Reportagem

Festejar é viver

A festa pode ser o espaço-tempo da tradição, diversão, comunicação, fruição, mas também da criação

TEXTO Débora Nascimento

01 de Fevereiro de 2023

Bloco Enquanto isso na Sala de Justiça, em Olinda

Bloco Enquanto isso na Sala de Justiça, em Olinda

Foto Marcelo Soares

[ed. 266 | fevereiro de 2023]

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“And what costume shall the poor girl wear
To all tomorrow’s parties"
(Lou Reed)

O que espanta a miséria é festa”
(Beto sem Braço)

Em fevereiro de 2020, os brasileiros brincaram mais um Carnaval como tradicionalmente fazem: como se não houvesse amanhã e dando folga a todas as suas preocupações e a seus problemas – um desses, àquela altura, não nos era conhecido, mas se apresentaria logo em seguida. Poucos dias depois, a mesma população que havia festejado corpo a corpo a folia de Momo, foi alertada, pelas autoridades, que agora precisava fazer exatamente o oposto daqueles dias efusivos, deveria isolar-se o máximo possível, inclusive de amigos e familiares. Chegava, portanto, a nós a pandemia do novo coronavírus. E, aos poucos, descobrimos que esse afastamento atingiria em cheio não somente nosso cotidiano, mas também algo intrínseco à identidade brasileira, a sua alma festiva.

Com os meses passando a conta-gotas, a população sem vacina e a pandemia se tornando mais perigosa, foram encontradas, na área da cultura, soluções como a realização de shows, encontros e festas de forma online, as famigeradas lives, em que a única interação possível era através das telas do computador ou do celular. Depois da supressão de eventos esportivos e artísticos no mundo inteiro, não demorou muito a chegarem as notícias mais impensáveis para a cultura nacional: o cancelamento das festas juninas e da maior festa popular do país. Desde que o Carnaval começou a ser realizado no Brasil, entre os séculos XVI e XVII, nunca havia deixado de ocorrer no período que antecede a Quaresma, seja em fevereiro ou março.

As duas tentativas oficiais anteriores de, pelo menos, adiar a festa fracassaram: em 1892 e 1912. Na primeira, a justificativa era também sanitária. Por conta de diversas doenças que assolavam o país, como a febre-amarela, o evento foi transferido para junho, para evitar aglomerações e contaminações sob o propício calor do verão. Mas a população acabou festejando em dose dupla. Na segunda investida governamental, o motivo era a morte do Barão do Rio Branco, ministro do Exterior e figura relevante na política brasileira. Houve a transferência para abril. A população, no entanto, carnavalizou duas vezes. Irreverente, o folião criou até uma marchinha que comemorava a brecha de oportunidade: “O barão morreu/ Teremos dois carnavá/ Ai que bom, ai que gostoso/ Se morresse o marechá”, em referência ao marechal Hermes da Fonseca.

E nem nas duas guerras mundiais, mesmo sob pressão do governo, o brasileiro abdicou de brincar o seu carnaval. Já a festa de 1919, após a Primeira Guerra e o final da pandemia da gripe espanhola que matou 35 mil pessoas no Brasil, foi considerada como a maior comemoração de rua já vista na primeira metade do século XX no país. Em crônica de 1967, Nelson Rodrigues descreveu esse evento que marcou sua infância e demarcou uma transformação cultural: “O Rio machadiano estava entre os finados. Uma outra cidade ia nascer. Logo depois explodiu o Carnaval. A pandemia passou e, no Brasil, o Carnaval de 1919 representou um desafogo e a euforia geral tomou conta da população. E foi um desabamento de usos, costumes, valores, pudores”.

No final da década de 1920, o Conselho Municipal do Rio de Janeiro sugeriu a extinção da festa. A resposta do caricaturista J.Carlos na revista O Malho foi o termômetro da reação popular: “Acabar com o Carnaval? Cuidado, conselheiros. Por muito menos fizeram a Revolução Francesa”.

Esse caráter festivo dos brasileiros foi percebido já em 1584 por Fernão Cardim, secretário da missão portuguesa, em visita ao Brasil. Após ter passado por Pernambuco, que ainda não era a terra do frevo e do maracatu, nem do modestamente maior bloco de Carnaval do planeta (o Galo da Madrugada), anotou: “São muito dados a festas”. Ele fez a observação após ter testemunhado uma festança promovida por um morador de Olinda, ao casar a filha. E ainda nem havia Carnaval como o conhecemos hoje.

“Festas de caráter coletivo – tal como hoje a do Carnaval, por exemplo – eram inconcebíveis ao tempo da chegada ao Brasil de portugueses oriundos de uma Europa mal saída do controle teocrático da sociedade, através do conceito da responsabilidade pessoal ante o pecado, que impunha aos cristãos vigilância permanente contra os impulsos pagão-dionisíacos herdados do mundo antigo. Assim, o que durante mais de 200 anos se registra como aproveitamento coletivo do lazer na colônia americana de Portugal não seriam propriamente festas dedicadas à fruição do impulso individual para o lúdico, mas momentos de sociabilidade festiva, propiciados ora por efemérides ligadas ao poder do Estado, ora pelo calendário religioso estabelecido pelo poder espiritual da Igreja”, registra José Ramos Tinhorão, em As festas no Brasil colonial (Editora 34, 2000).


