Perfil

A terra que deu Mestre Luiz Paixão

Entre os mistérios e as belezas da Mata Norte, em Pernambuco, está o som que vem da rabeca desse artista, a quem devemos dedicar nossa atenção

TEXTO Erika Muniz

01 de Agosto de 2017

Luiz Paixão, mestre rabequeiro e agricultor da Mata Norte pernambucana

Luiz Paixão, mestre rabequeiro e agricultor da Mata Norte pernambucana

Foto Eric Gomes

[conteúdo exclusivo Continente Online | agosto 2017]

As diferentes manifestações
que compõem a cultura popular nordestina encontram na figura do mestre uma das fontes de referência e de orientação para os brincantes. No cavalo marinho, folguedo tradicional da Mata Norte de Pernambuco, o mestre é quem recebe as figuras e os personagens que compõem a farra, ou o dono da agremiação. Partindo para outras expressões da cultura popular, cujo mestre seria considerado também parte importante dos ritos, seriam eles os responsáveis por transmitirem os saberes e as técnicas aos seus e aos que os procuram.

Sobre o que elevaria um instrumentista ou artesão à égide de mestre, matutando um pouco a partir dos trabalhos de grandes nomes como Mestre Vitalino, Mestre Biu Roque, Mestre Salustiano, Mestre Dila, Luiz Gonzaga…, pode-se observar algumas características recorrentes. Primeiramente, a que salta os olhos – ou os ouvidos – é a identidade apresentada por suas respectivas produções, ou seja, o modo sui generis como cada um dispõe seu ofício e o que acaba ressoando no resultado da obra.

O músico Maciel Salú, filho do Mestre Salustiano, comenta seu ponto de vista sobre a personalidade de alguns artistas ao criarem: “Jackson do Pandeiro, por exemplo, só ele sabia fazer aquele jeito que fazia no pandeiro. Assim como Mestre Dominguinhos na sanfona. Nós temos outros rabequeiros, mas Luiz Paixão domina muito bem o instrumento e toca de tudo. É um grande mestre, dedicou a vida toda ao instrumento e também foi meu professor”. Professor dele e de muitos outros apaixonados pelo timbre agudíssimo desse instrumento. Outro ponto comum é a experiência. O tanto de tempo dedicado para o envolvimento com a arte e a capacidade de transmissão de seus conhecimentos também são considerados. A questão do talento também pode ser apontada, apesar de haver quem duvide...

Um lugar que é berço de vários mestres, mestras e onde muitos deles escolheram para viver é o município de Condado, também conhecido como “terra do cavalo marinho”. Situado a aproximadamente 60 km da capital pernambucana, encontra-se na Zona da Mata Norte, rodeado por outras cidades, como Goiana (terra dos caboclinhos), Aliança e Nazaré da Mata (terras do maracatu rural), Timbaúba (terra dos bois). Eis um dos cenários mais marcantes da história do cultivo da cana-de-açúcar do estado, que guarda sequelas econômicas e sociais até os dias de hoje. Apesar do relato de moradores, que diz da cidade seguir um pouco menos tranquila atualmente, ainda é possível ver gente sentada nas calçadas das casas para conversar no fim de tarde.

Um dos habitantes e símbolos da arte da rabeca em Condado é justamente Mestre Luiz Paixão. Nascido em Aliança, há 68 anos, se mudou ainda muito jovem, “quando aqui ainda era chamada de Goianinha”, diz. Atualmente, é casado com Maíca – que também integra sua banda. Através de sua música e de sua amizade com Mestre Biu Roque, pai dela, que conheceu a atual esposa. “Eu comecei a conviver logo cedo, em 1976, com Biu Roque, ainda morava em Aliança. A filha dele conheci em 2002, quando fui gravar meu CD. Joguei uma tarrafa e pesquei essa piaba! [risos] Mas já morei com três mulheres.” Além de Maíca, que participa na voz e bage, a banda conta com o músico e compositor Mina (mineiros e pandeiro), Sidrack (voz, pandeiro e triângulo) e Leo cuidando do tarol.

Luiz Paixão e Biu RoqueDe pé, Biu Roque, seguido do seu parceiro, aprendiz e hoje genro, Luiz Paixão. Foto: Eric Gomes

Luiz Paixão e Maíca, sua esposa. Foto: Eric Gomes
Maíca, filha de Biu Roque e esposa do Mestre Luiz Paixão, segura o bage. Foto: Eric Gomes

Levando uma vida tranquila em sua casa própria, paga através de sua própria arte, ele afirma só sair de lá para tocar; no máximo, vai ao sítio onde seu sogro vivia, que é, hoje em dia, onde Cristiana, a filha de Maíca, mora. Lá, Seu Luiz voltou a se dedicar a uma de suas paixões: o cultivo de milho, macaxeira e vagem. “Nasci no engenho plantando de tudo na vida. No campo, sei fazer tudo”, afirma.

A equipe da Continente foi recebida com sorriso no rosto – junto ao bom humor de Seu Luiz que nos acompanhou por todo o dia. Em seguida, nos pediu licença, já que iríamos gravar e fotografar, para se arrumar, pôr um de seus chapéus e pegar sua “bichinha” para tocar, como se refere à rabeca. 

