveis traços femininos desperta ainda mais a transfobia. “Acabamos sendo chacota em alguns espaços porque se diz que homem não pode ser afeminado, mas isso não é problema algum para mim”, comenta.

Psicólogo e escritor João Nery, falecido em 2018 Psicólogo e escritor João Nery, falecido em 2018. Foto: Divulgação

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Perguntei a quase todos os entrevistados qual era a memória mais remota ou significativa, no contexto da infância e da juventude, de alguém censurando-os por fazer algo que “não era coisa de homem” ou orientando-os à ideia de que eles deveriam “agir como homens”. Queria saber quais atitudes ou comportamentos estiveram sob a mira desse modelo de educação patriarcal em suas vidas; já contava com relatos clássicos – que constaram em diversas falas – como “homem não chora”. No entanto, esse tipo de intervenção na vida dos meninos, desde que são muito pequenos, aparece nos contextos mais inusitados, estreitando inclusive as possibilidades lúdicas da infância. 

“Eu era muito novo, tinha cerca de cinco anos, e gostava de envolver os lençóis de cama no corpo como se fosse um vestido. Um dia estava com meu avô no meu quarto e meu pai entrou, aí eu falei: ‘Olha só, pai, é um vestido’. Então, ele respondeu: ‘Quem usa vestido é mulher, você tem que decidir se você quer ser homem ou mulher’. Eu fiquei muito sem entender, mas o modo como ele disse isso e o modo como ele me olhou foram marcantes. Para mim, aquilo foi muito forte. Na mesma hora, eu tirei o vestido feito de fronha e lençol”, relembra o performer e tarólogo carioca Augusto Melo Brandão.

Nos últimos anos, embora o fenômeno do chá de revelação insista na identificação caduca de meninos com o azul e de meninas com o rosa, a discussão sobre demarcações de gênero no terreno da infância ganhou mais atenção da sociedade. Diferenciar brinquedos de meninos e de meninas é um modo de dominar a relação que as crianças estabelecem com o mundo e, muitas vezes, passa pelo desejo dos pais de direcionar os papéis sociais a que elas devem se dedicar. Esse modelo, reproduzido por várias gerações, vem sendo disputado. O cantor e compositor José Demóstenes, cujo filho, Manuel, tem um ano de idade, recorda esse cenário da infância: “Existiam os clássicos ‘menino não brinca com meninas’ e ‘menino não brinca de bonecas’, e eu às vezes me interessava em brincar de boneca. Isso era logo associado a ideia de ser ‘bicha’, a pauta homofóbica aparecia forte nesse contexto”.

Nesse tópico, pensamos de imediato nos brinquedos que historicamente não são ofertados aos garotos, como a já citada boneca e as panelinhas, um indicador de que eles não deveriam encenar a paternidade ou as atividades domésticas, o que dialoga diretamente com o cenário da vida adulta de uma sociedade na qual os homens comumente não assumem suas responsabilidades nesses papéis. No entanto, essa restrição assombra várias outras práticas lúdicas. “Eu me sentia obrigado a participar de brincadeiras que fossem brincadeiras de menino. Não que eu não gostasse, porque eu gostava de jogar bola, eu sempre gostei muito de esportes. Mas eu também me sentia atraído por pular elástico, pular corda, desafios que ficavam mais no terreno das meninas”, relembra Orun Santana. 

Para o poeta visual Tiago West, a recordação mais vívida é a da censura de uma carreira profissional. “Na infância, eu adorava ver minha mãe, que é arquiteta, desenhando as plantas em uma prancheta. Eu ficava fascinado. Embalado por isso, comentei na escola que considerava virar arquiteto. Lembro de ser repreendido por avisos que diziam que arquitetura era coisa de mulher ou de gay. Naquele momento, achei graça; de algum modo, eu compartilhava dessa falsa piada. Anos mais tarde, eu deixaria de achar engraçado, mas, na época, eu não via problema”, reconhece West.

Já a memória do poeta e cineasta Felipe André Silva aponta para a interdição nada sutil da linguagem como tentativa, talvez, de estancar um modo de expressividade mais espontâneo e emotivo. “Quando eu tinha uns 10 anos, eu vi um filme e comentei que ele era maravilhoso. Bom, eu usei a palavra maravilhoso, e aí minha tia falou para eu não falar essa palavra porque não era coisa de homem. Eu nunca esqueci esse fato porque era uma palavra. As práticas de escrita e da fala norteiam a minha vida até hoje, então eu acho curioso esse episódio”, conta Felipe. 

Sabe-se que, em grande parte dos casos, as meninas também crescem balizadas por restrições lúdicas de outra ordem. E o exercício, ao costurar as experiências de tantas vozes masculinas nesta reportagem, está longe de ser o de dar uma roupagem de “grandes vítimas” àqueles que compõem um eixo central do grupo de privilegiados no nosso sistema de abismos sociais. O que essas histórias apontam, porém, é que o custo dessa vantagem social, do lugar de dominador no interior da estrutura coletiva, é o estreitamento permanente da própria subjetividade. 

“Até que ponto vale a pena sustentar esse lugar de privilégio? Sendo que os homens são os que mais matam, os maiores agentes de violência contra si e contra os outros, os que mais se suicidam, os que menos cuidam da própria saúde. Todos os dados apontam, para além de uma questão estatística, o sintoma de uma sociedade que não comporta mais tamanha desigualdade”, avalia o ator Paulo Azevedo.