Na Av. Rio Branco, Rio de Janeiro, desfile das grandes sociedades carnavalescas. Foto: Reprodução/Domínio público

Três séculos depois da visita de Fernão Cardim, outro visitante também observaria a índole farrista do “novo” país. Em 1803, o inglês Thomas Lindley, para o livro Narrativa de uma viagem ao Brasil, redigiu após passagem por Salvador: “As principais diversões dos moradores da cidade são as festas dos vários santos, os votos oriundos das freiras, os suntuosos funerais, a Semana Santa etc., celebrada com grandes cerimônias, concertos e frequentes procissões. É difícil um dia em que não ocorra um desses festejos”. Com mais de 20 dias santos, dias dos padroeiros de cada cidade, finais de semana, além dos 18 feriados oficiais e civis, em que só trabalhavam os escravizados, somavam-se mais de um terço dos 365 dias.

O calendário demarcado pelas festas sagradas representava uma forma de a Igreja ocupar um território simbólico na História e, na prática, sedimentar o seu poder. Para a socióloga e pedagoga Alice Itani, em Festas e calendário (Unesp, 2003), “A história do calendário moderno é também a história da dominação da civilização europeia, a partir da Idade Média, impulsionada, sobretudo, pela Igreja Católica, que passou a organizar os ritos festivos”. Administrando a passagem do tempo, controlaria a cultura a seu modo. Inicialmente, o calendário único foi adotado pelos países católicos, mas, a partir do século XVIII, outros foram aderindo, Grã-Bretanha (1752), Japão (1873), Rússia (1923) e China (1949).

A participação da Igreja Católica na história das festas não pode, portanto, ser descartada. A procissão era a forma de se ocupar as ruas coletivamente antes de o Carnaval ganhar a feição mais propagada. “A procissão é um cortejo de corpos individuais, marchando lado a lado, corpo a corpo, criando um corpo coletivo. Corpos em desfile, constituindo um corpo processional. Um corpo constituído a partir de vários corpos, que se ligam por sentimentos e por emoções comuns. Um corpo emocional, comunidade emocional em termos weberianos, dir-se-ia. Uma corporação”, descreve a historiadora e antropóloga Léa Freitas Perez, no artigo Festa, religião e cidade: experiência e expertise (2019). “Em suma, estamos a lidar com corpos que se fazem e refazem, a cada procissão, a cada ano e na duração. Corpos místicos (logo, sagrados), a serviço de um mito religioso (a igreja) e político (a cidade, a nação), que se produzem e re-produzem coletiva e publicamente (logo, sociais) em reunião extraordinária e especialmente consagrada (logo, em festa), em desfile público, no coração da cidade.” A descrição da professora poderia ser aplicada parcialmente também a desfiles de blocos carnavalescos, grupos de maracatus e escolas de samba.

Em Festa de negro em devoção de branco: do carnaval na procissão ao teatro no Círio (Editora Unesp, 2012), o pesquisador José Ramos Tinhorão narra a participação dos negros nas festas católicas em Portugal, uma análise rara sobre essa presença invisibilizada pela História. Essas manifestações tinham inicialmente apenas padres, depois houve abertura para a participação da sociedade, passando também a utilizar recursos de teatralização. Durante séculos, a procissão de Corpus Christi no país ibérico foi a mais diversificada e mais animada festa religiosa popular, celebrada durante dias com músicas e danças.

Segundo tinhorão, o clima festivo já existia nas procissões, mas, com a inserção dos participantes negros, houve um aumento da vibração, resultando em uma feição assemelhada aos desfiles carnavalescos que fariam fama internacional na Avenida Marquês de Sapucaí. “Para comportar a diversidade dos temas tirados da Bíblia e das lendas cristãs a serem encenados sob a forma de autos, evoluções coreográficas, cantos, música e exibição de alegorias, a longa forma processional do cortejo apresentava-se internamente dividida em blocos ou espaços abertos à apresentação dos diferentes ofícios. Uma solução de ordem prática que vinha antecipar por sinal, em quase seis séculos, a criação, nas escolas de samba brasileiras, das chamadas alas, destinadas exatamente a abrigar, durante as procissões carnavalescas, os vários blocos de foliões encarregados de ilustrar o enredo ou tema geral do desfile”, resgata.

Inspirado nas festas populares da Antiguidade, da cultura greco-romana, com comidas, bebidas e danças, o Carnaval surgiu como uma forma de compensação profana. Em A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais, o filósofo russo Mikhail Bakhtin defende que o Carnaval, nascido na Europa medieval (do latim medieval carnelevarium, “afastar-se da carne”), foi uma forma de a Igreja controlar essas festas irrefreáveis, que costumavam inverter os papéis sociais em suas fantasias (senhores que viravam escravos e vice-versa; demônios que se tornavam deuses e vice-versa). A Igreja concedeu esse momento (de liberação do comportamento e da carne) para que as pessoas cometessem seus excessos antes da Quaresma, que conta os 40 dias antes da Sexta-feira da Paixão, período em que, pelo dogma católico, é proibido comer carne.


