Resenha

BaianaSystem, da água ao fogo

Expoente da música contemporânea de Salvador, grupo mergulha no conceito da ancestralidade em 'O futuro não demora', terceiro disco que acaba de ser lançado nestes dias de pré-Carnaval

TEXTO MARCELO ARGÔLO, DE SALVADOR

20 de Fevereiro de 2019

Para fazer o disco, grupo saiu de Salvador e fez uma imersão na Ilha de Itaparica

Para fazer o disco, grupo saiu de Salvador e fez uma imersão na Ilha de Itaparica

Foto Filipe Cartaxo/Divulgação

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Há 10 anos, o conhecido som da guitarra baiana começava a circular em Salvador numa roupagem diferente da habitual. Fortemente relacionado ao Carnaval da cidade e conhecido principalmente nos frevos elétricos de Armandinho Macêdo, o instrumento passou a ser ouvido, naquele ano de 2009, a partir de uma mistura de Bahia com Jamaica. Era a estreia do BaianaSystem, que já nesse primeiro momento explorava uma sonoridade de beats eletrônicos junto aos graves do baixo de Seko Bass, aos timbres e frases melódicas da guitarra baiana de Roberto Barreto e ao vocal meio rap, meio raggamuffin de Russo Passapusso.

Também nesse primeiro momento, a relação com o Carnaval já era evidente. “O Carnaval, quem é que faz?/ O Carnaval ainda quem faz é o folião”, eis os versos do refrão cantado por Lucas Santtana, em participação no primeiro álbum do grupo. Durante esses 10 anos, a relação do BaianaSystem com a festa, principalmente em Salvador, só se fortaleceu, e o grupo desfila nos circuitos em cima do trio elétrico desde 2010. A cada ano, cresce a multidão que acompanha o Navio Pirata, nome do trio do grupo, e que espera deles novidades para a festa.

Em 2019, o que oferecem é o terceiro álbum, intitulado O futuro não demora, lançado nestes dias que antecedem a festa – nas plataformas, o disco está no ar desde a última sexta (15/2). Para quem está acostumado com o som incendiário do Baiana, a primeira escuta pode causar estranhamentos. “Sentíamos necessidade de desacelerar”, conta o guitarrista Roberto Barreto sobre o mote da concepção do trabalho. É uma fase contemplativa da banda, na qual a agitação dá lugar à apreciação.


Foto: Filipe Cartaxo/Divulgação

DESACELERA
Enquanto o segundo disco Duas cidades (2016) é resultado de um processo de três anos de experimentações show após show, O futuro não demora foi concebido principalmente fora dos palcos. A forte ligação com o cotidiano da cidade e os questionamentos que essa vivência gerou foram o fio condutor do disco anterior. Agora, o que motiva a criação e conceitua a obra é a pesquisa e o entendimento da ancestralidade. Em que lugar estamos? Como ele se tornou o que é? Como viemos parar aqui? Que caminhos estamos construindo para o futuro? São alguns questionamentos que parecem rondar toda a escuta.

O processo de produção também marca a desaceleração. O grupo saiu do cotidiano urbano de Salvador e buscou uma imersão na Ilha de Itaparica, banhada pela Baía-de-Todos-os-Santos, assim como parte da capital baiana. De Itaparica é possível ver Salvador e de Salvador é possível ver Itaparica. Apesar da conexão visual, os locais têm estilos de vida distintos, a mesma diferença que se observa nos álbuns do Baiana.

“Para fazer Duas cidades, fomos para São Paulo e passamos um tempo lá com Daniel Ganjaman para traduzir a linguagem de show que nós tínhamos construído até ali numa linguagem de disco. Agora, foi Ganjaman que veio à Itaparica para entender e conhecer as nossas motivações. Desde o início, sabíamos que não seria um processo de 20 ou 30 dias de gravação. Passamos 2018 praticamente todo em um trabalho profundo de pesquisa, pré-produção das bases e conceituação de todo o ambiente do terceiro disco”, relata o guitarrista.



DA ÁGUA AO FOGO
O futuro não demora tem referências como ijexá e samba-reggae, que ganham espaço em relação ao groove arrastado, elemento que deu o tom do disco anterior. A partir desses ritmos, uma narrativa com início, meio e fim é construída durante a escuta. O disco está dividido em lado Água, nome da primeira canção, e lado Fogo, título da última faixa. A transição é feita com o Melô do centro da Terra, um canto guiado pelo berimbau de Mestre Lourimbau. Há ainda elementos latinos na faixa Sulamericano, que traz a participação de Manu Chao.

