Relato

Manguetals

Artista relembra a participação das mulheres no Movimento Mangue, do qual também participou ativamente

TEXTO Karina Buhr

31 de Março de 2023

No meio dos homens: Mestre Barachinha (esq.), Siba, Goleiro e Maciel Salu na sambada em Nazaré, 2015. Karina toca ganzá

No meio dos homens: Mestre Barachinha (esq.), Siba, Goleiro e Maciel Salu na sambada em Nazaré, 2015. Karina toca ganzá

Foto José de Holanda/Acervo da artista

[conteúdo exclusivo Continente Online]

Festa no terreiro, chão de barro, dança e música que se misturavam com cada célula do meu corpo. No banco, “rabeca, pandeiro, baje, baje e mineiro”, dizia o Empata Samba, no cavalo-marinho, apontando pros instrumentos. Todos homens. O mineirista sai e Siba, que estava na rabeca, pede pra eu tocar e começo. Toco uns dois minutos, um galante que está na dança dos arcos larga o arco rápido, pega o mineiro da minha mão e toca até a volta do músico. 

Baixo, bateria e guitarra, a festa não terminava. Todos homens. Eu admirava a tranquilidade bêbada de músicos e plateia, e assistia gostando do som, gostando de tudo e pensando que beleza a possibilidade de poder cair no palco, sendo que subir no palco ainda era desafio. Outro dia, outra banda boa, o baterista cai do palco com bateria e tudo. Todos homens. Não desejei cair do palco com a bateria, mas invejei de novo a leveza da possibilidade do não julgamento, ou até do julgamento de um tipo que não impedisse a passagem da música, da ideia, mesmo dos erros, do jeito que eles viviam ali. Chego num ensaio, não tem muito lugar pra mim, mas fico. O sábado é de rima, baque solto, o samba comendo, maravilha geral. Todos homens. 

A festa hoje é em Guadalupe. Atabaques, gonguê, palmas, roda. Todos homens. A Pomba-gira entra, me dá uma garrafa de champanhe e as maracas, me manda tocar. Minha primeira vez na umbanda. Ali perto toquei por alguns anos, xequerê e também atabaque, no afoxé, todo domingo, na Cantina Z4, colônia de pescadores de Olinda, e timbal nos cortejos de Carnaval. 

No Natal, Manuela e eu no mergulhão (uma dança do cavalo marinho), dando uma forçada de barra, como de costume, pois poder não podia; mulher não era pra dançar, tocar, nem botar figura no cavalo-marinho. Essa vontade tive que engolir, nunca botei figura. As luzes de uma filmagem acendem, para tudo, “pra vocês saberem que elas estão dançando hoje aqui porque é festa de Natal, pra ninguém sair por aí dizendo que viu mulher brincando no brinquedo de Salu”. Esse pensamento não era só dele, era o costume, e a intenção aqui é contar cenas reais pra esboçar um resumo de memória, às vezes um pouco turva, de coisas que se passaram há décadas, de um roteiro grande, muita história, que esse texto não vai dar conta de contar direito nem a minha própria, muito menos a de outras pessoas, nem de resolver nada, nem tem essa pretensão. Uma coisa que a memória não esquece é que era triste demais não poder brincar junto, ter que só assistir.
Que mulheres, cis e trans, homens trans, pessoas não binárias, todes, possam viver na tranquilidade e contar suas histórias. Avia, século vinte e um! 

Salustiano foi um grande mestre e dividia sua sabedoria no dia a dia também com as filhas, que acompanhavam tudo e participavam ativamente nos bastidores. Betânia pequenininha já mostrava a que veio, Moca já deixava pular pelos olhos a liderança que, àquela altura, já tinha e apontava pras rédeas que ela mesma ia pegar pra guiar depois. Me emocionava vê-las ali e também outras mulheres de Cidade Tabajara, que bordavam gola, costuravam, cozinhavam, organizavam, criavam, produziam. Na frente da cena, só se fossem baianas, e ser baiana não era menor, de maneira nenhuma, mas tocar no terno ou no banco não podia. Fui baiana do Piaba de Ouro e tocava no terno de vez em quando, porque o Carnaval é grande, maracatu acorda cedo e dorme tarde e muitas coisas aconteciam quando se tinha vontade. Outras não. 