No final dos 1920, reação do cartunista J. Carlos, na revista
O Malho, contra a ideia de se extinguir o Canaval. Foto: Reprodução

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Por ser tão importante na vida cultural do Brasil, o Carnaval, uma sagrada tradição profana por aqui, demarca simbolicamente o início de cada ano para a população brasileira. “O ano só começa depois do Carnaval” é uma frase recorrente há décadas. Por isso, o cancelamento da festa em 2022 e a transferência para outra data, no caso de algumas cidades, provocou grande debate na sociedade, principalmente entre os realizadores e pesquisadores da festa. “A elite brasileira sempre teve uma dificuldade de entender o que era o Carnaval, sempre teve uma restrição ao fato de o povo estar na rua. O povo estar na rua sempre foi um incômodo para a elite brasileira. E o Carnaval, nesse sentido, é o incômodo anual”, apontou, em entrevista ao programa Roda Viva, em fevereiro de 2022, o carnavalesco Leandro Vieira, que comandou dois desfiles campeões da Mangueira.

Vieira criticou a hipocrisia do cancelamento da festa de rua naquele ano, porque, com a maior parte da população vacinada, muitas festas particulares e eventos privados de grande porte estavam acontecendo livremente no país. Para ele, o significado disso é maior: “O povo que está na rua fazendo o Carnaval é um povo que flerta com os benefícios da democracia, como protagonista da diversidade, um povo que ocupa muitas vezes territórios que são negados. O povo saber-se dono da rua, ter a compreensão que aquele espaço é dele é perigoso. E contra essa ocupação terrivelmente perigosa criaram-se inúmeros argumentos contrários para que a festa não fosse realizada. Não estou falando de argumentos contrários à festa de agora. Estou falando de argumentos históricos, como os que associam o Carnaval, como um todo, a uma festa demoníaca, a uma festa do sexo, da devassidão, que hipersexualiza o corpo, sobretudo o feminino, argumentos econômicos”.

“Ao longo da história do Brasil, o Carnaval vai ser uma disputa”, destacou Luiz Antonio Simas, em entrevista à Continente, publicada na edição de agosto de 2022. “Está inserido num contexto em que você está disputando o próprio direito à cidade. Durante muito tempo, houve disputa entre modelos diferentes de carnaval. Você tinha, por exemplo, uma elite brasileira que emulava o carnaval de Nice, na França, o carnaval de Veneza, os bailes de máscara, os carnavais dos salões, aquele negócio todo. Ao mesmo tempo, você tem um carnaval vigoroso que é o de rua. De larguíssima tradição, os entrudos, os blocos, os cordões, as associações carnavalescas, tudo o que você possa imaginar. E aí você vai ver, fundamentalmente, que o Carnaval não é uma festa de consensos, mas de disputas. Quando você está, por exemplo, tomando a rua no Carnaval, você está exercendo, em certo sentido, o direito de pertencer à cidade”. Em outras palavras, é o que Tinhorão afirma: “A cultura constitui, em última análise, uma cultura de classes”.

Gravura de Rugendas, de 1835, retrata a Festa de Santa Rosália, patrona dos negros.
Foto: Acervo bibliográfico do Arquivo Nacional

Luiz Antonio Simas escreve em O corpo encantado das ruas (Civilização Brasileira, 2019): “No início do século XX, a República criminalizava a cultura popular. A onda dos donos do poder era modernizar o Rio de Janeiro em padrões europeus, adotando Paris, a capital francesa, como modelo de conduta e urbanidade. Nesse clima, as manifestações populares dos pretos e dos pobres em geral eram reprimidas na base do cacete. A cidade, fundada um dia para expulsar franceses, resolveu ser francesa para esconder que era profundamente africana e lusitana. Nas brechas das festas, o carioca, encurralado pela repressão institucional, se virou e encontrou na Penha uma maneira de inventar a cidade negada”. Para o historiador, também por meio das festas, a cultura diaspórica vem reconstruindo aquilo que lhe foi aniquilado.

“O Carnaval e as festas religiosas, formas de espetáculo por excelência, dizem respeito a uma maneira particular de viver o fato humano em sociedade e de perceber o mundo. No Brasil, o Carnaval é mais que uma festa, corresponde a um modo de ser e de viver, a um princípio orientador que caracteriza o mais profundo deste país. Entre nós, tudo começa e tudo termina pelo Carnaval, o que vale dizer que nada começa verdadeiramente, tanto quanto nada tem fim. Nós vivemos sempre em trânsito, em movimento, na abundância carnavalesca. Nesse modo de viver, a realidade não é negada, mas transfigurada e exacerbada por um realismo irônico que, afirmando-a, simultaneamente, dela ri e se distancia de sua dureza factual”, reflete a historiadora Léa Freitas Perez.

Para a professora aposentada da UFMG, através da festa, da religião e da cidade, podemos apreender e compreender nossas sociedades. Esses três elementos são tomados como tropos (figuras de linguagem) a partir dos quais se pode pensar os fundamentos do vínculo social e a constituição da imaginação coletiva sob suas formas afetiva (festa), cultural (religião) e associativa (cidade), no eixo da longa duração.