Entre alguns trechos de músicas como Caldo de cana, Arrumadinho Forró do Cambará, relembrou seu início com o instrumento. Sua trajetória com a rabeca se confunde com sua própria história. Quase que o ditado “filho de peixe, peixinho é” o servia, mas as primeiras vivências se deram por conta de seu avô, tios e primos. Seu pai preferia pandeiro e triângulo. “Sou filho de uma família de rabequeiros. Para aprender a tocar, fui escutando meu avô Severino e meus tios. Pequeno, eu disse: ‘Vou aprender a tocar esse instrumento bonito’. Aí comecei a ficar no pé deles”, contou para a gente.

Uma combinação de talento e “malícia” o acompanha, que é facilmente observável pela ousadia com o instrumento e nas melodias de sua autoria. Escutava os familiares tocando e nos intervalos em que descansavam as rabecas em cima da cama, ele aproveitava para treinar escondido os sons que tinha escutado. Essas “presepadas”, como ele mesmo chama, aconteciam principalmente aos domingos, quando toda a família se reunia no Engenho Palmeira, onde morou seus primeiros anos. Daqueles tempos, Seu Luiz relembra: “A gente se ajuntava sempre no domingo pra tomar cachaça, almoçar, tocar rabeca, bater pandeiro e triângulo. Não existia esse nome chamado zabumba, chamava melê. Era olho no padre, olho na missa e eu ficava sentado na beira da cama caçando o que eles faziam com a rebeca bem baixinho. Depois corria de novo pela cozinha. Quando ele pegava, já tava encostado”.

De sua dedicação, logo aprendeu duas notas. “Tio Antônio morava perto da minha casa, mais pra baixo um pouco. Num dia de domingo, com dois abacaxis amarrados no gogó, uma pra frente, outra pra trás e uma garrafa de Pitú. Meio bicado.. 'Bença tio!', 'Deus te abençoe! Vamos fazer uma farradinha?'. Eu disse: 'Bora'. Nesse tempo, eu já remendava no pandeiro e ele pegou a rabeca, deu uma afinada, me deu pra eu tocar e eu falei: 'Pois tá, Tio. Eu já sei tocar isso'. Ele me deu a bichinha e foi mesmo que eu ter caído dentro do céu”, conta sobre os primeiros contatos com o instrumento de modo autodidata. No entanto, até ali, por volta de seus 12 anos, só sabia tocar duas únicas notas. De modo pedagógico, Tio Antônio a pegou de volta, desafinou e devolveu para Luiz, mas aí não saía mais o mesmo som. Foi assim que aprendeu a importância da afinação e como ele mesmo poderia fazer isso.



ESTRADA
Das vivências mais recentes, ele participou do Encontro da Rabeca, Violino e Orocongo no Sesc Ipiranga (São Paulo), em 1998, a convite de Antonio Nóbrega e com Jonh Murphy, etnomusicólogo da Columbia University (NY), participou do Congresso de Etnomusicologia, na Flórida, em fevereiro de 1999, como representante da rabeca no Brasil. Por volta de 2002, a cantora Renata Rosa o chamou para participar da gravação do primeiro CD dela. “Em 2005, ela fez: 'Vamos gravar seu trabalho'. E gravamos meu primeiro CD, Pimenta com Pitú. O mais recente foi em 2012, com a produção já de Lia Menezes. Nisso, já toquei com várias pessoas nesse mundo. E estou seguindo a vida assim”. No lançamento do projeto Caravana Rabequeiros de Pernambuco, em 2012, o músico Cláudio Rabeca reuniu grande parte de tocadores que tinham alguma relação com o estado. Já na abertura do disco, antes do Baião Novo começar, seu autor, Mestre Luiz Paixão faz graça: “Eu vou passar um breuzinho aqui pra o som ficar bom”.

Sua primeira rabeca, conseguiu trocando por uma galinha. Começou a trabalhar aos oito anos cortando cana com seu pai, Odilon Paixão. Todo dia à noite, quando chegavam em casa umas seis horas. Depois do jantar, afinava e começava a treinar. Seu pai batia triângulo. Aos 15 anos, já tocava nos bancos de cavalo marinho. “Eu era menino, por isso o povo queria ver. Desses anos, já toquei em todos os bancos dessa Zona da Mata”, afirma Seu Luiz. Naqueles tempos, toda semana tinha o folguedo, diferente deste ano: a última vez que participou da brincadeira foi no Dia de Reis, 6 de janeiro, na Casa da Rabeca.

As folias de São João, este ano, ficaram comprometidas. Numa época em que normalmente toca bastante, a cultura popular acaba sendo uma das primeiras a ter interferências nos investimentos públicos, com os cortes nos gastos do governo direcionados para alguns artistas. Seu Luiz conta que já chegou a fazer de sete a oito shows no São João, no entanto, este ano tocou apenas uma vez. Para o futuro, está com viagem marcada para tocar na cidade de Nantes, na França. “Viajo dia 30 de setembro para tocar forró no início de outubro.” Ele participa da Festa Nordestina, organizada por Brasil No Pé & Macaiba, e afirma: “Vai ser animado!”

Objetos de Mestre Luiz Paixão. Foto: Eric Gomes
Os itens de vida do Mestre Luiz Paixão. Foto: Eric Gomes

ERIKA MUNIZ, formada em Letras pela UFPE, estudante de jornalismo pela Unicap, estagiária da revista Continente

ERIC GOMES, fotojornalista e documentarista graduado em Geografia pela UFPE. Desenvolve pesquisa com indígenas, quilombolas e movimentos sociais.

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