Resenha

'Alto da Maravilha': samba e afrofunk na atualização da tradição

O álbum que promove o encontro de Russo Passapusso e Antonio Carlos & Jocafi reposiciona um legado de mais de 50 anos para a música brasileira

TEXTO Marcelo Argôlo

16 de Novembro de 2022

Foto Filipe Cartaxo/Divulgação

[conteúdo exclusivo Continente Online]

Quem acompanha o trabalho de Russo Passapusso, seja no BaianaSystem, seja nos projetos paralelos, sabe que o cantor e compositor é um fã declarado da dupla Antonio Carlos & Jocafi. Já há alguns anos ele fala com frequência da admiração e da influência dos autores de Você abusou no seu jeito de fazer música. Tem alguns anos também que a relação entre esses três compositores baianos evoluiu para se tornar uma parceria bastante produtiva, com participações da dupla em shows e em gravações da banda de Russo, como nas faixas Salve e Água, do álbum O futuro não demora; e no single Miçanga.

Agora, o trio consolida o trabalho em conjunto com o álbum Alto da Maravilha, anunciado em 2019, junto com a lista de contemplados pelo edital Natura Musical, mas lançado apenas no início de novembro de 2022. Segundo contou Russo, em entrevista exclusiva à Continente, a demora na realização do projeto foi causada pela pandemia, que chegou no meio do processo e dificultou os encontros. Outro efeito resultante do distanciamento entre o anúncio e o lançamento foi a expectativa criada para o disco. Arrisco a dizer que este é um dos trabalhos de música brasileira mais aguardados do ano.

O álbum mostra, em 13 faixas – sendo 12 canções e um depoimento de Antonio Carlos – , as facetas dos veteranos que encantaram Russo. O cartão de visitas é Aperta o Pé, um ijexá pulsante, com uma dose de funk, guiado por um riff e uma espécie de beatbox em vocalizes. Uma estética musical que atualiza o estilo afrofunk da dupla, apresentado em canções como Kabaluerê. Com groove e percussividade firmes, essa faceta é explorada no lado "Pé", dentro do conceito pensado para o trabalho, e que segue até pouco mais da metade do álbum. Depois, a partir de Truque, vira o lado "Mão", mais ligado ao lado cancioneiro melódico, ao estilo Você Abusou.

“Esse disco conta uma história. Começa do lado 'Pé', que é o Aperta o Pé, do começo do disco, até Mirê Mirê. A partir daí, traz um cancioneiro muito forte, muito enraizado, que já é mais sentimental, do coração, da música brasileira. Então, o lado Pé traz essa referência de Kabaluerê, mas a gente trabalha pros lados do Sertão, não só litoral e coisas internacionais. Tem o Forrobodó [sexta faixa do álbum], que é bem enraizada, porque o nome do disco, Alto da Maravilha, é uma região lá do sertão [da Bahia]”, explica Russo Passapusso.


Foto: Filipe Cartaxo/Divulgação

Para contar essa história, as vozes de Russo e Antonio Carlos & Jocafi se unem em uma musicalidade que soa familiar, tanto pela aproximação ao estilo já consolidado da dupla, quanto pela sonoridade de Paraíso da Miragem, álbum solo de Russo, lançado em 2014. Contudo, o cantor do BaianaSystem acaba tendo maiores momentos de solista em Alta da Maravilha, enquanto a dupla explora os vocalizes percussivos que muitas vezes parecem verdadeiros beatboxes. Se juntam ao trio os produtores Curumin (que também canta na última faixa), Zé Nigro e Lucas Martins, além das participações de Djalma Corrêa e Karina Buhr, em Olhar Pidão, e de Gilberto Gil, em Mirê Mirê.

O SAMBA AFROFUNK DE ANTONIO CARLOS & JOCAFI
Alto da Maravilha é um trabalho que busca atualizar, no sentido de tornar atual, uma trajetória de mais de 50 anos de parceria musical. Há, inclusive, uma revisita à primeira canção de Antonio Carlos & Jocafi que ganhou repercussão nacional, Catendê. A música foi defendida pela cantora Maria Creuza no V Festival de Música Popular Brasileira, em 1969, e marca o início da carreira da dupla de cantores e compositores.

No álbum recém-lançado, a canção ganha uma interpretação de Curumim e vem antecedida por um depoimento de Antonio Carlos, que revela a profundidade da simbiose dele e de Jocafi. “Qualquer coisa que eu tenha feito, mesmo sem Jocafi, é de Antonio Carlos & Jocafi, assim como qualquer coisa que ele tenha feito é de Antonio Carlos & Jocafi”, afirma, na faixa 12 do disco. Diferente de Caetano Veloso e Gil, que talvez seja a dupla de baianos mais consagrada na história da música brasileira, mas que atuaram apenas em momentos pontuais como compositores parceiros, os ídolos de Russo Passapusso construíram toda a carreira como uma dupla.