Através da festa, a população reafirma o seu direito de existir, como descreve Luiz Antonio Simas em O corpo encantado das ruas. A festa, no carente Bairro de Oswaldo Cruz, zona norte do Rio de Janeiro, funcionava como mecanismo de união e resistência dos moradores: “Nesse bairro sem maiores atrativos, quase sem opções de lazer e um verdadeiro contraponto de um centro da cidade que se embelezava em padrões europeus, a comunidade de Oswaldo Cruz se integrava pela festa e pela macumba. Construindo sociabilidades em torno das giras de umbanda, dos batuques dos sambas e das rodas de dança do jongo e do caxambu, oriundas dos negros bantos do Vale do Paraíba, os moradores erigiram laços de pertencimento e identidade”.

Para Léa Freitas, “nossas festas, sejam laicas ou religiosas, oficiais ou populares – em sua multiplicidade de manifestações, recortando o país de norte a sul, de leste a oeste –, mostram uma maneira singular de viver o fato coletivo, de perceber o mundo e de com ele se relacionar. São vias reflexivas privilegiadas para se penetrar no coração da sociedade brasileira”. Segundo ela, é preciso também “desubstantivar, desfuncionalizar, isto é, desreificar a ideia de festa, tratando-a não mais como fato eminentemente social (coisa), dotado de um conteúdo específico, relativo a um determinado tipo de sociedade e ou grupo e a um determinado tempo. E tratar a festa como questão, isto é, como perspectiva, como caso de estudo”.

Desta forma, a festa deixa de ser um objeto a ser descrito para tornar-se um operador de ligações “que atua por meio da destruição concertada (termo do antropólogo Jean Duvignaud) do real socializado (termo do filósofo Dominique Grisoni), abrindo para a experimentação humana o campo do possível, isto é, do imaginário: campo das percepções e das imagens da vida coletiva, que não se reduzem à própria vida coletiva, pois que se referem e remetem à instância do desejo, do imprevisível, do indecidível, do indeterminado, da interioridade, da embriaguez mística, do excesso, do gozo”.

A festa está nas culturas, nas religiões, nas artes, nos esportes, na economia, na história, na política, no espírito do lema “picanha e cerveja” do então candidato Lula. Está na vida, demarcando a passagem do tempo de cada um. Todos temos festas marcantes na memória.

O ato de festejar pode estar vinculado a uma celebração particular ou a figuras e fatos históricos, colheitas, santos, datas cívicas. No Brasil, a relevância de festas como o Carnaval, a Páscoa, as Festas Juninas, o Natal e o Réveillon levaram o poder público a organizá-las em eventos de grande porte, o que pode acarretar naquilo que Simas diferencia entre “cultura do evento” e “evento da cultura”.

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A festa pode ser o espaço-tempo não somente da tradição, diversão, comunicação, fruição, mas também da criação artística. Foi assim no início do século XX, no Rio de Janeiro. “As festas de Ciata e das outras tias baianas não conheciam hora para acabar, estendendo-se por dias a fio, com a característica fartura de comes e bebes, ao som da ininterrupta batucada”, descreve o jornalista e pesquisador Lira Neto, em Uma história do samba: as origens (Cia das Letras, 2017).

“A festa, portanto, era também uma fresta, espaço comunitário que subvertia a sujeição dos corpos à lógica produtivista do mercado e à normalização dos comportamentos exigidos pelos novos tempos, ditos civilizados. Festeiros e festeiras tradicionais compareciam em massa à casa para pedir a bênção, no mais das vezes levando a filharada no colo. Daí ser natural a presença recorrente de uma meninada irrequieta e barulhenta, criada de pés descalços e familiarizada desde o berço ao som dos atabaques. Caso, por exemplo, dos pequenos João, José e Ernesto”, escreve.

O trio a que Lira se refere era formado por João da Baiana, Sinhô e Donga, que, em 1916, já adultos, continuavam a frequentar as festas na casa de Tia Ciata. Nesses encontros festivos, participaram da composição coletiva de Pelo telefone, a primeira música registrada como samba. Cinco décadas depois, no apartamento de Nara Leão aconteceriam festas que levaram à formação do movimento da bossa nova. E, em novembro de 1989, uma festa realizada no Recife Antigo, mais precisamente no Adília’s Place (futuro Francis Drinks), se tornou o marco zero do que seria o Manguebeat.

“Aquela foi a primeira vez que a gente se juntou e trabalhou com esse senso coletivo e também com uma identidade estética muito forte e muito clara, o conceito de diversidade, que seria a grande marca do Manguebeat, de não se prender a um gênero musical”, pontua Hélder Aragão, o DJ Dolores, designer, compositor e diretor. Por “a gente”, entenda-se o próprio Hélder, Chico Science, HD Mabuse, Renato L, Fred Zeroquatro… A primeira festa deu tão certo, que foram surgindo outras. E em um ano, DJ Dolores já não usava mais fita-cassete, mixava com CD player e pagava suas contas realizando esses eventos.


Chico Science (no canto, à esq.), em festa no Adília’s Place,
cabaré transformado em pista de dança pelo
Manguebeat.
Foto: Cortesia, acervo DJ Dolores

O compositor lembra que, na época, a discotecagem dessa turma ainda era muito simples. “Quando a gente começou a fazer festa, ninguém era DJ virtuoso, ninguém sabia mixar direito. A gente tocava fita-cassete, porque também não tinha equipamento pra tocar direito, não tinha um bom toca-discos, ninguém tinha nada, era uma precariedade. A gente se juntava e gravava várias fitas para cada noite. Então cada fita tinha uma vibe determinada, e era assim que funcionava, porque era a forma mais eficaz e barata para fazer uma festa naqueles dias”, lembra.