Fotógrafo transmasculino Pedro Jorge AFROP. Foto: Divulgação
Fotógrafo transmasculino Pedro Jorge AFROP. Foto: Divulgação

No livro Seja homem – A masculinidade desmascarada, recém-lançado no Brasil pela editora Dublinense, J J Bola traça um panorama das principais questões relacionadas à construção da masculinidade na sociedade ocidental. Ainda nas primeiras páginas da publicação, o escritor congolês radicado em Londres escreve o seguinte: “Porque a sociedade é em geral patriarcal, no sentido de favorecer os homens para que eles ocupem posições privilegiadas, ela faz parecer que os homens não experimentam qualquer tipo de sofrimento íntimo (…) o sistema que coloca os homens em vantagem na sociedade é essencialmente o mesmo que os limita, inibindo o crescimento pessoal e, no fim das contas, levando ao colapso dos indivíduos”. 

Apesar de estarmos vivendo, possivelmente, um novo giro da reflexão sobre as masculinidades, com uma significativa presença dessas questões nos papos cotidianos e espaço midiático, é preciso observar que esse debate já dura algumas décadas. Essa ferida aberta, aliás, veio à tona em função da luta do movimento feminista contra um sistema pautado por opressões generalizadas. O professor da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e doutor em Psicologia Social Benedito Medrado dedica-se a esse tema desde a década de 1990. Junto a Jorge Lyra, docente da mesma instituição, fundou em 1997, no Recife, o Instituto Papai, um projeto originalmente voltado para pais adolescentes com o intuito de promover a participação masculina no cuidado infantil. Com o passar dos anos, as ações do Instituto se ampliaram, abarcando também a saúde do homem, na perspectiva da politização desse debate; o combate à violência de gênero; e a promoção dos direitos sexuais e da diversidade sexual.

Caminhar ao lado das conquistas do movimento feminista, na opinião de Benedito, é um dos aspectos mais desafiadores para os homens na contemporaneidade. “O movimento feminista é o principal responsável por transformações significativas no modo como a gente percebe uma série de violências que eram entendidas como práticas comuns antigamente. Isso fez com que a gente repensasse nosso lugar no mundo. Esse tensionamento já vem de um tempo; mas, particularmente com os homens, essa discussão começa um pouco tardia, nas décadas de 1970 e 1980”, observa o pesquisador.

Tiago West concorda que os homens, sobretudo os brancos e detentores de riquezas, vêm demonstrando grande dificuldade para encontrar um novo lugar no contexto de reparação histórica que estamos vivendo: “Está em campo um pensamento muito individualista, que supõe ser possível equalizar as coisas sem fazer concessões consideráveis, como se apenas identificar e reconhecer regalias históricas fosse resultar numa reorganização social adequada. Não vai. E acho que há um ponto muito custoso aos homens, dentro dessa questão, que é o de compreender que o padrão de olhar masculino, que sempre foi exclusivo e sempre exclusivamente foi responsável por atribuir ou não relevância as coisas, é disfuncional”, diz o artista.

São notáveis ainda empenhos no debate público para alargar a compreensão em relação às diversas masculinidades. O modelo exaltado pela sociedade patriarcal é, em certa medida, uma peça de ficção, e quanto mais distanciado o indivíduo estiver desse modelo, mais opressões ele sofrerá. É essa dinâmica que sustenta a noção de masculinidade hegemônica, conceito presente nas pesquisas de Raewyn Connell, mulher trans e uma das primeiras pessoas a se debruçar sobre o tema na perspectiva da sociologia. 

“No livro Masculinities, ela diz que não há uma única forma de ser homem na sociedade, mas existe a tendência de um modelo de masculinidade branco, heterossexual, cisgênero e de classe dominante – aí eu estou falando, particularmente, da população mais rica – determinar um padrão a partir do qual submetem outras expressões de masculinidade. Sempre na lógica do modelo ideal, que não é alcançado nem mesmo por quem se define como homem branco, hétero, cis e rico. Então o que a gente entende é que as masculinidades não heterossexuais e as transmasculinidades, como também as masculinidades negras, como também as masculinidades pobres, acabam sendo violentadas e, ainda assim, têm esse modelo como referência. Por isso, muitas vezes, constroem-se a partir de uma negação de si e de uma afirmação do poder do outro”, explica Benedito Medrado. É essa conformação que faz com que integrantes de algumas minorias, por vezes, reproduzam discursos dos grupos favorecidos – ainda que estes não os favoreçam – ou criem mecanismos de cumplicidade.

O digital influencer e produtor de conteúdos Lucca Najar percebe com clareza o enfrentamento desse modelo hegemônico no processo de construção da sua masculinidade. “No início, ou até antes da minha transição, tudo que eu tinha de referência do masculino era muito tóxico. Eu entendia que, para acessar o ‘máximo’ do masculino, eu precisava reproduzir esses comportamentos. Com o tempo, depois da minha transição, eu fui entendendo que, para performar a minha masculinidade, eu não precisava me encaixar nesses padrões. Comecei a procurar um lugar em que eu tivesse uma masculinidade mais saudável e comecei a questionar: o que é ser homem? É ter cabelo curto? Para ser homem não pode pintar a unha? No fundo, eu estava me forçando a ser uma pessoa que nunca fui para tentar me encaixar nesse padrão e ser visto e reconhecido como homem”, afirma.

