FOTOS ERIC GOMES
04 de Janeiro de 2019
O Mateus do Cavalo Marinho Boi Matuto, da família Salustiano
Foto Eric Gomes
[conteúdo exclusivo Continente Online]
A Mata Norte de Pernambuco é terra fértil à cultura brasileira. Berço de manifestações como a ciranda, o maracatu de baque solto, o caboclinho e o cavalo marinho. No ciclo natalino, a Cidade Tabajara, em Olinda, torna-se terreiro aglutinador de vários delas, através de eventos como o Encontro Nacional de Cavalo Marinho. Conhecer os grupos em suas cidades de pertença ou ir às sambadas e ensaios é necessário para se aproximar da vivência que cada um deles tem com seu brinquedo, mas os dias 25 de dezembro e 6 de janeiro na Casa da Rabeca, da família Salustiano, são também uma oportunidade para o público conhecer a simbologia de cada expressão e seus mestres, ao reunir vários brincadores de cidades distintas do estado.
Na tradição, dia de Natal é tempo de brincar cavalo marinho, apesar de outras manifestações populares integrarem o ciclo natalino do Nordeste, como o bumba meu boi, o pastoril, o reisado e a folia de reis. Sendo assim, o período natalino e a vontade de Mestre Salustiano de juntar grupos em Tabajara se alinharam até a criação dos encontros, há 24 anos. Entre os presentes, estão o Boi Matuto, fundado por Salu; o Cavalo Marinho Estrela de Camará, de Luiz Caboclo e Mestre Sebastião Joaquim dos Santos; e o Cavalo Marinho Boi Pintado, de Mestre Grimário. Outro frequente na festa é o Cavalo Marinho Estrela de Ouro, fundado em 1979, pelo Mestre Biu Alexandre, de Condado. Biu tomou gosto pela brincadeira ainda na infância, de observar os mais antigos botarem figuras. Mané do Baile, Ambrósio, Mateus, Bastião, Catirina e tantos outras – são para mais de 70 ao todo.
Preparativos do Cavalo Marinho Boi Matuto, da família Salustiano.
Acima, Dinda veste uma figura
Na narrativa, o dono da terra, Capitão Marinho, resolve dar uma festa em homenagem aos Santos Reis do Oriente, que haviam visitado Jesus. Para isso, chama os nêgos Mateus e Bastião (representantes dos trabalhadores rurais e escravos) para cuidarem da folia, que tem elementos da jurema e do candomblé. A partir daí, a história vai sendo construída por essas e outras figuras, embalada por toadas e loas (versos). A sequência das personagens é peculiar a cada grupo; cada um tem sua maneira. Mestre Sebastião diz que a história não é rígida, porque também conta muito o improviso do brincador. Mas o público não é passivo, é ele quem determina o espaço da roda onde a brincadeira acontece, conta ele. Para o aquecimento, tem grupo que começa com o mergulhão, espécie de jogo de dança entre os que estão ao redor, e segue com a toada solta; outros invertem a ordem. No cavalo marinho de Seu Biu Alexandre, a primeira figura é o Ambrósio, depois vêm Mateus e Bastião, mas outros grupos fazem o inverso.
Começa a brincadeira. No meio da dança, está Moca Salu...
TRADIÇÃO EM MOVIMENTO
A manutenção da tradição é fundamental, mas a cultura não é estanque e manifestações populares, como o cavalo marinho, acompanham seu contexto histórico, cultural e sociopolítico. Se antes mulheres, no máximo, observavam ou participavam na confecção das roupas e máscaras, atualmente, elas participam das brincadeiras e ocupam figuras de destaque. Imaculada (Moca) e Betânia Salustiano, do Boi Matuto, são alguns dos exemplos. Eliane Valéria, do Estrela de Ouro, também é. Moca Salu conta que ela e a irmã, no início, tiveram de conquistar esse espaço aos poucos. Lembra a primeira vez que botou a figura do vaqueiro, de referência ao masculino, e diz que foi a primeira mulher a fazer isso. Durante o aniversário do pai, para homenageá-lo, pois quando tinha mais saúde, era Salu quem botava essa figura.
A dança, a feitura das máscaras e vestimentas ou a forma de tocar rabeca de Luiz Paixão são saberes que vão sendo retomados e reconstruídos. A memória vai sendo recriada. Com a origem fincada pela criatividade dos trabalhadores rurais e escravos nas senzalas da Mata Norte pernambucana, e em parte da Paraíba, a brincadeira se renova através dos que a fazem e ganha outros territórios, pela capital – o Boi Matuto é de Olinda, por exemplo – ou até por outros estados, como é o caso do Cavalo Marinho Boi da Garoa, grupo de estudos atuante em São Paulo.
Na Casa da Rabeca, a manutenção do chão batido prevalece sobre qualquer sugestão em asfaltar ou calçar o espaço. É a simbologia da tradição, faz parte e nisso não se interfere, é o que afirma Pedro Salustiano, irmão de Maciel, Imaculada (Moca), Pedro, Cristiano, Dinda, Betânia e os outros. Duas horas antes de a brincadeira começar, Cleiton Salu, filho do mestre, molha todo o terreno. “É um processo que se faz antes. Molhar a terra para ficar todo mundo à vontade e a poeira não subir”, explica. Sabedoria herdada dos antigos. À noite, ele veste-se de Bastião, no Boi Matuto. Junto aos irmãos, mantém laços fortes com a arte, inclusive através do Maracatu Piaba de Ouro. Eles se revezam nas tarefas e figuras. Maciel bota o Mané do Baile, toca rabeca, mineiro. Dinda e Cristiano, que confecciona as roupas, também fazem parte do banco. Moca e Betânia puxam a dança dos arcos – lugares outrora inimagináveis para mulheres. São quatro gerações da família Salustiano que participam atualmente.