“As festas tinham essa natureza de provocar uma diversidade muito grande, de tocar coisas esquisitas que as pessoas não conheciam. A gente não sabia que aquilo estava deflagrando um monte de outras coisas que iam acontecer posteriormente. A gente estava tocando, sem saber, em um ponto sensível da cidade. Essas festas foram o primeiro termômetro para medir esse poder aglutinador que a música teria no Recife naquele momento”, discorre. A partir desses eventos, muitas pessoas se conheceram e formaram bandas. “Esse caráter de se comunicar com a cidade, com as pessoas, de descobrir uma ansiedade, um desejo que estava rolando foi, pra mim, como DJ e produtor de festas, uma experiência sensacional”, conta o artista, que havia chegado de Sergipe pouco antes, em 1986.

DJ Dolores considera que o sucesso dessas festas deve-se ao fato de não terem o som comercial e típico das pistas de dança da época. Diversificado, o repertório não tinha um gênero musical específico. “O que tinha era o DJ em seu melhor sentido, de apresentar músicas ao público, que estava disposto a conhecer músicas novas. Eu acho que a pista de dança, especialmente a que a gente fazia, tinha uma coisa muito ritualística. Você não ia para flertar, pegar a galera, se exibir. Era realmente uma coisa muito forte em torno da música, de amor muito forte.” Era a pura “diversão levada a sério”, para citar a famosa frase de Chico Science.

“É engraçado que, comparado ao que se faz hoje, é muito diferente. A principal diferença é que não tinha internet. Então, o DJ era supervalorizado, porque ele tinha a música, o objeto físico, seja um CD, um vinil, uma fita-cassete. Se você quisesse ouvir determinada música, tinha que ir pra festa daquele DJ ou daquela turma. Hoje, com streaming, Spotify, Deezer, essas coisas, o DJ já não domina essa exclusividade. E daí as festas ganharam outro caráter, talvez mais comercial, também porque há uma explosão no Brasil de muita gente fazendo música adequada à pista”, analisa Dolores.

Para o músico, as festas hoje no país têm mais fortemente a presença de uma identidade da música brasileira contemporânea, algo que não havia na época em que começou a discotecar. “A gente achava que as bandas de rock eram mais ou menos uma cópia, uma tradução das coisas que a gente ouvia em inglês das bandas estrangeiras. Então, tocava-se muito pouco de música brasileira. A gente não tinha um material que representasse aquele ideal estético. Talvez, por isso, Chico tenha começado a fazer música. A gente conversava muito sobre música e tinha na turma um conceito muito claro de que esse tipo de música não existia”, observa o músico.

Essas festas ajudaram Dolores a desenvolver sua sensibilidade como compositor, como o músico que ele se tornaria depois. Para ele, discotecar era como uma lição, um aprendizado, no qual ele começava a entender como funcionava a dinâmica entre a música e o público. “Isso daí é uma coisa bem importante, você vai conduzindo através da sua mixagem, do seu setlist quando está com a banda. Então, você claramente consegue direcionar o público para alguns lugares. E isso eu aprendi tocando e frequentando as festas dessa época, do comecinho dos anos 1990”, revela o artista. Em 1998, ele criou a Orchestra Santa Massa, com a qual fez turnês internacionais, e, em 2019, homenageou aquelas festas na música Adilia´s Place.

Tendo produzido cerca de mil festas nos últimos 10 anos, o produtor e DJ Evandro Sena, administrador do Iraq Club, na Boa Vista, centro do Recife, também acredita na importância desse tipo de evento. “Eu me sinto extremamente realizado quando vejo as pessoas dançando na pista. Eu não vou a uma festa pra dançar. Vou pra fazer os outros dançarem. Pra mim, sempre foi isso. A festa tem dois grandes significados: de um lado, eu posso chamar de estado de espírito, como quando a pessoa se apaixona e o coração fica em festa. Em certas conquistas na vida da gente, o nosso sentimento é de festa, não necessariamente isso pode se efetivar com um monte de gente reunida. E, por outro lado, tem a festa que é o lado da comunhão, que é o fazer coletivo.”

Para ele, esse “estado de espírito” é determinante. “Às vezes a pessoa vai para o Iraq porque já está com um sentimento festivo dentro dela, um sentimento de alegria e ela quer extravasar. Aí diz assim, ‘eu vou pra aquele lugar que eu me identifico e onde posso trocar essa energia que eu estou’. E aqui é onde entra aquela frase ‘quem faz o ambiente são as pessoas’. Também existem pessoas que chegam ao ambiente e, por mais que esteja todo mundo dançando, alegre e feliz, a pessoa diz ‘ai, que ambiente pesado’. Ou seja, essa pessoa não está em festa, está deslocada daquele ambiente”, observa Evandro.

Uma das festas organizadas por ele é o Natal do Iraque, que acabou por dar nome ao espaço situado na Rua do Sossego. Evandro havia sido convidado pelos antigos moradores da casa para produzir uma festa de Natal não tradicional e não parou mais. Já está na 17ª edição. O evento é realizado em uma data muito festiva no mundo inteiro, ligada ao ambiente familiar e, por isso mesmo, pode também despertar muita tristeza em quem perdeu entes queridos ou não tem vínculos familiares estabilizados.