Digital influencer Lucca NajarDigital influencer Lucca Najar. Foto: Divulgação

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O conceito de performance ou performatividade deriva de uma proposição do filósofo John Austin que foi incorporado de forma mais ampla nas reflexões de Judith Butler. Na perspectiva de gênero, ela defende que a identidade se constrói na ação, então nós somos o que fazemos. O professor Benedito Medrado destaca que “o que fazemos acontece em uma rede de significados culturalmente estabelecida, então é também o contexto que define quem nós somos; não haveria uma essência, um eu anterior, do homem ou da mulher. Assim, se a gente modifica a cultura, a gente pode modificar também os modos de ser”. Na rede de significados sustentada pela experiência coletiva, bordões como “seja homem” ou a abstração permanente da ideia de “homem de verdade” vagueiam como fantasmas entre as masculinidades, sustentando valores de virilidade e agressividade.

“Nossa sociedade é, em sua raiz, muito violenta, então os homens têm que assumir um papel de defensor contra os próprios homens. É esperado isso deles, que eles sejam os que vão lutar, os que vão brigar, se for necessário. Isso é muito desgastante, porque você precisa estar sempre em contato com essa coisa muito negativa da violência”, observa Dan Sultanum. Para o músico, no outro polo dessa mesma construção está a privação dos gestos amorosos, muito econômicos no contexto da masculinidade hegemônica. 

“O que mais me vem à cabeça, quando penso se deixei de experimentar algo por ser homem, é nos gestos de carinho, o contato físico mesmo. Tanto com outros homens quanto com mulheres, sem cunho sexual. O homem é visto como o ser conquistador, que vai sempre, em qualquer abertura dada por uma mulher, transformar aquilo em algo sexual. Já qualquer abertura que um homem dá para outro homem é vista como ‘coisa de veado’. Essa coisa do carinho é uma coisa que falta muito no mundo masculino. Na adolescência, isso foi muito marcante, porque esse gesto tátil é muito comum para as meninas, mas para nós, não”, observa.

Nesse sentido, o escritor J J Bola afirma que, com frequência, as brincadeiras de luta se tornam, na pré-adolescência, o lugar de um toque possível para os meninos, uma tentativa de satisfazer a ausência de um toque íntimo ao qual não se tem mais acesso. No entanto, esse contato físico migra do lugar do cuidado para o lugar da encenação da hostilidade entre os sujeitos proposta pela brincadeira. Diante disso, rever os valores da masculinidade em circulação passa também por performar publicamente as trocas de afeto, como observa o sambista José Demóstenes. “Para mim, abraçar e beijar meus amigos é importante. Isso ocorre na intimidade, óbvio, mas eu escolho conscientemente fazer isso em público com regularidade, na tentativa de reeducar ou mostrar para as pessoas que o mundo não é tão cartesiano”, diz o cantor.

Muitos momentos da socialização da masculinidade hegemônica são norteados pela agressividade; para J J Bola, os homens enxergam a violência como a língua comum das suas experiências. Boa parte desse mal-estar com a própria performatividade inicia no âmbito escolar. “O único espaço complicado que eu tive que habitar foi o colégio, pelos motivos óbvios: a adolescência traz uma violência descontrolada baseada em gênero”, avalia Felipe André Silva. No caso do performer e pesquisador Augusto Melo Brandão, a passagem por uma escola só de meninos foi traumática, contribuindo inclusive para retardar a compreensão da sua homossexualidade. 

“Nos colégios mistos, eu já era essa criança um pouco retraída por conta das relações com os meninos; eu tinha muito mais facilidade de desenvolver relação com as meninas ou com os meninos mais afeminados. Nesse colégio só de meninos, tudo passava pelo crivo: coisa de homem e coisa que não é de homem. Você tinha que ficar sempre com a buzininha do alerta ligado. Quando eu comecei a assumir para mim mesmo que eu era um homem gay, aos 15 anos, eu sentia que não podia contar isso para ninguém, porque se alguém descobrisse eu viveria desamparado”, rememora Augusto.

Outro contexto de socialização em que a noção de virilidade e agressividade exacerbada está entranhada é o dos esportes. Airan Albino, comunicador que idealizou o grupo Miltons em Porto Alegre, projeto de troca de experiência sobre masculinidades negras, reitera essa questão: “Eu gosto bastante de esportes, e esses espaços são sempre de performances que ditam o que homem faz e o que o homem não faz. Eu sou um cara hétero, tenho um corpo dentro do padrão, então levar certos comentários na brincadeira era um modo de estar nesses espaços. Mas, a partir do momento em que eu comecei a debater, participar dos estudos e eventos de masculinidades, isso mudou. Meu círculo de amigos mudou bastante”. 

Para o cantor José Demóstenes, foi o estádio de futebol que se tornou uma experiência insustentável. “Eu ia para estádio de futebol quando eu era muito criança, até uns 16 anos, mas depois deixei de ir porque achei tudo um saco. Não que eu não goste de futebol, eu adoro, mas o estádio em si é um lugar de muita reverberação de preconceito. As pessoas se soltam porque estão no estádio, então o número de palavrões, o gesto de ficar coçando o saco, porque aquilo parece ser um símbolo da masculinidade, tudo isso triplica. Eu me lembro de que, quando eu era criança, meu pai dizia: ‘Aqui no estádio, você pode falar o quanto de palavrão você quiser, mas em casa não’”.

De certo modo, a tomada de consciência da violência de gênero – e da violência como um todo – percorre essas etapas. Inicialmente, os sujeitos param de reproduzir, mas seguem presenciando; até o momento em que não suportam presenciar certas situações violentas e se retiram de determinados espaços, interrompem relações com quem mantém o pacto com essas práticas, passando também a confrontar quando se sentem seguros e compelidos a isso. 