Aparece o Pisa Pilão, figura responsável por preparar o terreno para a festa...
E tem o Mané do Baile. Quem bota a figura aqui é Maciel Salu, do Boi Matuto
Ambrósio pode vir logo ou depois
DE PAI PARA FILHO
“É meu menino ali”, aponta um simpático senhor para o banco – é assim como se chama a banda que executa as toadas. Para ouvidos desacostumados, perto do banco é mais fácil escutar a apresentação do cavalo marinho. A formação costuma ser pandeiro, mineiro (ganzá), os que tocam bage, uma rabeca e as vozes. “Seu filho é o que está tocando pandeiro?”, pergunto com o caderninho na mão. Isso faz perceber que era jornalista. Todo dia 25 de dezembro, jornais e emissoras de TV aparecem por lá. “Sim, ele faz Engenharia e toca no Boi da Luz”, responde com orgulho de quem ensinou. Após a apresentação, seu José Salustiano contou ter nascido no Engenho Cachoeira, em Vicência, e ser irmão de Mestre Salustiano, com quem tocou em várias festas. O gosto pelo pandeiro, Gleibson Soares teve vendo o pai tocar no Boi Matuto. Hoje, toca bage, mineiro e participa ainda na rabeca, “mas chego lá”, brinca.
Dá pra ouvir o som do banco do Cavalo Marinho Estrela de Ouro, de Condado
Aprendizados passados de pais e mães para filhas e filhos são comuns nas manifestações populares, em suas tradicionais formas de organização familiar. Pedro Salustiano se diz emocionado ao ver João Pedro, de sete anos, botando o Mateus no Cavalo Marinho Boi da Luz. O grupo, aliás, é destinado a jovens da Cidade Tabajara. Quando criança, Pedro pedia para acompanhar Salu nos sambas da Mata Norte. Foi aprendendo um jeito de dançar, as loas e decorando as toadas. A história se repete agora com seu filho.
Com Mestre Grimário, de Aliança, o início foi um pouco diferente. Criado pela avó, sua relação com o brinquedo começou porque ela trabalhava na casa de Mestre Batista, que tinha um grupo. “Minha escola e faculdade eram a casa dele, onde aprendi maracatu e cavalo marinho”, conta.
Foi no Natal passado, dia 25 de dezembro de 2018. Olha a expressão do rosto
Sebastião Joaquim dos Santos é brincador antigo. Começou com 14 anos e, aos 68, é mestre do Cavalo Marinho Estrela de Camará. Chegou bem cedo ao encontro, num ônibus vindo de Aliança, no Engenho Camará.“Todo cavalo marinho que tem fico doido para brincar. Mesmo se for no dos outros. Só gosto de ir se for participar. Vou olhar o que já sei fazer? Brinco em João Pessoa, Upatininga, Nazaré, aqui... Comecei com Salu. Conheço os meninos dele todinhos, quando chego aqui é uma festa. Agora sou um dos figureiros mais velhos. Faço qualquer figura”, afirma. Ele atenta para um aspecto ao cavalo marinho de hoje: se antes a brincadeira começava na beira da noite e ia até rasgar a barra do dia, hoje é mais curta – uma ou duas horas aproximadamente.
Entre os brincadores, Fábio de Souza é neto de Mestre Biu Alexandre e bota várias figuras no Estrela de Ouro. Sua performance, desde o início com o Ambrósio, impressiona e envolve o público. Ele também faz o Bode, o Cavalo, o Mané do Baile e outros. Mas nem sempre a participação foi bem-vista pelo pai. “No início, meu pai não queria que eu brincasse porque dizia que não dava nada para ninguém. Quem brincava na Zona da Mata era cortador de cana ou quem trabalhava no roçado. Ele queria que eu fizesse outras coisas, mas essa é minha paixão e com 18 anos, eu comecei. Estou aqui agora.”
Fábio de Souza e sua paixão por botar figura de cavalo marinho.
Aqui quem aparece é o Bode!
O bailarino, ator e pesquisador Helder Vasconcelos, fundador do Boi Marinho e um dos músicos que fizeram parte da banda Mestre Ambrósio, nos anos 1990, não perde os encontros. “No atual momento do país, um cavalo marinho acontecer é resistência pura. Estar aqui é uma experiência aos que se abrem e se permitem ver uma tradição popular como esta. Você experiencia relações com o passado, relações sociais, históricas, através da música e da dança. Não estou nem falando de compreensões racionais, mas isso tudo está aqui”, defende o artista.
De fato, somente estando presente para experimentar a brincadeira desta “ópera do Nordeste”, em referência à definição de Maciel Salu.
Cavalo marinho é força e delicadeza, energia e beleza. Olha o passo do rapaz, e o Nêgo da Quitanda? Quem encerra a festa é o boi.
ERIKA MUNIZ, estudante de Jornalismo e colaboradora da revista Continente que acredita, cada vez mais, na transformação pela força da música e da dança.
ERIC GOMES é fotógrafo e videasta de cultura, com trabalhos autorais em movimentos sociais, manifestações tradicionais e povos indígenas.