“O Natal do Iraque tem mais ou menos esse significado de subterfúgio pra mim porque, antes dessa festa, como eu tinha uma família muito complicadinha, eu não queria saber de festas de fim de ano. Eu não queria estar participando daquele momento”, comenta.


O DJ Evandro Sena produz o Natal do Iraque. Imagem: Reprodução do flyer

Na sua adolescência, o Natal e o Réveillon provocavam nele ansiedade e tristeza. “O Natal sempre esteve muito associado a dar e ganhar presente, e minha família é muito pobre e tal. Tudo isso mexia muito comigo. Para mim, significava uma alegria que eu não tinha o direito de tê-la. E aí, quando fui crescendo, comecei a fugir desse tipo de data comemorativa. Então, uma vez, com 18, 19 anos, me chamaram pra ir a uma festa em Olinda, muito louca. E deu uma ressignificada no Natal pra mim”, lembra o produtor, que, por sua vez, como anfitrião do Natal do Iraque, também escuta relatos de algumas pessoas que vão à festa para fugir dessa data em família (de sangue). “A família que a gente escolhe, no final das contas, acaba sendo a família da farra”, afirma, lembrando amigos e casais que se conheceram nas festas do Iraq.

Por conta desse valor emocional e cultural, nas vezes em que o espaço fica sob ameaça de encerrar suas atividades, Evandro escuta relatos de pessoas sobre a importância do lugar para elas, quase como uma segunda casa. “Isso mexe muito comigo também, porque, ao mesmo tempo, não é importante só para elas, é para mim também. Construí muitos laços afetivos no lugar e aí eu vejo a importância tanto das festas como do espaço em si”, avalia.

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Se o dia 24 de dezembro pode ser considerado como uma data sensível para muitas pessoas, o 25 certamente é dia de festa na família Salustiano, assim como o 6 de janeiro, Dia de Reis. Nessas duas datas, há encontros de cavalo-marinho promovidos pelos filhos, netos e bisnetos do Mestre Salustiano, falecido em 2008. “Pra gente, é muito importante manter esse legado vivo, porque foi criado pelo nosso pai e também por nossas ancestralidades de outros mestres de cavalo-marinho. E, depois de dois anos parado, devido à pandemia, estava todo mundo naquela emoção pra querer brincar neste ano”, conta o cantor, compositor e produtor Maciel Salu, sobre a retomada dos festejos no final de 2022 e início deste ano.

Desde criança, Maciel via e acompanhava o pai fazendo essas festas, que, além de unir a família e a comunidade, mantinham vivas expressões da cultura popular. “Na realidade, quando meu pai veio a fazer o primeiro encontro de cavalo-marinho, há 27 anos, foi na cidade de Olinda, ali no Carmo, no coreto. Mas ele já brincava o cavalo-marinho no interior, na Festa de Reis, na noite de Natal, com outros mestres também.”

Em 1968, Mestre Salu, saiu de Aliança para morar em Olinda, fundou o Boi Matuto de Olinda, o Piaba de Ouro, a Ciranda Nordestina, o Mamulengo Alegre de Olinda. “Ele foi dando continuidade, trabalhando em casa de família, vendendo picolé. Mas já veio de Aliança pra cá com a sua bagagem cultural, que ele aprendeu desde criança”, diz Maciel.

O espírito festivo do Mestre Salu vai sendo transmitido para as novas gerações de sua família, como também para amigos e vizinhos. “É importante, pois a gente está passando a história da nossa cultura, do nosso Estado, do nosso Brasil, mantendo esse legado vivo. E uma das coisas que a gente sempre está em busca é do respeito, de respeitar a cultura originária, que veio da matriz africana. E lutar por ela, não deixar a mídia de massa, a cultura de massa, acabarem com a nossa cultura, para que amanhã não se torne uma lenda cultural. Há outras pessoas também com essa preocupação, seja no maracatu, no cavalo-marinho, no fandango, no reisado, no frevo, no caboclinho, em todas manifestações culturais. Com certeza é a família que vai passando a tradição, vai passando para outra geração”, defende o artista.

Espaço das festas da família Salustiano, o centro cultural Casa da Rabeca, em Olinda, tem agenda cheia durante todo o ano. São encontros de cavalo-marinho, ensaios do maracatu Piaba de Ouro, encontro de maracatus, forró de rabeca, de sanfona e agora a ciranda, lançada por Maciel no projeto Azougue, que também circula pelo interior do Estado. “A gente tem que ter apoio, incentivo, da gestão pública, para que a gente possa manter a brincadeira viva. Hoje, a cultura popular é inspiração para muitas coisas no país, seja na dança, no teatro, nas artes plásticas, no artesanato... Muitas pessoas se inspiram na cultura popular. Mas, quando você vai para essas prefeituras do interior, elas quase não valorizam a cultura popular. Agora, estão botando mais na programação essas bandas sertanejas”, critica.