Escritor J J BolaEscritor J J Bola. Foto: Divulgação

Além da violência e da agressividade, há também o mito que associa a performance masculina à disposição para correr riscos. Alguns autores, como o mexicano Benno de Keijzer, vão propor uma perspectiva da masculinidade como fator de risco. Essa construção coletiva tem consequências escandalosas no cenário que vivemos hoje, no contexto da pandemia. “Os países que tiveram maior dificuldade de implementar uma ação preventiva de controle da Covid foram aqueles em que há um modelo de masculinidade incorporado na política governamental – Estados Unidos e Brasil – que reproduz certa ideia machista voltada à vida em sociedade e certo descaso em relação ao risco”, analisa Benedito Medrado.

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A violência sexual e a violência de gênero são mazelas sociais que fazem vítimas a cada minuto no país, e esse cenário é retroalimentado pela cultura do estupro. A incompreensão da necessidade de discussão de gênero e educação sexual nas escolas pode ser fruto da desinformação ou do conservadorismo. Para muitas pessoas, ter esse debate em sala de aula significaria uma espécie de estímulo à experiência sexual precoce. O que muitos não percebem é que o esforço é justamente o oposto: o de promover conhecimento para evitar violação. 

Em seu livro, J J Bola escreve que, desde muito cedo, a maioria dos meninos sofre pressão para pensar em sexo, para desejar o sexo e para consumar o ato o quanto antes. Muitos homens que entrevistei e outros com quem conversei durante esta reportagem, que cresceram ainda sem a presença da internet, relataram que revistas de nudez entraram em suas vidas antes dos 10 anos de idade. O cantor e roteirista pernambucano Matheus Torreão é um dos que partilham essa experiência: “Hoje, olhando em retrospectiva, eu diria que fui hiperestimulado precocemente. Lembro de ter Playboy desde que eu tinha uns 8 anos. Isso teve uma continuidade com a internet e com a pornografia”, conta. 

A expectativa de virilidade enquanto construção coletiva também impactou a juventude de Orun. “Eu sinto que fui obrigado a performar essa construção do querer sexual aflorada e de uma violência que não fazia parte de mim; vinha de uma pressão social, de reprodução da violência e de reprodução da sexualidade masculina viril e falocêntrica”, relembra o dançarino. 

Muitas perdas de virgindade, nesse universo, são maculadas pela pressão externa, já que os homens são condicionados a entender o sexo como um prêmio, algo a ser perseguido. Isso faz com que a sociedade não coloque em questão o tema do consentimento em situações nas quais meninos ainda muito jovens transam como mulheres muito mais velhas. “Existem casos de iniciação sexual muito traumáticas quando os pais, os irmãos ou os primos obrigam o contato com uma profissional do sexo”, observa Paulo Azevedo. 

E, embora os círculos de amizade masculinos, na adolescência, carreguem a marca dessa cobrança pelo avanço da sexualidade como rito de passagem, também as parceiras e parceiros podem nutrir expectativas baseadas na masculinidade hegemônica. “Já aconteceu, ao longo de uma relação, justamente no período em que eu estava me distanciando da pornografia e tentando performar sexualmente de uma maneira menos pornográfica, tentando viver o sexo de outras formas, de isso ser entendido como uma perda de interesse ou de tesão”, comenta Matheus.

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Em 2015, os comentários de teor sexual na internet a respeito de Valentina – uma participante do MasterChef Júnior que tinha 12 anos à época – foram detonadores de uma grande ação digital que chamava atenção para a experiência de assédio das mulheres ainda na infância ou adolescência. A hashtag #meuprimeiroassédio, lançada pelo coletivo feminista Think Olga, alcançou os trending topics e foi um dos assuntos mais discutidos naquele mês de outubro. A campanha estremeceu a percepção de muita gente; lembro de, naquele contexto, acessar de forma turva e inesperada a memória de um abuso sexual que estava completamente apagada. Para alguns homens, tratou-se de um ponto de virada na compreensão do tema. 

“Foi um grande divisor de águas, não só para mim como para muitos amigos. Aqueles que não pararam para repensar coisas depois desse momento acabaram se afastando do meu círculo social mais próximo. Eu constatei depois. Embora eu não tenha me visto no lugar exatamente de assediador, eu me dei conta de que eu poderia ter feito várias coisas. Ali eu percebi que o que me impediu de cometer um assédio, muitas vezes, foi timidez, mais do que consciência ou empatia pelas mulheres ao meu redor”, reflete Matheus Torreão.

Anos mais tarde, enquanto orientava um TCC de análise do discurso sobre essa campanha, me vi diante da seguinte questão: e se os homens tivessem sido integrados a ela? Recordo-me, é claro, da tentativa de diálogo que eles tentaram estabelecer criando a hashtag #meaculpa, um verdadeiro desastre. Obviamente, a força da campanha está atrelada à urgência desse debate para as mulheres, já que lidamos com assédio continuamente durante a vida. Mas precisamos começar a falar mais sobre o assédio sexual na vida dos meninos, inclusive de abordagens ainda naturalizadas pelo coletivo. Claro que cabe também a eles quebrar esse silêncio.

“Na época da hashtag, eu fiz um post que não era superconfessional, mas que entrava no debate. Pouco depois disso, eu li um gigatextão dizendo que a hashtag #meuprimeiroassédio era um espaço das mulheres que os homens estavam querendo cooptar e que, se a gente quisesse contar nossas histórias de assédio na infância, a gente criasse um espaço nosso”, recorda o cineasta Felipe André Silva.