Eles ficaram muito conhecidos pelas contribuições que deram ao samba, parte significativa da obra da dupla. Canções como Teimosa, Desacato, Toró de lágrimas, entre muitas outras, consolidaram a dupla como um dos principais nomes do gênero brasileiro e trouxe o reconhecimentos de figuras como Vinícius de Moraes, Toquinho, Luiz Gonzaga e Elis Regina. Uma importância para a divulgação do estilo baiano de fazer samba, que pode ser comparada à importância da dupla John Lennon e Paul McCartney para a divulgação do rock inglês.


O álbum foi anunciado em 2019, mas, devido à pandemia, só pode ser lançado agora, em 2022. Foto: Filipe Cartaxo/Divulgação

Contudo, além dos sambas, Antonio Carlos & Jocafi desenvolveram um estilo que Russo batizou, no material de divulgação que acompanha o Alto da Maravilha, de afrofunk. É o estilo explorado no lado "Pé" e que remete a canções como Kabaluerê, Glorioso Santo Antônio e Oxossi Rei. Com o grande sucesso, inclusive comercial, do samba Você Abusou, do primeiro LP, Antonio Carlos & Jocafi exploraram muito mais esse aspecto do cancioneiro, melódico e sentimental nos trabalhos seguintes. O estilo do lado "Mão" foi o que os consolidou nos anos 1970, mas é o estilo do lado "Pé", com guitarras e sintetizadores misturados à percussão, que tem sido mais importante nesse momento de renovação e apresentação para uma nova geração de ouvintes.

A percepção de que o público jovem tem se aproximado da obra de Antonio Carlos & Jocafi gera entusiasmo para a dupla. "Antes de gravar com Russo, nós gravamos com o Baiana, né?! Fizemos shows com ele e, então, o jovem veio para a gente de uma forma maravilhosa, o que renova as nossas energias! E tudo começou com o [Marcelo] D2, que gravou Qual é? com [um sampler de] Kabaluerê, que hoje é a nossa segunda música mais conhecida no mundo”, conta Antonio Carlos.

“Eu não vejo resgate como passado. Até para a juventude entender, eu vejo resgate como F5. Quando você aperta F5 no computador você atualiza, então esse processo é de atualização. Eles sempre fizeram uma música futurista e eu acho que a gente ainda não alcançou o futurismo das músicas deles na década de 1970”, afirma Russo sobre a aproximação do público jovem da música da dupla.

O MENINO DA LOJA DE DISCOS
Toda essa repercussão e sucesso da dupla teve o auge entre 1971 e 1980, quando eles lançaram 10 álbuns. Entre eles, estão Mudei de ideia, a estreia da dupla; Pastores da noite, junto com Maria Creuza e que traz a trilha sonora do filme homônimo; e Ossos do ofício, o disco que encantou Russo. O cantor do BaianaSystem, na época, ainda não era artista e trabalhava numa loja de discos, no centro de Salvador.

“Eu ficava responsável por trocar os discos, vender os discos... Numa dessas, eu encontrei o disco Ossos do ofício e me apaixonei pela estrutura de samba, pela estrutura de composição, por aquela dupla. Depois, fui conhecer outros discos e percebi a coisa internacional deles e que eles tinham uma estrutura de composição que trazia a fusão, a renovação e a inovação”, conta Russo.


O show de lançamento de Alto da maravilha aconteceu na Fábrica Cultural da Ribeira, em Salvador, no último dia do festival Radioca 2022. Foto: Rafael Passos/Festival Radioca 2022

O encontro aconteceu anos depois, já como cantor do BaianaSytem. “Sempre me falavam que era muito difícil encontrar com eles, que eles moravam no Rio, aquela coisa. Um belo dia, minha companheira, que trabalhava num programa de TV em Salvador, me falou que ia entrevistar Antonio Carlos & Jocafi e eu nem acreditei. Aí, eu fui pra lá com o disquinho embaixo do braço, só lembrando daquele menino da loja de discos”, relembra.

“Foi uma coincidência, porque nós estávamos em Salvador para fazer um show e tinham falado para a gente de Russo, que ele é maravilhoso. Aí, quando a gente foi na TV divulgar esse show, encontramos com ele, que a gente ainda não conhecia pessoalmente, e ele estava com os discos de Antonio Carlos & Jocafi pra gente autografar. Desde esse primeiro encontro, foi uma amizade muito boa, olho no olho”, relembra Antonio Carlos.

O encontro, em 2017, marcou o início da parceria que resultou no Alto da Maravilha, que também já estreou em show. No último 13 de novembro, Russo Passapusso e Antonio Carlos & Jocafi subiram no palco do Festival Radioca, em Salvador, como headline, a atração principal na linguagem dos festivais. O show passou pelo disco e ainda trouxe algumas das canções tanto da dupla, quanto do BaianaSystem e do álbum solo de Russo. Por enquanto, não há datas confirmadas, mas Russo adiantou que há o desejo de realizar uma turnê e os convites já estão chegando.


Imagem: Reprodução

MARCELO ARGÔLO, jornalista e pesquisador musical. Autor do livro Pop Negro SSA: cenas musicais, cultura pop e negritude, mestre em Comunicação pela Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), escreve sobre música há 10 anos.

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