Maciel entende essa desvalorização como fruto do preconceito: “Por ser uma cultura de negro, de pobres. Quem é que faz a cultura? Quem faz a cultura são pessoas simples, pessoas que trabalham no roçado, no corte de cana, mulheres que são empregadas domésticas, pessoas que trabalham na construção civil, que trabalham no pesado, vendedores ambulantes, pescadores, pessoas da periferia, da favela. Então, sempre existiu essa questão do preconceito com a nossa cultura. Para algumas gestões públicas, valorizar a cultura é botar aquela estrutura bem grande numa cidade, contratar bandas grandes, enquanto a cultura popular é tratada de todo jeito. Não pode ser assim”.


Maciel Salu tem sido um dos guardiões de tradições culturais como o cavalo-marinho e o reisado. Foto: Hugo Muniz/Divulgação

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A “cultura do evento” vem promovendo o que o pesquisador Climério de Oliveira chama de espetacularização das festas populares, desvirtuando seu sentido originário. “A partir dos anos 1970 e principalmente dos anos 1980, a festa começa a virar espetáculo. E não só as festas juninas. Muitas coisas começam a ser espetacularizadas, no que se refere às tradições culturais populares”, analisa o músico, escritor e etnomusicologista. “Então, essa espetacularização da festa e os interesses sobre a festa cresceram muito. A festa passou a agregar muita gente e a população brasileira aumentou, mas não é só o aumento da população, mas sim do tipo de população que ficou mais massiva. E a cultura pop foi trazida para o Brasil e adaptada. Pode-se dizer também que as festas juninas passaram a incorporar essa cultura pop.”

A espetacularização também pode afetar o sentido comunitário da festa, formato mais propício ao desenvolvimento da criatividade, da participação coletiva e que pode estimular o despertar de novos talentos. Na espetacularização, o público é apenas um espectador distante, sem participação ativa. Na festa comunitária, todos participam, há espaço para transformação daquela criatividade cultivada dentro do coletivo da comunidade e todos desenvolvem um papel no evento. “A cultura participativa, a música participativa, comunitária, tem outro papel. Os músicos são muito mais próximos. As pessoas definem culturalmente, baseadas na tradição, por exemplo, o repertório. Essa participação popular na festa tradicional do São João, que é comunitária e participativa, essa interação é maior entre músicos e público. Então há uma hierarquização menor na divisão entre público e artista”, compara Climério.

No grande evento, que começou simples a partir da força das tradições populares, o marketing tornou-se a atração principal. “Então, quando um político ou gestor promove um grande São João na sua cidade, ele e aqueles que fazem o comércio daquela cidade se beneficiam comercialmente. Não tem mais o sentido da festa, como ela era há algumas décadas atrás. O sentido passou a ser aglomerar muita gente nas praças e, principalmente, transformar essa aglomeração em vitrine para suas marcas. Sejam elas marcas de produtos industrializados, de serviço ou de políticos. Então, tudo isso vem mudando o sentido da festa e vem trazendo pra ela outra característica”, avalia Climério, que, em 2020, integrou o livro A falta que a festa faz, que reúne textos de diversos autores sobre a ausência desses eventos durante a pandemia.

“A ideia de que os diferentes grupos sociais, ao festejar, estão construindo e/ou vivenciando suas utopias é bastante difundida. Mas podemos acrescentar: observadores de tendências e procedências as mais diversas também encontram na festa a tela perfeita para a projeção de suas ideias sobre a felicidade humana. De início, aparece a condenação da ‘vida séria’, da organização ‘repressiva’ do mundo cotidiano, uma sociedade tediosa, mesquinha, triste etc. e tal. A festa entra em cena como um outro ‘mundo’, onde as pessoas podem experimentar uma alegria impossível nas atividades ‘comuns’. É a natureza dessas festas que nos vai mostrar o que é realmente condenável na vida séria”, escreveu o antropólogo Hermano Vianna em O mundo funk carioca (Zahar), sua tese de mestrado transformada em livro em 1989 – quando o gênero despontava no Brasil.

Hoje, o funk está dividido entre o estrelato de artistas como Anitta e Ludmilla e a perseguição policial, com proibição de bailes e assassinatos de MCs, o que Mr. Catra considerou um genocídio cultural, na série Funk.doc: Popular & proibido (HBO, 2022).

“De um lado, encontramos aqueles autores que, explicitamente ou não, pensam que os indivíduos só podem sentir-se felizes quando deixam de ser indivíduos e se entregam ao todo-poderoso, mas generoso, coletivo. De outro lado, nos deparamos com uma minoria de individualistas convictos que enxergam no divertimento coletivo benefícios contrários aos anteriores: a vida séria, com suas incontáveis regras e hierarquias, não deixa que as pessoas expressem sua individualidade; é na festa, com o abrandamento, o questionamento e até a inversão dessas regras, que o indivíduo descobre a ocasião para ser senhor de sua própria vontade, ‘dono de seu nariz’”, analisa Vianna.

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Desde o mito de Dionísio, deus do vinho, das festas, da alegria, do teatro, às farras extravagantes de Nero, a festa está presente na história da humanidade e estimula a imaginação e a arte. Romeu apaixonou-se perdidamente por Julieta ao entrar de penetra na festa mais importante da literatura mundial. Foi em um baile que Cinderela conheceu seu príncipe encantado e, desde então, vem levando gerações e mais gerações a crer que uma festa pode abrir mil possibilidades de se encontrar o amor (ou sexo casual) numa noite. Esse conto de fadas também fez com que Lou Reed compusesse All tomorrow’s parties, do primeiro disco do Velvet Underground. A letra pergunta qual roupa a garota pobre vai usar para todas as festa do amanhã, quando vai fatalmente acabar chorando atrás da porta.