No curta-metragem Cinema contemporâneo, ele cria esse espaço e narra a experiência do abuso sexual na infância enquanto tensiona questões do dispositivo confessional na arte. Ter sido vítima dessa violência impactou diretamente o processo de aceitação sexual do artista. “O meu processo de aceitação foi turbulento, porque, ainda que existisse a compreensão de que aqueles episódios eram violências, essa era a orientação sexual com a qual eu me identificava mais, me interessava por outros homens. Então, foi muito difícil dissociar, entender que o gênero e a sexualidade são esses, mas o tipo de experiência não é essa”, relembra. 

Felipe observa ainda que algumas abordagens que seriam inadmissíveis com as meninas ainda não são repreendidas da mesma forma quando se dão com meninos. “É uma coisa tão comum e tão naturalizada, você ver adultos virando para meninos de 10, 11 anos, às vezes menos, dizendo: ‘Ah, este aí é um gatão, vai pegar geral!’. Também me lembro da tia de um conhecido que falava para uns meninos muito novos: ‘Você quer namorar comigo?’. Não é divertido, a criança está claramente constrangida, ela não sabe que relação é essa. Quando um homem mais velho faz esse tipo de brincadeira com uma menina, hoje, isso é altamente rechaçado, mas, quando fazem com um menino, ainda é visto como engraçado”, critica.

Naturalmente, esse debate já existe há bastante tempo no âmbito do assédio sexual na infância, mas trazer à tona essas experiências a partir desse lugar de homem adulto que foi vítima de violência esbarra em diferentes questões dos nossos tempos. “Quando rola o movimento de um homem tentar dizer ‘eu sofri isso aqui também’, ‘isso aqui doeu em mim também’, com frequência, no círculo hétero-machista, ele vai ser ridicularizado ou vai colocar essa experiência no lugar de algo que já passou e está resolvido. Eu vejo que, em espaços mais feministas, de modo geral, a recepção é tipo: ‘beleza, mas isso não me cabe, pois a minha dor aqui é outra’. Falta uma educação sentimental e de saúde pública, deixar claro que ventilar problemas é para todo mundo. Agora, claro, ainda estamos passando por um período de reparação das minorias, os grupos estão interessados em se salvar e cuidar de si, o que faz todo sentido, então quando chega alguém privilegiado com um problema que não é da sua alçada, você não está tão interessado. No centro da questão sempre vai estar a violência de gênero. Quem inflige essa dor no homem, de não poder falar, é a lógica que o próprio homem criou e que ele mesmo alimenta”, conclui Felipe. 

Questão de saúde pública, esse enfrentamento aponta, mais uma vez, para a necessidade do debate de gênero na esfera da educação. Uma saída real para a masculinidade hegemônica só existe no reposicionamento das instituições, por mais que o esforço individual seja indispensável. “A maioria das pessoas, quando pensa em masculinidade, pensa na experiência direta dos homens. É preciso entender que pensar cultura machista envolve, sim, as práticas individuais, mas principalmente as práticas institucionais – a justiça, o direito, a educação, a política – que promove o modelo de masculinidade hegemônica que buscamos combater. O ponto de partida é a mudança de cada um, mas a mudança maior só vai acontecer quando a gente conseguir implementar isso no plano das políticas públicas e no plano das instituições”, explica o pesquisador Benedito Medrado.

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Em 2017, o filme Moonlight: sob a luz do luar tocou o jornalista Airan Albino de forma decisiva. A produção dirigida por Barry Jenkins, com elenco formado inteiramente por pessoas negras, narra três fases da vida de Chiron, com ênfase no processo de construção da própria identidade e na descoberta da sexualidade. “Eu não sabia expressar, definir, pensar bem sobre o que eu estava sentindo depois de ver o filme. Em conversas na minha terapia e com amigas, mulheres negras, me foi apontado que o que havia me tocado tinha nome: masculinidades negras.” 

Naquele ano, Airan começou a buscar informações sobre o tema, encontrando uma bibliografia significativa entre os norte-americanos, enquanto a produção nacional sobre o assunto ainda era tímida. “No Brasil, não tinha tanta coisa, mas alguns nomes, como o Túlio Custódio e o Caio César”, recorda.

Desse movimento individual, surgiu o desejo de montar um projeto que, a princípio, resumia-se a um ensaio fotográfico abordando temas sensíveis às masculinidades – uma produção baseada nos textos com os quais vinha tendo contato. Airan convidou amigos e parentes para esse trabalho, foi quando se deu conta de que seriam necessárias algumas rodas de conversa sobre o tema daquele ensaio. O primeiro encontro ocorreu no mês de julho de 2017, mas a iniciativa ainda não tinha nome. 


Coletivo Miltons. Foto: Alisson Batista/Divulgação

A partir daquela primeira roda, formou-se um grupo que frequentemente se reunia na casa de integrantes para falar de temas como sexualidade, racismo, violência, agressividade, religião e relacionamentos. Os encontros eram semanais e logo foi criado um grupo no Facebook para chamar mais pessoas de Porto Alegre que poderiam estar interessadas no assunto. Em outubro daquele ano, um grupo de 12 homens negros se estabeleceu; nascia o coletivo Miltons.