A bailarina Patrícia Sene passou por lá e era lanceira no seu espetáculo. Interações, conflitos, aprendizados, mudanças. No dia em que vi Maíca, filha de Biu Roque, tocando no banco de cavalo-marinho, a gente ficou se olhando e gargalhando, sem falar nada, sensação boa demais. Obrigada, Maíca! Moca hoje é mestra, formou o cavalo-marinho Flor de Manjerona, só com mulheres, e a história se mistura com lantejoula pelas mãos delas. Os mestres mais velhos seguem sendo reverenciados por elas e as admiram, brincam juntos, eles e suas afilhadas e netas nos mistérios, na beleza e no motor das usinas dos brinquedos. Salu com certeza está orgulhoso. 

Volta pras cenas de antes. Quero tocar tambor, mas há uma proibição sem placa de proibido, chuvas de nãos, ditos e não ditos. Conheci Cristina Barbosa, Virgínia Barbosa e Neide Alves, com elas muitas admirações e caminhos, elas faziam o que eu queria fazer e não via muita possibilidade, me inspiraram, musas verdadeiras. Comecei a tocar no Carnaval no Angáatãnamú, grupo de percussão liderado por Éder O Rocha, e de lá pro Estrela Brilhante, onde elas já tocavam. Walter França, mestre do baque do Estrela na época, hoje mestre do Raízes de África, exige demais de todo mundo, inclusive da gente, que sorte. Obrigada, Walter, sempre! No Estrela, me aproximei dos bombos de macaíba que aprendemos a ocar, fazer aro, encourar e afinar. Dois deles, feitos nessa época por Guga Peixoto, são os que toco ainda hoje e já usava na Comadre Florzinha, banda com Renata Mattar, Telma César, Isaar e Alessandra Leão. Um pouco antes de gravarmos o disco, em 1999, Maria Helena Sampaio se juntou com a gente. Toquei com Erasto Vasconcelos, nosso Beta Vovô, Renata também. Ele tinha mulheres na banda e o irmão, o querido Naná, também; Lulu e Aninha o acompanhavam. 


Karina (à direita) com Neide Alves, Virgínia Barbosa e Cristina Barbosa. Foto: Éder O Rocha/Acervo da artista

Eu ia pra roda de Dona Selma do Coco no Amparo, onde conheci a grande Aurinha do Coco e sua filha Negadeza, neta de Selma, que hoje brilha pelo mundo com seu gogó de ouro e seus tambores. Tinha o Rala Coco, com Isa Melo e Lígia Verner, que cantavam com elas. Lá estavam dona Cila, o Raízes de Arcoverde por todo canto, com as mestras Iran Calixto, Ilma (Pecon), Damares. E mais coco, o Amaro Branco é onde tem, faz tempo, Dona Glorinha e Ana Lúcia. 

Uma movimentação intensa começar e se espalhar vertiginosamente foi o que vi, participei e entendi como uma coisa muito especial. Um manifesto importante existiu, que representava as bandas ponta de lança dos microfones ligados pra espalhar sua música de efeitos extraordinários em todo mundo que entrava em contato com ela e expor, na base da poesia, a ligação dela com a cidade. E a cidade estava fervendo, música de todo tipo, pra todos os lados, e muita gente passava por ela, de dentro e de fora dela, do estado inteiro e de outros estados. E a cidade cresceu... estufou de beleza.

Tudo começou num planeta sem internet, com panfletos, fanzines, fitas k7, novidades chegando como fofocas preciosas, na base da orelha e do grito, troca de ideias, escavação de sons antigos, alegrias e agonias na presença física, conhecimentos que chegavam falados, na boca ao vivo. Eram muitos núcleos criativos e eles conversavam entre si, criavam uma liga que permanece. Enquanto uma cena dos palcos acontecia com força total, a força no chão também era imensa, com os maracatus, caboclinhos, cocos, afoxés, cirandas. O MNU (Movimento Negro Unificado) criou a Terça Negra. 


Lucas e Karina no Estrela Brilhante. Foto: Éder O Rocha/Acervo da artista

Quem fica com o nome escrito na história e quem escreve? A importância de uns não derrete a de outros, pelo contrário, ressalta tudo o que se disse sobre esse movimento. Foi intenso e isso inclui muitas mulheres, em várias frentes. Mas elas não estão com o nome gravado nesse lugar, ficam na memória de quem estava lá e quanto mais tempo passa, mais se perde, a ponto de muitas delas nem lembrarem mais onde exatamente estavam num fervo que começou 30 anos atrás e durou uns bons, sei lá, 10 anos? Se deres um google, não encontrarás quase nada. Se reparares nas comemorações, verás majoritariamente homens e quase nenhuma mulher entre as que estavam lá, na atividade, na movimentação intensa que, ainda bem, não cessou. O que os homens que lá estavam conquistaram com a grandeza da arte que faziam e fazem está guardado, lembrado, comemorado e que maravilha isso. E tinha mulher fabricando raridades também, construindo pontes, pensando coisas, realizando junto, ao mesmo tempo. Celebremos. 