A lista de colaborações no álbum é extensa. Na ficha técnica de todas as faixas, há nomes de músicos de fora do grupo. Percebe-se que muitos participaram da construção da narrativa de Água até Fogo. É o caso, por exemplo, do maestro Ubiratan Marques, regente da Orquestra Afrosinfônica, também no disco. Bira, como ele é conhecido, começou a aparecer nos shows do Baiana desde o início do ano passado, já em cima do trio no Carnaval. “Vínhamos compondo uma sinfonia junto com Bira. Para ele, a essência da sonoridade do Baiana está na combinação das frequências graves do baixo e as médio agudas da guitarra baiana, o que é um campo vasto para o trabalho de criação de uma sinfonia. Então, começamos a compor uma obra com elementos eletrônicos e canto”, conta Barreto. Água e Fogo são partes dessa sinfonia, tanto que são as duas faixas que contam com a participação da Afrosinfônica.

Russo Passapusso, Roberto Barreto, Seko Bass, o guitarrista Junix, o próprio Bira, Ganjaman e as cantoras Tatiana Lírio e Lívia Nery formam um núcleo básico no disco, ao qual se somam outras colaborações. Vale a pena destacar a presença da dupla baiana Antônio Carlos & Jocafi, que participa tanto no canto quanto na composição, figuras sempre citadas por Russo como referências na sua construção como artista. Além deles, o álbum traz participações de BNegão, Curumin, Edgar, Mestre Jackson, Vandal, das mulheres do Samba de Lata de Tijuaçú, entre outras.

Quem também tem um papel fundamental na construção da narrativa do álbum são os percussionistas Icaro Sá e Japa System. Os dois são colaboradores de longa data do Baiana, tanto em gravações quanto ao vivo. É de responsabilidade deles a tradução dos beats eletrônicos para a percussão. Um trabalho de concepção e arranjo que traz para o centro da sonoridade os ritmos afro-baianos.

Os dois, aliás, estão entre os principais músicos da percussão da Bahia atualmente e têm estilos que se completam. Enquanto Icaro tem uma carreira que mescla tradição e inventividade em trabalhos com nomes como Ramiro Musotto, Orkestra Rumpillezz e Arto Lindsay, Japa é reconhecido pela pesquisa com percussão eletrônica e a fusão orgânica com a afro-baiana. A percussividade é um elemento da sonoridade do disco, e do Baiana como um todo, que precisa ser creditado ao trabalho dessa dupla.


Foto: Filipe Cartaxo/Divulgação

TEOR POLÍTICO
Todo o trabalho de concepção musical em O futuro não demora não deixa de lado o reconhecido teor político do BaianaSystem. O grupo não defende uma bandeira específica, mas lança questionamentos, como “O Carnaval, quem é que faz?”, ou “Tirem as construções da minha praia”. Além disso, se posiciona nos embates que marcaram a estrutura política brasileira nos últimos anos.

Em 2017, por exemplo, o grupo foi ameaçado de punição depois de puxar um coro de “Fora, Temer” durante o desfile na sexta-feira de Carnaval em Salvador, em plena transmissão ao vivo das emissoras de TV. Já recentemente, exibiu nos telões de seus shows frases como “Ele não”, em oposição à candidatura de Jair Bolsonaro à presidência, e “Marielle presente”, em referência ao assassinato da vereadora carioca Marielle Franco em março de 2018.

A maneira de se posicionar continua a mesma no novo disco. Frases curtas, por vezes lúdicas, marcam a posição do grupo em discussões atuais. O recado está dado em versos, como: “No tempo que a pedra lascada fazia o papel de bala de metal,/ Não tem diferença do homem moderno pro homem de Neanderthal” (Bola de cristal); “Salve Nelson Mandela, Martin Luther King, Ilê Ayê” (Salve); “Nas veias abertas da América Latina,/ tem fogo cruzado queimando nas esquinas” (Sulamericano).

Do trabalho de concepção musical ao de construção das letras, tudo que está posto no novo álbum nos leva a desembarcar da escuta com o nome do disco repetido como um mantra: “O futuro não demora... O futuro não demora... O futuro não demora... O futuro não demora…”. Uma mensagem de esperança que o Baiana nos deixa, em um momento de retrocessos históricos e de conservadorismo reacionário.

No Carnaval do Recife, estão programadas duas apresentações. No sábado (2/3). eles fazem show no Camarote Parador, junto a Eddie, Natiruts, Monobloco e DJ440. Já no dia seguinte, a apresentação será no Polo Lagoa do Araçá, na Imbiribeira.



MARCELO ARGÔLO, jornalista e aspirante a crítico musical. Atualmente, pesquisa a cena musical contemporânea de Salvador no mestrado em Comunicação pela Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB).

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