 “O propósito ou a missão sempre foi a conversa, a troca, o compartilhamento de experiências. Claro que a gente acaba falando de alguma coisa mais científica, de um artigo acadêmico, mas o princípio é a conversa sobre a experiência de homens negros. O grupo também acabou tendo um padrão de caras negros que estavam na faculdade ou já eram formados, próximos dos 30 anos, heterossexuais”, descreve Airan. Hoje, as discussões do Miltons também circulam em um podcast na plataforma do Spotify.

Esse tipo de iniciativa de compartilhamento, muitas vezes associado a um ímpeto de cuidado emocional mútuo, tem se mostrado libertador para os homens, especialmente quando se trata de masculinidades tradicionalmente inferiorizadas na estrutura patriarcal. 

O sociólogo e curador de conhecimento Túlio Custódio, uma importante voz nas redes sociais, quando o assunto são as masculinidades negras, aponta a complexidade dessa identidade: “Um homem negro, em nosso contexto, acaba sendo incorporado num padrão historicamente colocado, que é esse lugar de descendente dos escravizados africanos. Mas tem alguns componentes que tornam mais complexa essa identidade do homem negro. Primeiro, a própria complexidade da questão de ser negro. Nós sabemos que a ideia do negro nos últimos séculos vem sendo constituída de um traço de inumanidade, de quase animalização. Da marginalidade, da subalternidade, da inferioridade como ser. Isso cola nos homens negros com muita força. O homem vinculado ao homem negro é esse modelo, de certa maneira, subalternizado à imagem padrão, acrescido desses elementos que envolvem o que significa ser negro”, explica.

Túlio conta que dois papéis associados à performance de masculinidade são marcantes na sua história: o de homem provedor e o de garanhão. No contexto hegemônico, uma das principais demandas da masculinidade está associada ao gesto de prover a família. “A imagem do meu pai na busca por esse lugar é uma referência forte para mim. Ao mesmo tempo, há a dificuldade estrutural para os homens negros, como o desemprego, a dificuldade de aceitação e de acesso a oportunidades. No caso do meu pai, boa parte da vida profissional dele foi como autônomo, então era a referência do homem que trabalha muito, do homem que está sempre fora de casa, do homem que trabalha aos finais de semana, que vira a noite no trabalho”, recorda. 

Já o lugar de garanhão, relacionado à hipersexualização dos corpos negros, marcou o período dos seus 27 para 28 anos. Aderir a essa performance naquele momento foi o que levou Túlio a diversos questionamentos sobre masculinidades. “Isso cruza também com elementos de classe. Onde eu estava circulando nesse contexto? Eu morava na Vila Madalena, circulava por baladas, festas e bares brancos alternativos, então era justamente nesses lugares que o ‘crime’ acontecia. É interessante apontar aí a importância de escutar o que os feminismos negros trazem, porque existia uma cumplicidade desse lugar de homem negro enquanto garanhão, enquanto fragmento ou pedaço para gerar prazer ao outro, com as mulheres brancas, inclusive com mulheres brancas feministas”, observa Túlio. 

Na sua opinião, essa performance de garanhão em espaços brancos indica uma tentativa de se aproximar da lógica de liberdade e do exercício de poder da própria sexualização pregada pela masculinidade hegemônica. “Tem todo um ‘teatro’ da interação social que essa representação de masculinidade gera, e eu acho que foi o contexto em que vivi a hipermasculinização com mais força. Isso se rompeu quando dei abertura ao desconforto, ao ouvir o que as mulheres negras tinham a me dizer”, relembra.

Os estereótipos vinculados às masculinidades negras, sejam relativos à violência, à sexualidade ou à desumanização, são dos mais arraigados em nosso coletivo. Mesmo quando afinamos o discurso, a disposição individual bem-intencionada é muito pouco para reverter o estrago simbólico alimentado há séculos. “Eu me surpreendi recentemente vendo I may destroy you. Tem cenas de romance e sexo entre homens negros fortes, corpulentos, e foi doido notar que alguma parte de mim ainda sente um desconforto de ver isso colocado de forma explícita, especialmente quando entra uma ternura, parece que tem alguma coisa fora do lugar. Esse é um estereótipo que está bem-enraizado na cabeça da gente em algum lugar”, comenta Matheus Torreão. 

Nesse sentido, como já pontuou Benedito Medrado, o reposicionamento das práticas institucionais é indispensável para reverter um cenário em que dois a cada três homens encarcerados no Brasil são negros e em que homens negros têm 74% mais chance de serem vítimas de homicídio. A exaltação da negritude esvaziada de políticas públicas reais é a história de mau gosto que se arrasta neste país. 

“A discussão pode estar em um momento diferente, mas a prática não mudou tanto no que diz respeito aos homens negros. Mesmo a discussão estando no status que ela está hoje, muita coisa que a gente conversa sobre como um homem negro é visto e é tratado segue acontecendo. Essa coisa de que ser negro é bacana, é bonito, é legal, é hype, sei lá… A gente começa a ver muita coisa sobre estética, beleza, intelectualidade negra, mas, ao mesmo tempo, os números de violência seguem muito fortes. Então, como a gente consegue entender isso? Todo dia é notícia: o jogador do Flamengo, o cara que foi morto porque confundiram o carro… É uma dualidade complexa: a gente é bonito, é bacana, é legal, mas, ao mesmo tempo, é visto como violento, como agressivo, e acaba sofrendo muita violência”, analisa Airan Albino.

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Outro grupo bastante afetado pelo modelo patriarcal hegemônico é, indiscutivelmente, o das masculinidades LGBTQIA+. Nesse contexto, existe também uma pluralidade de performances e de cruzos com outros fatores de vulnerabilidade, como classe e cor. No processo de construção da própria identidade, essas masculinidades se veem experimentando uma verdadeira camisa de força promovida pelo padrão da sociedade machista. 