No Balé Brasílica, filho do Balé Popular do Recife, conheci Amélia Veloso, com quem aprendi e que formou, junto com Bernardino, o Nação Pernambuco, e Vilma Carijó com seu Daruê Malungo, com mestre Meia Noite. Tinha mulheres também na Cabra Alada, Márcia Araújo rainha desde antes; as pastoras do Véio Mangaba e suas Pastoras endiabradas; nas produções, realizações, pensamentos, cenografias, design de cartazes, na música, nos figurinos, no cinema, estavam lá Sonally Pires, Sonaly Macedo, Denize Barros, Mônica Rodrigues Fernandes, Melina Hickson, Valentina Trajano, Carla Sarmento, Isabela Faria, Stella Zimmerman, Chica Mendonça, Katia Mesel, Clarice Hoffmann, Aninha Z, Adelina Pontual, Cecília Araújo. 

Maria Duda Belém me entregou um panfleto de um show, na entrada de um mercado, falando “é o trabalho de uns amigos que fazem um som fusion”... o resto é história. Nas artes plásticas, Oriana Duarte, Renata Pinheiro, Juliana Notari e aqui vão faltar realmente muitas outras. Entre os Moluscos Lama, estavam Lia Letícia nas artes visuais, ela hoje também trabalha com Lia de Itamaracá (que é Lia de todos os movimentos), Lícia Jardim nos Textículos de Mary, Renata Faccenda. Ainda nas produções, Paula de Renor, Damiana Crivellare... 

Stela Campos, presença importante na cena, também Tania Christal trazendo música e teatro misturados; Mônica Pantoja, Mônica Feijó, Fabiana Pirro, Christina Jovita, da Tempo Nublado, Aline Feitosa e Iana Reckman no Kaya na Real, Daniela Câmara no Zaratempô, Lucinha Guerra, Ana Miranda, DJ Lala K. Maíra Macedo no cavaquinho e Moema Macedo no bandolim, Aglaia Costa na rabeca, Lourdinha Nóbrega no sax. As Loucas de Pedra Lilás estavam pelas praças fazendo teatro feminista. A Zabumba Velha do Badalo fazia São João no Poço da Panela. Quem viu o Majê Molê não esquece. Mônica Lira! Maria Paula Costa Rêgo, o maracatu Badia, Beth de Oxum, Ana Paula Guedes, cantora divina do afoxé Alafin Oyó. Tinha Márcia, da Período Fértil, nos figurinos e também Andrea Monteiro. Michelle de Assumpção e Adriana Dória Matos, jornalistas fundamentais, depois também Débora Nascimento no bonde; Aninha de Fátima documentando tudo, Vládia Lima e Roberta Guimarães fotografando. Renata Rosa chegou pra junto. Mestra Joana Cavalcante no final dos anos 1990 já moía as coisas, com suas Filhas da Oxum Opará, na comunidade do Bode, pra se tornar quem é hoje, a primeira mestra de uma nação de maracatu de baque virado, o Encanto do Pina. 

Fazer lista de nomes é tarefa difícil. Sofro por antecedência, já que não vou nomear todo mundo, por esquecimento na hora de escrever, por estar insegura em algumas informações sobre algumas pessoas, pelo prazo de publicar.

Estou trabalhando com minhas memórias e com fé que a covid não tenha estragado o que me restou. Este é um texto a partir de onde eu estava, onde outras mulheres estavam também, antes, durante e depois – comecei a tocar em 1991 e os registros aqui são mais ou menos até 2000 –, num tempo em que relações de amizade e arte criavam tecnologias na festa, na busca de uma fala própria e reverberação, no meio do caos e da lama. 

KARINA BUHR, cantora, compositora, ilustradora, escritora e atriz. A artista fez parte dos maracatus Estrela Brilhante e Piaba de Ouro e das bandas Comadre Fulozinha e Eddie. Com o trabalho solo, lançou os discos Eu menti pra você, Longe de onde, Selvática e Desmanche. Em 2022, lançou seu primeiro romance, "Mainá". É colunista da Continente Online, onde publica suas crônicas mensalmente.

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