Na história do cinema, a festa é momento de destaque em diversas tramas e está presente em filmes como Bonequinha de luxo, Cidade de Deus, Tropa de elite, La dolce vita, O anjo exterminador, Superbad, A dança dos vampiros e A garota de rosa-shocking, clássico da Sessão da Tarde, no qual uma garota pobre, sem dinheiro, remodela um vestido para usar no baile de formatura para encarar os alunos ricos do colégio. Em Aquarius, de Kleber Mendonça Filho, uma festa marca a passagem do tempo da protagonista vivida por Sonia Braga, ao som de Toda menina baiana, talvez a música mais dançante da MPB, gênero repleto de músicas festivas.

O longa-metragem mais marcante com essa temática, muitos vão concordar, é Embalos de sábado à noite, que alimentou no mundo a mística em torno da noite de sábado. O contexto do filme é a efervescente e hedonista cena disco norte-americana, que dominava a pista de várias boates, como o Studio 54, em uma época de intensa libertação sexual para mulheres, negros, latinos e a comunidade LGBT. Além do comportamento e da moda, o sucesso comercial e estético da Era disco estimulou o lançamento de diversas bandas, artistas e compositores. A indústria fonográfica investiu tão pesado no filão, que surgiu uma campanha contrária, “disco sucks”, que poderia ser uma reação racista, xenofóbica e/ou homofóbica de alguns héteros brancos fãs de rock.


Embalos de sábado à noite, um filme clássico sobre a Era Disco.
Foto: Reprodução

No final dos anos 1970 e início dos anos 1980, parecia que não havia nada mais importante que isso na música, fazer as pessoas dançarem (várias músicas da época tinham a dança como tema principal), e talvez quem pensasse assim estivesse completamente certo. Muitos artistas surfaram na onda, como Donna Summer, Gloria Gaynor, Earth, Wind & Fire, KC and the Sunshine Band, Chic e Bee Gees, grupo australiano pop que, investindo no novo gênero musical, lançou aquela que foi, até a chegada de O guarda-costas (1992), a trilha sonora mais vendida da história, Saturday night fever, com 40 milhões de cópias.

A onda disco invadiu o mundo e no Brasil não foi diferente. Ao jornalista Nelson Motta foi sugerido o uso temporário de um espaço vago no Shopping da Gávea para montar uma casa noturna. Com as despesas pagas pelos empresários, ele viajou a Nova York para entender essa cultura. Voltou ao Rio com 100 discos e uma bola de espelho. E batizou o lugar de Frenetic Dancing Days Discotheque.

As garçonetes eram atrizes desempregadas, convidadas por ele para animar o ambiente. Com humor e simpatia, elas agradaram tanto, que surgiu a ideia de criar um girl group, As frenéticas, cujo maior hit, composto por Nelsinho, remetia ao nome da boate, sendo a música disco mais marcante do Brasil. Com quatro meses, a casa teve que fechar. E o produtor vendeu o direito do nome para a novela de Gilberto Braga, inspirada na boate, tendo Sônia Braga como estrela.

No final dos anos 1970, o brilho do neon, do glitter, da meia colorida lurex, das lantejoulas e da bola de pista talvez fosse o prenúncio de que os dias sombrios no Brasil iam finalmente começar a ficar para trás. Tudo isso se encaixa tão perfeitamente, que parece até roteiro de filme. Mas a história acabou virando musical em 2018 – época em que o número de boates para dançar declinava em diversas capitais, devido à diminuição do público interessado em ser o rei da pista, um termômetro a indicar que a febre do sábado à noite já não era tão alta e que os jovens estariam mais interessados em sunset parties, baladas sertanejas, vida saudável & crossfit, jogos, Netflix e Tik Tok .

Se o melhor da festa é a sua expectativa, como diz o ditado popular, para Tony Manero, o melhor era a festa em si. Uma espécie de versão masculina da Cinderela, ele, quando desponta na tela, é filmado a partir de seus sapatos. Na pista de dança, sob as luzes estroboscópicas, ele esquecia os seus problemas e as suas limitações. Finalmente conseguia ser percebido, admirado e amado. Deixava de ser apenas mais um empregado invisível na engrenagem de um país capitalista que o desprezava como descendente pobre de imigrantes italianos do Brooklyn.

“As imagens mais duradouras são as alegres, de Tony desfilando pela calçada, vestindo-se para a noite e dominando a pista da discoteca em uma dança solo que o público costuma aplaudir. Há muito no filme que é triste e doloroso, mas depois de alguns anos o que você lembra é John Travolta na pista de dança naquele clássico terno branco de discoteca e os Bee Gees na trilha sonora”, escreveu o crítico Roger Ebert, em 1999. Para Luiz Antonio Simas, “não se faz festa, afinal, porque a vida é boa. A razão é exatamente a inversa”. A festa, para Tony, não era o escapismo, mas a pura representação de como a vida deveria ser. As imagens mais duradouras são as alegres.

DÉBORA NASCIMENTO, jornalista, repórter especial da Continente e colunista da Continente Online.

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