No caso de Augusto, ele tinha 13 anos quando começou a se perceber como pessoa homoafetiva, mas tentou negar isso para si. Seu impulso, naquela época, foi o de achar que deveria “se curar” ou “se construir como homem”. “Eu me obrigava a ver Playboys, mas a única coisa que eu gostava na revista eram os artigos (risos). Ainda assim, eu me forçava a ver aquilo. Também me lembro de situações em que sentia que tinha que perpetrar uma violência porque meus amigos estavam fazendo. Eu me envergonho de falar, mas, em uma matinê, se eles começavam a passar a mão na bunda das meninas, eu fazia o mesmo. Umas coisas horríveis. Porque eu tinha esse medo enorme de que alguém descobrisse que eu era gay. Hoje, eu olho para trás e penso: meu Deus do céu, que energia eu gastei nisso”, relembra o performer. Ele conta ainda que mesmo depois de assumir sua orientação sexual, por muitos anos, se sentiu compelido a manter uma postura dentro de um modelo masculino tradicional. 

Estar em confronto direto com o modelo da masculinidade hegemônica nem sempre é o suficiente para evitar que elementos dessa cultura adentrem as frestas dos sujeitos. Felipe André Silva observa que ser assombrado por preconceitos de gênero não garante que as pessoas estejam livres de reproduzir aspectos machistas típicos do universo cis e hétero. “O exemplo mais claro disso são as brigas de fanbases de diva pop. Se parar para pensar bem, o que se usa para xingar as divas dos outros são xingamentos misóginos. Além disso, a ideia de sexualidade, de sexo, no mundo cis/gay tem ainda a dualidade de ativo e passivo, a noção de que um é mais importante que o outro, que um é dominador, o que vem de uma cultura patriarcal”, comenta o cineasta.

No caso das pessoas transmasculinas, fazer da compreensão de si um recomeço firmado da própria identidade é um gesto comumente atravessado por receios. Em geral, não é a transição que causa esse desconforto, afinal, é por meio dela que várias pessoas chegam à sua verdadeira casa, o corpo a ser vivido e amado; a demanda de coragem só existe assim, sublinhada, porque ser uma pessoa trans neste país é estar diariamente sob a mira da violência de gênero.

“No dia 2 de março 2019, eu sabotei meu medo de não sobreviver neste sistema que mata pessoas negras transgeneres. Não tinha conhecimento e nem acesso a pessoas trans até conhecer o Demétrio Campos e ver que era possível qualquer coisa que eu quisesse. Na construção da minha masculinidade, eu me espelhei em alguns homens do meu dia a dia e procuro fazer diferente, tendo em mente que meu corpo não é semelhante e que não devo agir igual a eles. Hoje me identifico como transmasculino, porque não sou igual a um homem cis e, principalmente, porque a palavra homem carrega diversos estereótipos”, explica o fotógrafo Pedro Jorge AFROP.

Demétrio Campos – trans, preto e periférico – não foi uma referência apenas para Pedro. Em suas redes, ele relatava a invisibilidade das pessoas transmasculinas negras, as violências que sofria e a inacessibilidade do mercado de trabalho. Era um multiartista – pintor, dançarino e modelo. Perdeu a vida em 17 de maio de 2020, no Dia Internacional de Combate à LGBTfobia. Como ocorre com grande parte da população LGBTQIA+, sobretudo indivíduos nascidos nas periferias, a saúde mental de Demétrio foi abalada por uma estrutura social que regularmente o rechaçava e agredia. Nesses casos, suicídio é, sim, sinônimo de assassinato, já que o corpo coletivo aniquila diariamente a possibilidade de existência desses indivíduos. Juntos, apesar de tudo, eles seguem e resistem. 

Demétrio pôde contar com o apoio da sua família durante todo seu percurso, o que não é realidade para a maioria das pessoas trans. A rejeição da família e o medo de ser expulso de casa é um dos primeiros enfrentamentos vividos pelos homens trans e por indivíduos transmasculinos não binários. “Eu brinco que eu saí do armário duas vezes: primeiro, eu falei que era lésbica; depois, eu falei que era trans. A gente sabe que é muito difícil para uma família entender o que é a transexualidade de um filho ou de uma filha. Alguns são expulsos de casa, outros não são, mas existe uma dificuldade de aceitar, de se falar. No meu caso, a minha família entendeu muito bem, foi muito tranquilo. Então, o outro maior medo que eu tinha era muito mais de como as pessoas iam me ler socialmente. Tinha muito medo de usar o banheiro masculino, porque eu ainda não tinha características ou signos como barba”, relembra Lucca Najar. 

A experiência de Pedro Jorge AFROP foi diferente, envolvendo a sua saída de casa sem recursos e o afastamento de parentes. No curta-metragem Tecnologias trans: métodos de cura ao isolamento institucional, o artista mostra como a experiência do isolamento já existe para corpos transracializados desde muito antes do novo coronavírus e como as comunidades transcriam modos de serem acolhidas diante de tanto abandono. 

“O tema da família sempre é complicado para as pessoas transgeneres. Eu caí na insegurança de não ser aceito pelos meus pais, familiares, amigos, de achar que não era digno de amor nenhum. De início, foi complicado para a família do meu pai, mas, atualmente, depois de dois anos praticamente em que me dei voz, eles me respeitam e não soltam minha mão. Infelizmente, não estou falando e nem convivendo mais com a minha mãe por não existir respeito comigo em nada, o que foi um dos motivos de eu arrumar uma casa para morar mesmo não tendo condições financeiras”, conta Pedro.

O digital influencer Lucca Najar tem consciência dos privilégios que possui no contexto das transmasculinidades e vem utilizando as suas redes sociais também como plataforma de informação sobre o assunto. “Não dá pra a gente achar que as vivências trans são únicas. Por exemplo, a experiência de um homem trans negro é totalmente diferente da de um homem trans branco. Como um grupo, como pessoas trans em geral, a gente é, sim, marginalizado, sofre transfobia, mas dentro da própria transexualidade existem grupos que sofrem opressões diferentes. De forma geral, as pessoas não conhecem a transexualidade, então elas desrespeitam o nome, fazem perguntas muito desconfortáveis, falam da genitália como se fosse uma pergunta que fizesse para todo mundo. Então a gente vive várias situações que nos conectam, mas a gente também vive muitas coisas diferentes. Eu tenho um privilégio grande por ter tido acesso à saúde, por minha família ter me aceitado, não ter me abandonado, eu fiz faculdade; então, eu tenho opressões diferentes das de pessoas que não tiveram acesso a isso”, explica Lucca.

Para Pedro, a sociedade não costuma enxergar as vidas transmasculinas, que acabam habitando a fímbria do sistema. “O corpo transmasculino não tem um lugar certo, principalmente quando também é negro. Falo por passar inúmeras situações não só de transfobia e racismo, mas de gordofobia e impotência de acessar determinados lugares por não ter uma aparência de homem padronizada e ter uma vagina. Ter essa genitália na sociedade significa se tornar alvo e sentir medo, independentemente do gênero. Ser homem de vagina é avançado demais para esse sistema machista, principalmente quando seus seios são grandes, fica ainda mais complicado de se impor. Mesmo sendo um corpo masculino, somos silenciados por conta da misoginia”, analisa.

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Existia uma marcação para a parte final deste texto, no arquivo do Word, que dizia: CHORO/VULNERABILIDADE. Desse modo sinalizava o que seriam os últimos assuntos. Como tenho o hábito de definir a rota do texto desde o princípio, abdiquei de contar os depoimentos de enquadramento das lágrimas naquela parte inicial da reportagem. Retomo-as como um fio solto desta escrita, e poderia trazer aqui vários outros que ficaram de fora, que me demandariam muito mais páginas. 

Quando tinha uns quatro anos de idade, Matheus estava em uma academia com sua mãe e tentou brincar com os halteres, o que resultou em um acidente. “Esmagou meu dedo, espatifou minha unha, sangrou pra caralho, foi um negócio horroroso, e o instrutor da academia estava do lado e disse: ‘Homem não chora’. Bom, eu tenho uma lembrança muito nublada, mas minha mãe diz que eu prendi o choro, fiquei pálido, suando frio, mas não chorei”, conta o compositor. 

Também envolve esse gesto o relato de Orun, enviado por um áudio de Whatsapp que se encerra com a voz levemente trêmula: “Acho que a primeira recordação que eu tenho foi algo que ouvi da minha avó paterna. Uma das primeiras coisas que eu lembro é de chorar e a ouvir dizer: ‘Seja homem! Por que está chorando? Homem não chora.’ É bem forte isso para mim; não me permitir chorar é uma coisa muito marcante, maior que qualquer outra. Dá até vontade de chorar falar disso”.

É curioso observar a resposta dos meus entrevistados, quando pergunto se chorar em público os deixa constrangidos: no geral, dizem que não, porém reconhecem que quase nunca acontece.

Tiago West diz: “Para mim, não é um grande embaraço quando ocorre, mas é raro. Sou discreto com questões íntimas e como é nessa instância que meu choro costuma se dar, então acontece pouco”.

José Demóstenes diz: “Se for chorar de emoção, não, quando acontece comigo eu fico feliz até, porque é sempre resultado de uma emoção exacerbada. Só se for alguma situação que foi muito triste para mim, e aí eu não quero mostrar essa tristeza, mas eu não acho que tem uma relação direta com a ideia de homem não chora. Eu acho, né? Não sei”…

Dan Sultanum diz: “Eu nunca fui muito de chorar, mas quando eu sinto vontade de chorar, eu vou às lágrimas e não estou nem aí. Agora, essa questão de eu não ser muito de chorar já me parece o resultado da pressão social”.

Orun Santana, talvez por ser canceriano como eu & acessar as águas com facilidade, diz: “Sim, ainda me deixa constrangido. Eu não me sinto bem, apesar de me permitir chorar mais atualmente. Mas em contexto público ainda não gosto, me preservo, tento me recompor e sinto vergonha”.

Devo dizer que não acredito que chorar em público tenha um valor em si, embora seja chorona praticante. Tampouco que essa restrição, essa preferência por não ser entrevisto abalado, seja exclusiva do homem cis-hétero. O desejo de não se apresentar em estado de vulnerabilidade diante do outro atravessa boa parte da nossa sociedade, que estabeleceu um tipo de valor absoluto para a firmeza, a praticidade e a racionalidade. No entanto, por mais que o impacto disso seja imponderável, o que significa crescer ao som da ladainha que diz que homem não chora, homem não chora, homem não chora? Qual é o efeito, afinal, da mentira repetida muitas vezes? E qual tem sido a sua consequência? 

GIANNI GIANNI, jornalista, escritora e arteterapeuta em formação.

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